A Pele do Espírito escrita por uzubebel


Capítulo 24
Capítulo 23




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Lorena

Entrei no meu quarto, apaguei a lamparina na cabeceira e fechei a porta, prendendo a respiração. Fiquei de costas, apoiada na madeira por um segundo, enquanto absorvia o que tinha acontecido.

Minhas memórias... Eu posso pegá-las de volta!

Balancei os braços num gesto de vitória e dei duas sapateadas no lugar, até perceber o barulho que estava fazendo e parar. Se eu não dormisse, Byakko não ia me ajudar. Bom, pelo menos se ele pensasse que eu não dormi direito. Dei um passo pra frente e me joguei na cama, só pra ele me ouvir me deitando, e fiquei quieta um minuto, até ouvir o ruído uma cadeira se arrastando na cozinha. Imaginei que Byakko ia desaparecer e fazer o que quer que fosse que os Espíritos faziam enquanto as pessoas dormiam, e me desliguei de vez de qualquer outra coisa. Deixei meus braços e pernas dobrados caírem na cama de uma vez e repeti na minha cabeça:

Minhas memórias...

Sorri. Por um momento, eu já tinha desistido de tê-las de volta. Tanta coisa tinha acontecido, tanto tempo tinha se passado... Mesmo com os sonhos e as memórias incompletas que eles pareciam trazer à tona, eu já tinha me convencido de que nada daquilo passava de uma ilusão; meu cérebro me enganando, me fazendo de trouxa, só porque eu queria tanto. Eu achava que já tinha até superado isso, mas no fundo eu só tinha... esquecido. Esquecido de como me sentia sem elas, do que queria. E justamente agora que eu parecia tão perdida, que não sabia mais o que fazer depois de Dorothea, ter minhas memórias de volta... Talvez fosse o destino. Talvez meu passado fosse me dizer o que fazer agora. Não as minhas anotações, mas o meu passado. O que eu achava que tinha perdido.

Virei de lado na cama. É claro que eu não ia conseguir dormir. Mordi a ponta do dedão e me virei para o outro lado. Eu estava cansada, é claro. Dava pra sentir o peso e a moleza no meu corpo, a fadiga depois do funeral, mas minha cabeça estava tão acesa quanto a lua lá fora. Eu nem conseguia fechar os olhos. Dorothea... Será que ela ficaria feliz se soubesse disso? Como reagiria se estivesse aqui? Mordi a ponta da unha.  Mas afinal, como é que isso ia acontecer? Byakko tinha acabado de explicar que minhas memórias estavam... no Mundo dos Mortos? Eu tinha acabado de seguir as tradições que diziam como mandar Dorothea para lá e, ainda assim, não tinha ideia de como ia chegar viva lá. Uma pessoa viva conseguiria navegar até o horizonte, onde diziam que a entrada ficava? Quer dizer, eu precisava chegar viva lá para recuperar minhas memórias, né? Se é que a entrada ficava mesmo lá... Engoli em seco. Se não fosse assim, pra ter minhas memórias de volta enquanto estivesse viva, seria uma piada de muito mal gosto...

Foi quando lembrei da voz da Serpente, quase como se ela estivesse no pé da cama, sussurrando no meu ouvido: três meses... Ouvi ela dizer, me lembrando do meu verdadeiro destino, aquele que tinha sido varrido da minha mente durante o dia anterior. Encolhi-me na cama, de repente sentindo frio, como se tivesse mergulhado no mar gelado outra vez. Não havia depois, e nem havia o que fazer. Não pra mim. Eu tinha me angustiado tanto com o “e agora?”, e me esquecido da verdade: não havia nada. E eu nem tinha contado para Byakko...

Puxei o Joelho até o queixo e abracei as pernas, deitada encolhida como um bebê. Será que daria tempo de contar amanhã, antes de sairmos para pegar minhas lembranças de volta? Quanto tempo essa jornada ia demorar, afinal? Foi então que eu percebi que, se Byakko soubesse a verdade sobre Isméria, talvez ele suspendesse tudo. Ele desistiria da viagem, desistiria das minhas memórias, ficaria obcecado por me proteger. E então minhas lembranças estariam perdidas, para sempre...

