Um Verão em Boulder City escrita por Carol Coelho


Capítulo 14
Lavada de Culpa


Notas iniciais do capítulo

Olá amoras ♥ mais um capítulo fresquinho pra vocês. Boa leitura o/



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Já eram quase dez horas da noite quando a tal da dra. Maria resolveu dar o ar da graça no hospital.

— Você é a Vanessa Frederiksen? — perguntou.

Ela era deslumbrante, isso eu precisava admitir. Uma negra alta com uns cachos que moldavam seu rosto de ébano. Tinha olhos verdes escondidos atrás de grossas lentes do óculos que aumentava ainda mais o seu olhar.

— Sou — eu disse, me sentindo imediatamente maltrapilha perto daquela mulher estonteante.

— Sua avó fala bastante de você — ela sorriu. — Você deve estar arrasada. Vem cá, eu vou te pagar um café ou algo assim — convidou. Eu não me mexi. — Ela está em boas mãos — me tranquilizou ao perceber minha hesitação.

A segui ainda receosa pelos corredores do extenso hospital até a cafeteria do andar. Ela pediu pães de quejo.

— Café? — indagou.

— Puro, com açúcar — pedi.

Ela pegou nosso pedido e nós nos sentamos à uma das mesas no canto. Comi alguns pãezinhos de queijo e beberiquei o café, ainda em estado de choque. A dra. Maria media minhas ações, parecendo aguardar o momento certo de me contar o que quer que tivesse para me dizer.

— Vanessa, sua avó tem um tipo de câncer neuroendócrino no pâncreas — falou. — Desde o último natal ela está em tratamento e vem respondendo muito bem. Alguns dos sintomas desse câncer incluem o aparecimento de úlceras no estômago, causando perda de apetite e de peso. É provavel o desenvolvimento de diabetes também, mas sua avó sempre foi muito forte. O corpo dela batalha contra esse câncer de um jeito que eu nunca vi.

Revirei os olhos. Tão típico de médicos darem esse discurso de "Ele/ela é muito forte. De um jeito que eu nunca vi". Logo depois costumava vir a estimativa de tempo de vida. Engoli em seco. Perante meu silêncio, a doutora continuou.

— O único problema eram as úlceras. Os últimos exames foram surpreendentes, elas pareciam muito menores. Fiquei feliz com os resultados, mas não me toquei que isso podia significar que elas estavam mais densas — esclareceu. — O episódio de hoje foi só uma úlcera que inflamou e estourou, provavelmente em decorrência de alimentação pesada ou apimentada.

Senti meu estômago afundar como uma pedra dentro de mim. Eu era culpada ao quadrado: eu não somente havia negligenciado minha avó durante um mês inteiro sem nem ter consciência disso, como eu também havia provocado a inflamação de sua úlcera, que já devia doer bastante por si própria. As lágrimas brotaram sem que eu as pudesse refrear.

— Ela vai ficar bem, doutora? — perguntei de forma infantil entre soluços.

— Vai sim — afirmou, pegando minha mão sobre a mesa e a apertando, me passando alguma segurança. — Estão fazendo alguns exames agora para confirmar o status do tumor e como estão as úlceras. Ela só vai precisar ficar aqui até o estômago melhorar, recebendo nutrição intravenosa, mas ela vai ficar bem sim, Vanessa. Eu te dou minha palavra.

Eu sabia que todos os médicos faziam isso para tranquilizar, mas algo na dra. Maria me passava segurança. Sorri fraco em meio às lágrimas e ela soltou minha mão para pegar alguns guardanapos da mesa do lado, já que a nossa estava completamente desprovida. Ela me esticou os papéis para secar meu rosto e eu agradeci.Terminamos de comer os pães de queijo e tomar o café em silêncio.

— Agora, eu sugiro que você vá para casa, pelo menos para tomar um banho, pegar algumas roupas para você e sua avó, talvez avisar mais alguém sobre seu paradeiro. Você pode voltar depois, ok?

— Ok — concordei com um suspiro.

— Vou pedir um táxi pelo serviço do hospital, assim você ganha desconto — ela avisou, sacando o celular e digitando rapidamente comandos para que o táxi viesse me pegar.

A doutora Maria me acompanhou até a porta do hospital e esperou o carro vir me pegar. Assim que o veículo parou, ela sorriu e abriu a porta traseira para mim, a fechando assim que eu entrei.

— Rua Mayflower, vinte e dois — informei, rezando para ter dinheiro suficiente para pagar a corrida.

Meu cérebro me torturava, me culpava pelo que havia acontecido. Peguei meu celular no bolso e abri as mensagens de Luke. A bateria já estava em modo econômico, eu precisaria do carregador.