Fechei os punhos e bati a cabeça no travesseiro com força. Não, isso não podia acontecer. Eu precisava saber. Cruzei os braços. É claro que estava preocupada e com medo do que ia acontecer, da minha parte na barganha com a Serpente. Estava com medo de... Engoli em seco. Mas também já estava cansada de me sentir incompleta. Se eu precisava de um objetivo, agora eu tinha: um objetivo antigo, mas meu objetivo. Recuperar minhas memórias a qualquer custo. Se era pra Byakko me proteger, ele poderia pensar em alguma coisa depois de me devolver o que tinha me tirado. Ele me devia isso. E eu não ia deixar meu acordo com Isméria atrapalhar isso.

Assenti, sozinha no escuro. Eu contaria tudo quando voltasse com minhas memórias. Depois nós resolveríamos. O Mundo dos Mortos não devia ficar a três meses de viagem, né? Eu esperava que Byakko fosse só me abraçar, virar fumaça do jeito que fazia quando desaparecia, me levar com ele, e quando abrisse os olhos eu estaria lá, onde quer que fosse o Outro lado... Se fosse como andar de barco, será que eu teria que me segurar com força nele...?

Sacudi a cabeça, espantando essas ideias e me ajeitando no travesseiro. Comecei a finalmente sentir as pálpebras pesarem e a cabeça ficar mole sobre o travesseiro. Pensando bem, dormir não era uma má ideia. Eu não ia admitir que Byakko estava certo e que eu precisava descansar, mas já que eu podia... Por que não? Me cobri com uma manta, coloquei a mão por baixo da cabeça e me virei para a porta. Queria acordar assim que Byakko entrasse de manhã, não podíamos perder nem um segundo. Franzi as sobrancelhas. Ou, talvez, o certo fosse eu dormir virada para a janela, então... Eu não me lembrava se alguma vez ele tinha usado a porta do meu quarto. Bocejei e, antes de conseguir rolar na cama, tudo já tinha ficado escuro e nublado.

 

***

 

Ouvi o chiado do vento forte no meu ouvido antes de ver qualquer coisa. Senti o cabelo chicoteando meu rosto e abri os olhos. Olhei ao redor, a paisagem ampla, o chão rochoso, a trilha lá embaixo, as pilastras que não seguravam nada, parecendo dois palitinhos lá embaixo... Eu estava de volta ao meu sonho, no mesmo ponto em que tinha estado antes de acordar. E eu sentia dor, como se tivesse realmente caído e me machucado, no sonho anterior. Uma pontada dolorida no ombro, um pequeno hematoma. Mas, aparentemente, eu estava sozinha agora.

Ouvi um ruído de água corrente que não tinha ouvido antes e procurei de onde vinha. A água escoria e jorrava das pedras, onde o degrau em que eu estava terminava, como se brotasse do seco. Depois caía num buraco mais em baixo e sumia outra vez, por baixo da terra. Quando voltei a me virar eu vi, de relance, um pedaço de tecido branco sendo soprado pelo vento forte. Alguns metros acima da minha cabeça, empoleirado de quatro como uma cabra, numa rocha estreita, estava o homem do último sonho, me encarando. Ele não se levantou, não desapareceu, não continuou subindo a montanha nem tentou se esconder de mim, como nos últimos sonhos. Só ficou lá, me olhando nos olhos, como se me desafiasse a dizer alguma coisa, agora que eu sabia que ele não era Byakko de verdade.

Engoli em seco.

— Quem é você? — Perguntei. — Por que está fingindo ser Byakko?

Ele estreitou os olhos, que cintilaram como os de um gato, e inclinou a cabeça, me analisando.

Porque você parece se importar o bastante para segui-lo..., ele respondeu, dentro da minha cabeça, como Byakko costumava fazer antes de eu lhe explicar que não era assim que as pessoas conversavam.

— E pra onde você está me levando? — Gritei para que ele me ouvisse apesar do vento forte.

Ele se mexeu um pouco, como se se preparasse para pular, mas ao invés disso desapareceu numa nuvem de fumaça escura, como já tinha feito antes. A túnica branca que era uma imitação da de Byakko caiu quando ele desapareceu, e o vento a jogou sobre mim, como se fosse só uma fantasia barata. Apesar disso, e apesar de não ver aquele que eu acreditava ser um Espírito, em lugar nenhum, a voz dele soou na minha cabeça, tão clara quanto da última vez:

Até a sua outra metade perdida...