Lukesio Taurino ♥: Ei
Lukesio Taurino ♥: Tudo certo?
Lukesio Taurino ♥: Nessa?
Lukesio Taurino ♥: Me liga quando você ver isso.
Lukesio Taurino ♥: Estou preocupado, espero que esteja tudo bem.

Havia mais de uma hora de diferença entre a primeira e a segunda mensagem, quarenta minutos entre a segunda, a terceira e a quarta e a última havia sido enviada há menos de quinze minutos. Suspirei.

VanessaEstou bem sim!
VanessaDesculpa a demora, eu estava ajudando Abigail com suas estripulias.

Eu não ia dar mais explicações, muito menos contar para ele a verdade, pois isso implicaria explicar o porquê eu estava ali e, como eu havia dito, não deixaria meu passado idiota infectar nossa relação. Estava me sentindo tão culpada e com tanta raiva de mim que eu já nem tinha certeza se eu queria dar continuidade a ela. Não era para isso que eu estava em Boulder City.

O carro acelerava pelas ruas e eu me questionava se eu devia ligar para os meus pais. Eu podia muito bem manter esse incidente em segredo. Eu sabia que Abigail concordaria. Mas eu não sabia se devia. Talvez eu merecesse todas as punições possíveis e imagináveis.

— Senhorita? — o taxista perguntou. — Chegamos. São doze dólares.

Puxei as notas do bolso. Ainda sobraram alguns trocados comigo, mas eu não conseguiria pegar um táxi para voltar com esse dinheiro.

— Obrigada — agradeci. — Boa noite.

Saí do táxi e apertei a jaqueta no corpo. Um ventinho gelado fez minha pele se arrepiar. A rua estava deserta. Entrei rapidamente em casa, fechando a porta. Me permiti chorar enquanto eu subia as escadas. Recolhi tudo que estava sujo no quarto de Abby e joguei escada abaixo. Desci em seguida, afundei as peças imundas no tanque com água e sabão e as deixei de molho. Joguei todas as louças sujas na pia e voltei para o andar de cima, colocando meu celular para carregar e entrando no banho.

Deixei a água escorrer pelo meu corpo por longos minutos, ainda chocada com os acontecimentos das últimas horas. A culpa pesava dentro de mim de um jeito que eu nunca imaginei possível. Esfreguei o corpo e o rosto, tentando destituir de minha cabeça o cheiro de sangue e de hospital. Respirei fundo e saí do banheiro sem me importar em molhar o corredor.

Coloquei uma calça leve e uma regata no quarto. Luke havia mandando mais algumas mensagens que eu não me dei ao trabalho de ler. Resolvi ligar para Joyce enquanto separava algumas roupas para levar para o hospital.

— Alô?

— Oi, Joy — falei, me sentindo frágil.

— O que houve? — perguntou, detectando que eu estava mal pelo tom de minha voz.

— A vó Abby... eu cheguei hoje — me interrompi para engolir o soluço.

Expliquei para ela em detalhes tudo o que havia acontecido, sem deixar de fora que eu havia dado comida apimentada para ela. Joyce ouviu tudo calada. Ao término da minha narração, ficamos em silêncio por alguns segundos.

— Cacete, Nessa — ela disse. — Nunca que eu ia imaginar isso. Quer dizer, ela era boa sendo travessa e tal,

— Mas eu devia ter percebido, Joy — falei. — Ela tentando me manter fora de casa. Meus pais avisaram e eu...

— Achou que fosse mentira, tá certo, mas ela alimentou essa constatação fingindo que estava bem. A culpa não é sua, você não sabia.

— Eu estou muito mal, Joy.

— Quer que eu vá até ai?

— Não — dispensei. — Vou voltar para o hospital.

— Essa hora?

— Vou pegar algum dinheiro nas coisas da vó Abby e pagar um táxi. Pode ficar tranquila.

— Tá bem, mas me manda uma mensagem hora que você chegar lá. Vou te visitar amanhã.

— Certo, eu te aviso assim que ela for para o quarto — falei. — Será que você poderia, tipo, não comentar com o Luke caso você o veja? Ou caso ele pergunte.

— Claro, Nessa — concordou sem mais questionamentos. — Forças, amiga. Vai acabar tudo bem. Me liga qualquer coisa, tá?

— Tá bom, Joy. Muito obrigada.

— Estou aqui pra isso, minha flor do Cangaíba. Boa noite.

— Boa noite.