Um vento muito forte soprou e jogou a túnica de Byakko, que eu segurava, nos meus olhos. Tentei puxá-la, mas eu só me embaracei mais nas dobras de tecido. Não adiantava, quanto mais eu me mexia, mais eu me prendia, e o tecido cobrindo meu rosto continuava lá...

Abri meus olhos e encarei o tecido que cobria minha visão. Rolei na cama até me livrar dos lençóis nos quais tinha me enrolado, mas a túnica de Byakko continuava roçando meu rosto, fazendo cócegas. Ele estava na janela, encolhido como sempre, com a túnica caindo no meu travesseiro e na minha cara. Empurrei o tecido pro lado e o encarei. Diferente do que esperava, ele não estava fingindo sorrir, nem disse nada reconfortante, nem me estendeu a mão. Ao invés disso ele estava parado, de braços cruzados, suspirando baixinho... e com os olhos fechados.

Tá, isso nunca aconteceu antes...

Dei de ombros. Talvez ele só estivesse meio distraído, pensando em alguma coisa, apesar da posição desconfortável em que parecia estar...

Puxei a ponta da túnica um pouco, para chamar sua atenção.

— Byakko? — Usei seu nome, só pra garantir. Não sabia quão distraído ele estava.

Ele abriu os olhos de uma vez, como num susto, e me encarou com suas pupilas estreitas. Vi seu corpo se inclinar para fora lentamente, se desequilibrando, enquanto ele ainda não tinha pensado em nada para me dizer. Cruzei os braços. Quando finalmente percebeu que ia cair, os olhos de Byakko se arregalaram. Ele escorregou do batente da janela e, mesmo assim, caiu de pé do lado de fora – ou, na verdade, agachado – o que já era mais do que eu conseguia fazer quando caía da cama. O capuz caiu sobre a cabeça dele e Byakko o jogou para trás de volta. Me apoiei na janela e o encarei, levantando uma sobrancelha.

— O que é que você estava fazendo? — Perguntei. — Você não estava...

Byakko se levantou num pulo só e sacudiu a cabeça, me interrompendo.

— Meditando — ele se engasgou. — Eu estava meditando. Isso. Muita, muita coisa na cabeça, sabe... Nada demais.

Cheguei para o lado e dei-lhe espaço para entrar de volta pela janela.

— Se você está preocupado, então tem que ter alguma coisa... — comentei, tentando ver se ele deixaria algo escapar. Era meio inevitável, depois de se conviver com Um e Dois por tanto tempo...

Ele sacudiu a cabeça outra vez.

— Não, tá tudo bem... — Ele pulou a janela e caiu sentado na cama. — Tudo ótimo.

Ah, esse sorriso meio duro que não me engana mais..., mas deixei pra lá, por enquanto.

Bati uma mão na outra.

— Excelente. Então podemos ir atrás das minhas memórias, certo?

Byakko abriu a boca, mas não falou nada. Depois, virou o rosto e encarou o chão.

— Certo... Suas memórias...

Depois se calou, como se pensasse em alguma coisa.

Pigarreei.

— Então...? Pra onde vamos? Do que vamos precisar? Quanto tempo vamos levar para chegar lá? Precisamos de provisões?

Ele levantou as sobrancelhas e me encarou com seu olhar confuso.

— Eu... nunca fui até lá caminhando. Não tenho ideia de quanto tempo vamos levar.

Bufei.

— Então nós não vamos viajar magicamente como você faz?

Byakko franziu as sobrancelhas e virou as palmas pra cima.

— Não! — ele guinchou. — Eu nunca levei alguém... vivo, desse jeito. E não vou tentar com você! — Byakko se levantou.

Minha fantasia de viagem fácil e abraços já era...

— Tá, então só me diz pra onde vamos, pra eu saber a distância e o que preciso levar.

Ele parou na porta no quarto depois de dar três passos e se virou para mim.

— Nós vamos subir a montanha, do outro lado da ilha — Byakko saiu para o corredor e segurou a porta. — Leve tudo o que achar necessário. Eu vou procurar uma corda — ele acenou com a cabeça e fechou a porta.

— Ei, espera aí!

Corri até a porta e a abri, só pra me engasgar na neblina que Byakko tinha deixado pra trás antes de desaparecer.

Byakko

Certo, eu precisava esfriar a cabeça e pensar...

Não que eu já não tivesse tentado fazer isso, a noite toda, mas continuava sem chegar à conclusão nenhuma. Tinha até mesmo ficado na janela de Lorena, pendurado, esperando pra ver se ela ia sonhar outra vez e me contar alguma coisa, qualquer coisa, que pudesse me dar uma pista sobre o que Yasuko pretendia. Mas, ao invés disso, eu tinha caído no sono também, mesmo que só um pouquinho... E Lorena tinha visto. Eu ainda não tinha contado a ela sobre minha... mortalidade, e não sabia se com isso ela conseguiria deduzir alguma coisa. Mas eu achava que não. Ela provavelmente só tinha uma coisa na cabeça agora: recuperar suas memórias. E eu só tinha uma coisa na cabeça agora...

Encolhi-me no chão, puxando a cabeça pra baixo com força, os cabelos, e grunhi.

Lorena não ia desistir de suas memórias, não importava o perigo, e eu sabia disso. Eu não podia “desdizer” a verdade sobre suas memórias, não podia quebrar minha promessa de devolvê-las, e mesmo assim não podia fazer isso sozinho só pra poupá-la dos riscos. Eu tinha tentado poupá-la do próprio sofrimento antes, e olha onde estávamos agora... Eu não podia voltar atrás. O máximo que podia fazer era protegê-la de quaisquer que fossem os planos de Yasuko.

Mas eu já tinha falhado antes, e essa ideia me assombrava...

Uma onda bateu no meu tornozelo e levantei a cabeça. Eu nem me lembrava de ter um lugar em mente quando desapareci da casa de Lorena, mas aqui estava eu: no meu antigo... lar, eu acho. Desde que eu fora embora com o rubi, aquelas paredes tinham deixado de ser um templo sagrado. Desde então, a água podia invadi-lo livremente, e não ia demorar para o desgaste do tempo transformá-lo em apenas mais uma ruína em meio à cidade destruída. A vida marinha já começava a dominar o lugar, como se ele já não pertencesse mais a ninguém. Como se não fosse mais meu... Mesmo assim, eu estava aqui, procurando um lugar seguro para mim, onde pudesse pensar.

Hábitos de séculos são difíceis de se perder...

Levantei-me e fui até o painel ilustrado atrás do altar. Passei a mão no felino negro que representava meu irmão, apoiei a testa no felino branco que representava a mim e suspirei. Me lembrei da última vez que tinha perdido para Yasuko, quando fui confrontá-lo sobre sua aposta. Eu só não esperava que a Serpente fosse se aproveitar da minha ausência no templo para fazer o que queria: matar todos... Sem seus guardiões, sem mim e Yasuko, a cidade e as pessoas ficaram indefesas. E ela tinha conseguido a ajuda do próprio mar... Não que Yasuko ligasse. Ele já tinha entregado todos de bandeja, como se suas vidas não valessem nada... Tudo para manter Mérope com ele. Ele tinha planejado me atrair pra longe, me enganar, e como resultado a Serpente faria o que planejava sem que eu a atrapalhasse. Bom, não da maneira como ela esperava, pelo menos. Eu não tinha lhe dado o que ela queria, e o resto era história. A história de Lorena.

Yasuko tinha me enganado, tinha traído aos outros e a mim, para poder ter Mérope, a garota que o fizera perder sua aposta.

Agora, Yasuko estava atrás de Lorena. E eu só podia imaginar que, o que quer que ele planejasse, não traria nada além de desgraça pra mim e pra ela, e benefícios pra ele. Meu irmão só sabia pensar em si mesmo.

Tudo o que eu podia fazer era me consolar com a ideia de que eu já sabia, mais ou menos, o que esperar de Yasuko. Eu não ia ser enganado como da última vez, e faria qualquer coisa para manter Lorena sã e salva. Diferente de como eu tinha falhado com Mérope...

Se existia alguém que não entendia esse sentimento, esse alguém era o meu irmão.

 

***

 

Quando voltei com um rolo de corda na mão, depois de um longo tempo, Lorena estava sentada do lado de fora de casa, com uma trouxa enorme no colo. Seu tecido era parecido com o que cobria a canoa de Dorothea, então devia ser impermeável e protegeria as coisas lá dentro de uma eventual chuva ou humidade. Mas porque ela parecia tão cheia, eu não tinha ideia. Não íamos tão longe assim. Né?