Encerrei a ligação e respirei fundo, me acalmando. Esvaziei uma das minhas malas de mão e coloquei as roupas que selecionei para mim. Fui para o quarto de Abigail e peguei algumas roupas de seu armário. Pijamas e roupas leves. Abri a segunda gaveta e peguei algumas notas de dez que eu sabia que ela mantinha guardadas dentro de um pé de meia sem par. Aquele era seu esconderijo de dinheiro desde que eu me entendia por gente.

Peguei algumas toalhas no armário também e roupa de cama limpa. Apertei tudo na mala e resgatei meu celular e carregador no quarto. Chamei um táxi e aguardei na sala. O relógio antigo na parede marcava vinte para a meia noite. O táxi não demorou para chegar. Apaguei as luzes e tranquei a porta. O taxista acelerou de volta para o hospital, cheguei em tempo record. Não havia transito essa hora da noite. Paguei a corrida e o homem me ajudou a levar a pesada mala de mão para dentro.

A enfermeira simpática que estava com Abigial no quarto mais cedo apareceu pelo corredor e, após meu chamado, veio me auxiliar. Nós levamos a mala até o quarto.

— Obrigada — agradeci.

Coloquei a bolsa à um canto e parei ao lado de vovó na cama. Ela ainda estava desacordada, mas já parecia melhor do que estava quando eu a encontrei em seu quarto mais cedo. Duas batidas na porta me fizeram desviar o olhar para lá e encontrar a dra. Maria.

— Fico feliz que você tenha seguido as minhas recomendações — sorriu. — Ela está desacordada agora, nós demos um sedativo para que ela dormisse a noite inteira. Amanhã pela manhã ela acorda.

— E quando ela vai sair da UTI? — indaguei, me sentindo muito adulta.

— Provavelmente amanhã pela manhã mesmo — afirmou Maria. — Quando ela acordar, vamos fazer um check-up rápido e, se tudo estiver em ordem, ela já pode subir para o quarto.

Concordei com a cabeça, me sentando em uma das cadeiras que me serviriam de cama naquela noite. Maria sorriu para mim e se sentou à minha frente.

— Você tem dezesseis anos, certo, Vanessa?

— Sim — respondi.

— É muito corajosa — afirmou. — Com a sua idade, eu vi meu pai em uma situação muito similar à da sua avó, mas diferente de você eu entrei em total pânico.

Eu queria dizer que eu também havia entrado em pânico, mas aguardei e deixei que ela continuasse sua história.

— Eu paralisei. Depois, fiquei sacudindo seu corpo por uns quarenta minutos — o olhar da dra. Maria estava longe. — Quando raciocinei que eu devia ligar para a ambulância já era tarde.

— Por que a senhora me contou isso? — indaguei.

— Porque eu quero pedir pra você não se culpar. Entenda, o tratamento do câncer vai além de coquetéis de remédio e visitas constantes para o hospital. Uma psicóloga acompanhou sia avó durante os primeiros meses, e eu fiquei sabendo de quase tudo. Ela falava muito sobre você. Na última consulta que ela teve, ela contou que você viria para Boulder City de castigo para cuidar dela e ela não queria que seu verão se resumisse à isso. Cancelou todas as consultas semanais dos dois meses que você ia passar aqui porque ela não queria que você soubesse que ela estava ruim.

Eu sentia meus olhos queimando. Abigail e sua mania de ser sempre forte. Ai, aquela velha travessa!

— A senhora está dizendo que é culpa dela? — indaguei.

— Não! — ela corrigiu-se. — De forma alguma, não. Mas também não é culpa sua. Você só queria aproveitar seu verão e ela queria que você o aproveitasse também. Só isso. Não se culpe, Vanessa. É um fardo grande para uma garota de dezesseis anos carregar.

Sorri agradecida. Foram palavras bonitas, mas não retiravam de mim a culpa que eu sentia. Maria sorriu e apertou minha mão antes de deixar o quarto. Pouco tempo depois, uma enfermeira entrou com um travesseiro e um cobertor leve e me entregou, apagando a luz ao sair. Me ajeitei de qualquer jeito na cadeira e me cobri com o cobertor. A luz da lua invadia o quarto através das persianas da ampla janela, iluminando o corpo de Abby na cama. O cheiro de hospital me dava dor de cabeça, ou talvez fosse o tanto que eu chorei hoje.

Não consigo refrear mais algumas lagrimas e então, finalmente, adormeço.

***

Acordei com o leve ranger da porta. A luz do sol já invadia o quarto e o relógio digital ao lado da cama marcava seis e meia da manhã. Eu nem lembrava da última vez que eu tinha acordado tão cedo assim.

— Desculpe por te acordar, senhorita — o enfermeiro se desculpou. — Vim trocar o soro.