Quando cheguei mais perto, Lorena me ouviu e levantou a cabeça. Ela encarou a corda, me encarou enquanto me aproximava, e cruzou os braços. Quando me aproximei o suficiente, ela perguntou:

— Onde conseguiu isso?

Dei de ombros e passei a corda pelo ombro, como se fosse minha própria bolsa.

— Peguei emprestado.

Lorena me observou com o canto do olho.

— Pegou com quem?

— Com seu amigo. Como ele se chama mesmo?

Ela levantou uma sobrancelha.

— Ed?

Anui.

— Então você roubou um rolo de corda?

— Claro que não — balancei a mão livre. — Ele vai achar ela de novo, quando voltarmos com suas memórias.

Lorena bufou e sacudiu a cabeça, contrariada.

— Pra onde você acha que vão as coisas que você não consegue encontrar? — Rebati.

Estendi a mão pra ela e a ajudei a se levantar.

— Você pegou tudo? Pegou comida para a viagem?

Ela ajeitou a alça de tecido no ombro, como se sua bolsa estivesse desconfortável.

— Sim, peguei com Ed.

Levantei uma sobrancelha. Eu não a tinha visto lá, então ela devia ter passado antes de mim. Provavelmente enquanto eu estava no templo, pensando.

Ela me encarou de volta, com uma sobrancelha levantada, como se tentasse ler minha mente.

— Mas, diferente de você, eu pedi permissão.

Lorena trocou a bolsa de ombro.

— Pra onde nós vamos agora? — Perguntou.

— Tâmi — respondi, gesticulando pra que direção que precisávamos ir.

Ela sacudiu a cabeça, puxou-me pelo pulso e me virou para outra direção.

— É o caminho mais curto, mas você não vai querer passar no meio da vila pra chegar lá, quer? — Lorena começou a andar na minha frente, ainda me segurando. — Não, nós vamos dar a volta.

Concordei e a segui, caminhando ao seu lado.

— Por que vamos até Tâmi?

— Porque vamos precisar de ajuda pra atravessar.

Outra jogada de ombro do lado em que carregava a bolsa, cruzada na frente do peito. Lóris virou a cabeça pra mim.

— Mas eu pensei que Tâmi não pudesse deixar o rio.

Eu não me lembrava de ela prestar tanta atenção no que eu dizia.

— Ela não pode, mas onde vamos ela vai poder nos acompanhar. Vamos subir o rio, e ela pode nos ajudar.

— Aaaah...

E se calou.

— Então vamos chamar Mab também? — Ela se virou e começou a andar de costas.

— Não.

Lorena reduziu o passo, pensando um pouco.

— Mas ela pode ir pra qualquer lugar, como você.

— Mas os poderes de Mab não afetam os Espíritos. Ela não pode ajudar.

Os Espíritos não sonham. Nem mesmo os mortais..., pensei. Isso era algo que eu tinha descoberto por conta própria. Ou, talvez, o problema fosse eu. Mab estava conectado aos sonhos dos mortais desde que eles nasciam, como eu estava conectado às suas vidas, mas de maneira bem mais sutil. O problema era eu tinha me tornado mortal, e não nascido, e não sabia ainda o quanto isso me tornava diferente. Eu só sabia que, quando dormia, mesmo que dormisse muito pouco, não havia nada além de escuridão pra onde eu ia. Talvez por isso Mab não tivesse sido capaz de me encontrar antes...

Vi Lorena trocar a bolsa de ombro outra vez e parei.

— Deixa que eu carrego — disse, estendendo a mão.

Os dedos de Lorena apertaram a alça um pouco. Ela encarou a bolsa, depois me olhou nos olhos e voltou a puxar a bolsa. Até que suspirou e a soltou.

— Tudo bem... — Disse, estendendo pra mim a alça que segurava com as duas mãos.

Quando peguei a bolsa, me assustei com o peso. Não era nada demais pra mim, mas como Lorena pretendia viajar carregando aquilo era um mistério.

— Mas o que é que você colocou aqui dentro?!

Ela se virou de costas pra mim e continuou andando.

— Você disse pra pegar tudo o que era importante.

Aproveitei que Lorena estava evitando me encarar e abri a bolsa, desatando as amarras no topo. Joguei o tecido pro lado e a primeira coisa que vi, bem no topo da pilha de coisas, foi Um e Dois sorrindo amarelo pra mim, com as presas de metal travadas uma na outra, mas evitando me olhar de volta.

— O-oi... — Disseram.

Estreitei os olhos.

— Não acredito...

Lorena se virou e percebeu o que eu estava fazendo.

— Ei! — Ela voltou correndo até onde eu tinha parado e tentou puxar a bolsa de volta. — O que está fazendo?!

Segurei firme, enquanto ela usava todo o próprio peso pra puxar.

— Estou tentando ver o que mais você trouxe.

— Isso não importa. Eu posso carregar tudo o que eu trouxe — Lóris rebateu, dando mais um puxão na alça da bolsa que estava passada no meu ombro.

— Dá licença — pedi, antes de desaparecer e reaparecer no alto de uma árvore atrás de Lorena.

Ela se desequilibrou quando a bolsa sumiu comigo e cambaleou pra trás enquanto tossia. Quando percebeu o que tinha acontecido, procurou-me ao redor.

— Pra quê trazer esses dois junto? — Levantei as aldrabas, uma em cada mão.

— Ei! — os dois reclamaram.

Lorena cruzou os braços, olhando pra cima.

— Porque se alguém passasse pela casa enquanto eu estou ausente, ouvisse esses dois conversando e entrasse pra saber o que é, seria uma bagunça!

Tá, esse era um motivo razoável. Mas não explicava o resto das bugigangas dentro da bolsa, tudo retirado do quarto dela, de seu esconderijo abaixo do assoalho. Todas suas anotações também estava lá, e seus cadernos, com as folhas soltas colocadas de volta entre as capas, mesmo que ela não tivesse tido tempo de refazer a encadernação e costurá-las de volta, como queria. Mexi um pouco mais e puxei de lá seu gato de pelúcia branco. Ah, eu me lembrava dele... Lembrava-me de Lorena o estar carregando no dia do incêndio quando a resgatei, de andar com ele pra cima e pra baixo e de dormir abraçada com ele na noite em que tinha roubado meu amuleto. Eu só não imaginava que ela o teria guardado ainda.

Sorri. Se ela ainda o tinha, era porque a fazia sentir bem.

Eu não sabia o porquê de sua mãe ter escolhido um gato como bichinho de pelúcia, já que não havia gatos na ilha mais, desde os Thanats – exceto por Damon, que era as duas coisas –, mas me perguntava se ela sabia de alguma coisa da verdade. Quanto tinha sido repassado dentro da família, de geração em geração. Aquela noite do incêndio foi a primeira vez que não fui eu mesmo quem levei as almas pro outro lado. Eu estava mais preocupado em tirar Lorena de lá. Damon tinha levado seus pais. E hoje, graças ao que tinha acontecido, ele e os outros Thanats eram os únicos capazes de fazer o que eu fazia. E foi no dia do incêndio que eu descobri que isso era possível.

Mais uma coisa que eu ainda não tinha contado à Lorena...

Eu não tinha só me recusado a entregar suas almas para Isméria, eu tinha lhes devolvido à vida, transformado os Thanats em Espíritos, como eu. Ou algo parecido... Dando uma centelha do meu poder à cada um. Espíritos que andavam por aí na forma dos gatos que costumavam possuir quando eram vivos. Foi quando Isméria descobriu que, se deixasse os corpos intactos, eu poderia trazê-los de volta. Depois disso ela começou a queimá-los. Era a forma mais fácil de me impedir.

Continuei revirando a bolsa enquanto Lorena tentava escalar a árvore de tronco muito alto e liso, e praguejava lá embaixo. Até que eu vi um relance de cor lá no fundo e puxei uma pedra azulada, um pouco puxada para o verde, com manchas mais escuras de azul celeste. Ela estava diferente, mais polida, mas eu a reconheci na hora e senti um calafrio.

Talvez a família de Lorena tivesse passado adiante mais do que eu imaginava...

Escorreguei do galho em que estava e pulei no chão, na frente de Lorena. Ela deu um passo pra trás, saindo do caminho por reflexo, e depois se ajeitou.

— Onde conseguiu isso? — Perguntei, levantando a pedrinha azul.