— Ah, sem problema — falei, esfregando os olhos e esticnado as costas. — Ela está bem?

— Bem melhor que ontem, com certeza — afirmou positivo.

— Que bom.

Me levantei da cadeira e puxei a carteira da mala que eu havia deixado no canto da parede. Saí e rumei parecendo um zumbi na direção da cafeteria, pedindo um café com açúcar e pãezinhos doces, que nem de longe eram tão bons quanto os de Luke.

Pensar nele me deixava triste e me fazia sentir culpada. Eu não tinha ideia do que eu faria a partir do momento que eu e Abigail deixássemos o hospital. Meu café da manhã foi degustado junto do sabor amargo da dúvida. Eu sentia uma nuvem negra pairando sobre mim. É claro que as coisas não iriam continuar as mil maravilhas que estavam, afinal era a minha vida e tudo estava bom até demais.

Como de forma lenta e retorno para o quarto, me sentindo um caco pela noite mal dormida naquela cadeira maldita e o café da manhã sem graça do hospital. Tudo parecia ter gosto de tensão ali dentro.

Ao entrar na UTI novamente, vi a dra. Maria conversando com Abigail e quase chorei de felicidade. Ela estava bem e acordada.

— Sua velha teimosa — eu disse chorosa, me aproximando da cama e pegando sua mão.

— Vou deixar vocês conversarem. Ja já eu volto para assinar sua subida para o quarto, Abby — a doutora piscou.

— Obrigada, doutora Maria — Abigail agradeceu com a voz grogue.

Assim que a médica abandonou o quarto, encostando a porta eu comecei a chorar alto, apertando a mão de minha avó.

— Eu não a-acredito que vo-você esconde-eu de mim — falei entre soluços.

— Desculpa, Nessa — ela pediu, emocionada também. — Eu não queria te preocupar.

— Mas fo-foi pra isso que eu vim pra cá! — exclamei.

— Eu não queria estragar o seu verão — se defendeu. — Sua mãe e suas ideias corretivas malucas, onde já se viu? Jogar a responsabilidade de cuidar de uma velha nos ombros de uma menina de dezesseis anos que só quer fazer as próprias escolhas! Absurdo! Eu não sei onde eu errei, sabe, Nessa?

Limpei as lágrimas com as costas da mão disponível.

— Isso não é sua culpa — eu falei, já mais calma. — Mas eu fiquei desesperada, vó! A senhora devia ter me contado! Eu pelo menos não teria colocado pimenta no macarrão.

— O macarrão estava ótimo, filha.

— Vó, quando a senhora ia me contar do câncer? — indaguei.

Ela contraiu os lábios, receosa.

— A doutora Maria explicou que eu reajo bem ao tratamento, certo? — eu afirmei com a cabeça. — Bem, enquanto o tratamento estivesse funcionando e meus cabelos estivessem no lugar, eu não pretendia contar.

— A senhora está louca? — eu perguntei indignada.

— Não tinha por quê te preocupar com isso, minha filha — se explicou. — Sua velha avó estava bem tomando todas aquelas drogas. Só um pouco sem apetite e com algumas dores de estômago, mas bem.

— Isso não se faz! Que droga, somos uma família — eu disse. — Eu te amo, vó. Não aguentaria caso alguma coisa pior...

— Não aconteceu nada pior, Vanessa — ela me interrompeu. — Estou bem, vou ser liberada logo e nós vamos voltar ao normal. É isso que importa.

— Aí depende — eu brequei. — Vou tomar mais cuidado com a senhora agora.

— Vanessa, eu sou velha. Não deixe de curtir a sua vida para cuidar da minha. Já tenho uma equipe médica ótima fazendo isso.

Suas duas mãos seguravam a minha e um sorriso fraco brincava no rosto. Aquele olhar relaxante.

— Você ligou para sua mãe? — Abigail quis saber.

— Não. Ela ia me truicidar se ficasse sabendo — eu ri, já me sentindo mais leve, aos poucos de volta ao meu humor normal.

Abigail riu de volta, restaurando a paz no ambiente. Finalmente, após a noite mais torturante da minha vida, eu sentia alguma calmaria se aproximando. Agora por quanto tempo ela duraria eu não sabia, afinal eu tinha um propósito em Boulder City que se provou real da pior forma possível e agora gritava pela minha total dedicação. Eu precisaria, afinal, definir algumas prioridades.


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Notas finais do capítulo

E entãoooo? O que acham? Teorias sobre o que acontece a seguir? Quais são as prioridades da Vanessa? Espero que tenham gostado, me falem o que acham ♥ vejo vocês semana que vem o/