Ela a tomou da minha mão, rápido como o bote de uma cobra, e a guardou no bolso.

— Foi Tâmi quem me deu. Eu a perdi no rio quando era criança.

Lorena estendeu a mão, pedindo a bolsa, e a devolvi. Voltei a andar, e ela me encarou. Depois, quando finalmente percebeu que estava ficando pra trás, correu atrás de mim.

Quando encontrássemos Tâmi eu conversaria com ela sobre a pedra.

 

***

 

— Eu espero que você não tenha medo de morrer, menina! — Tâmi disse para Lorena, com um olhar repreensivo.

Cruzei os braços e bufei. Ninguém ia morrer. Lorena não ia sequer se machucar. Não se dependesse de mim.

Tâmi me encarou de volta.

— O que é? Você acha que Taiga vai sorrir e deixar ela passar só porque está com você?

A própria Guardiã do Limiar, o Espírito que vigiava a fronteira entre os vivos e os mortos: Taiga. O Espírito do Umbral certamente não ia fazer nada comigo, afinal meu dever era passar de um lado para o outro, o tempo todo. Mas o dela era impedir os vivos de passar. E, mesmo que Lorena estivesse comigo, ela nunca a deixaria ir. Taiga não abria exceções, nunca. Quer dizer, ela já tinha sido enganada algumas vezes, mas nunca tinha deixado alguém passar por livre e espontânea vontade.

E ela farejava humanos de longe... Eu sabia. Ela tinha percebido na hora o que tinha acontecido comigo, a mortalidade. Só esperava que ela não tivesse contado a Yasuko...

Cruzei os braços.

— Claro que não. É por isso que precisamos da sua ajuda.

Tâmi arregalou os olhos.

— Nãããão...

—  O quê?

Tâmi afundou no rio até a altura dos ombros.

— Enfurecer Taiga é uma péssima ideia.

Lorena pigarreou.

— Quem é Taiga? — Ela perguntou, finalmente.

— Um problema... — Respondeu Dois, de dentro da bolsa.

— Um Espírito — explicou Um, revirando os olhos.

 — É quem vigia a passagem para o Outro Lado, para que os vivos não passem — Tâmi completou.

Lorena assentiu, depois de finalmente entender alguma coisa.

O Espírito do rio se virou para Um e Dois.

— Vocês dois enganaram ela antes. Como fizeram?

— Era solstício... — os dois responderam, com a voz baixa.

O solstício de inverno era o ponto fraco de Taiga, e quando era mais fácil passar ela pra trás. Com tantos Espíritos passando para o lado de cá, ela ficava confusa e distraída. Sobrecarregada, talvez. E muito, muito mal-humorada...

— Não dá pra esperar o solstício, Tâmi... Por favor.

Estralei os dedos de uma mão. A orelha de Tâmi tremelicou com os estalos. Ela encarou minhas mãos, encarou Lorena e voltou a me encarar. Depois, se levantou e começou a andar, subindo o rio.

— Tudo bem... — Resmungou.

Lorena sorriu e sussurrou para Tâmi, achando que só ela iria ouvir:

— Obrigada.

— Me agradeça se conseguir o que quer — O Espírito respondeu, enquanto gesticulava para Lorena continuar seguindo em frente, seguindo o desenho que o rio fazia.

E Lóris foi, enquanto conversava com Um e Dois à tiracolo.

Tâmi seguia ao lado dela, em silêncio, mas virou um pouco a cabeça e me encarou de canto de olho.

O que aconteceu com você?!, perguntou. Você desaparece e de repente volta me pedindo favores. Ela fez uma pausa, franziu o nariz e continuou: Volta com cheiro de... mortal? Eu nem sei explicar...

Suspirei.

Eu precisava explicar tudo pra Tâmi, uma hora ou outra. Mas não sentia que a hora era agora. Eu já tinha meu irmão na cabeça, e agora precisava pensar também em como fazer Lorena passar ilesa por Taiga. E, apesar de eu também precisar de esclarecer algumas coisas com Tâmi, sobre a pedra, meus pensamentos giravam rápido demais pra eu querer a voz dela na minha cabeça agora. Minha própria voz já soava alto demais...

Não aconteceu com Yasuko, mas é verdade..., comecei a responder. Qualquer Espírito pode cair.

 


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