A Pele do Espírito escrita por uzubebel


Capítulo 25
Capítulo 24


Notas iniciais do capítulo

Estamos chegando na reta final. Pelas minhas contas, faltam apenas mais 7 capítulos para a história terminar. Então muito obrigada a todo mundo que tem acompanhado até agora. Obrigada por continuarem aqui.



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Lorena

Foi um pouco surpreendente descobrir que o rio não nascia no vale que todos pensavam. De acordo com Tâmi, ele seguia por baixo da terra por um grande pedaço, até minar de novo na superfície. A nascente mesmo, pelo que ela explicou no caminho, ficava na montanha pra onde íamos. Disse isso antes dela desaparecer, seguindo o caminho da água pelas passagens subterrâneas que aparentemente existiam, e me deixar sozinha com Byakko outra vez.

Ele mal tinha conversado comigo desde que encontráramos Tâmi. E desde antes disso, quando voltou com a corda, quando desceu da árvore e caminhou ao meu lado... Toda vez que ele ficava quieto, desde que amanhecera, eu sentia uma certa tensão na postura dele. As sobrancelhas sempre baixas, o maxilar trincado, os ombros rígidos e a mão segurando a corda com força. Ele nem prestou atenção em Tâmi quando se despediu e disse que nos encontraríamos do outro lado, onde quer que seu rio continuasse.

O problema era que eu não sabia pra onde ir, nem ele parecia lembrar de que precisava me contar.

Pigarreei.

— Então... Pra que onde nós vamos.

Byakko finalmente levantou a cabeça. Ele olhou ao redor por um minuto, como se nem soubesse de forma chegara ali, e finalmente apontou adiante:

— Por ali.

E continuou, de cabeça baixa e em silêncio, como tinha andado até aqui.

Suspirei, mais pra mim mesma do que pra Byakko, que passava ao meu lado.

— Não se preocupe — disse Dois. — Nós também sabemos o caminho.

Sorri e voltei a andar.

— Eu tinha me esquecido de que vocês já tinham feito isso. Digo, ir para o Mundo dos Mortos.

— É... — Um comentou. — Não que tenha sido uma viagem muito boa pra gente.

— Infelizmente, graças ao que nos tornamos, o máximo que podemos fazer pra te ajudar é mostrar o caminho mesmo — Dois acrescentou.

— Tudo bem — dei de ombros.

Foi quando parei pra pensar que não tinha sequer perguntado aos dois se eles queriam mesmo vir. Se queriam voltar ao lugar onde tudo tinha dado errado e onde tinham perdido a irmã.

— Acham que vamos encontrar a irmã que vocês perderam?

Os dois viraram os olhos, como se pensassem em alguma coisa, e depois se entreolharam; o tipo de coisa que só faziam quando tinham algo na ponta da língua, mas precisavam mordê-la antes que um segredo escapasse.

— Talvez — responderam juntos.

E eu soube na hora que estavam me escondendo alguma coisa. Eu só não sabia se era algo que dizia respeito a mim ou apenas a eles, então deixei pra lá.

— Vocês acham que, se a encontrarmos, ela ainda pode ser salva? Como vocês tentaram?

Eles se calaram um minuto, franzindo as sobrancelhas ornamentadas de ferro fundido.

— Nós já desistimos disso. Não sabemos se ela pode ser salva de... — Um se interrompeu no meio da frase. Só não sabia se era algo que não podia ser dito ou algo que ele não queria dizer, por ser doloroso demais.

— Mas nós estamos juntos. E temos Byakko! — Apontei pra ele, que caminhava alguns passos adiante de nós, distraído.

Os irmãos suspiraram.

— Mas ele também estava lá da última vez... — Disseram.

 

***

 

Eu não soube bem o que fazer com aquela informação, então simplesmente... fiquei quieta, tentando pensar no que aquilo significava. Um e Dois já haviam me contado como nasceram e cresceram na cidade destruída – antes dela ter sido destruída, é claro – o que, de uma maneira estranha, nos tornava parte do mesmo povo. Mas agora eu começava a acreditar que eles não só viveram lá, mas que estiveram lá na época em que a cidade foi destruída. Eles claramente não estavam na cidade na hora que tudo aconteceu, afinal tiveram um destino completamente diferente de todos os outros e estavam aqui. Então, onde eles estavam?

Sacudi a cabeça. Eu obviamente não sabia de tudo o que precisava pra deduzir sozinha, e pensar nisso estava me dando dor de cabeça. Ou talvez fosse a fome... Estávamos andando há meio dia e ainda não tínhamos parado para descansar e comer. A água no cantil também estava acabando, e eu não sabia quando o rio Tâmi voltaria a aparecer na superfície.

Hmm...

— Byakko...?

Vi-o levantar a cabeça como um animal surpreendido por um ruído suspeito, ainda de costas pra mim. Depois ele parou de andar e finalmente se virou, um pouco devagar demais. Eu ainda conseguia ver a linha reta que seus ombros tensos faziam, e sua reação parecia tão ansiosa quanto sua postura. Eu não sabia o que o estava deixando assim – o que possivelmente deixaria um Espírito como Byakko nervoso assim – mas estava começando a ficar nervosa também.

— Oi — ele respondeu, enquanto eu me aproximava.

— Eu preciso parar pra descansar um pouco e comer — sacudi o cantil, — e a água também está acabando. Falta muito pro rio aparecer de novo?

Byakko estendeu a mão, pedindo o cantil.

— Tudo bem, você pode se sentar na sombra pra comer — inclinou a cabeça pra vegetação à nossa direita. — Eu vou buscar água e já volto

E sumiu.

Suspirei. Me virei para as árvores mais densas ao fundo e caminhei em sua direção. Escolhi uma de tronco grosso pra me sentar apoiada e cruzei as pernas. Abri a bolsa e vasculhei seu interior atrás de carne seca e frutas, o que eu achasse primeiro, porque meu estômago roncava. Comi quase sem parar pra respirar.

Quando terminei e percebi que Byakko ainda não tinha voltado, suspirei. Não sabia por que ele estava demorando tanto a buscar água sendo que podia simplesmente se teletransportar de um lugar pra outro, mas me convenci de que uns minutos a mais de descanso não iam fazer mal. Apoiei a bolsa pesada no chão, estiquei as pernas, alonguei os braços e depois apoiei as mãos no chão atrás de mim. Foi quando senti os seixos redondos massageando minha palma, de um jeito estranhamente familiar.

Olhei ao redor, dessa vez reparando bem na textura do chão, e entendi o motivo: eu estava sentada numa trilha gasta e abandonada, o mesmo chão pavimentado de seixos redondos e meio coberto de vegetação e de terra com o qual vinha sonhando havia um tempo. Me levantei num pulo. Olhei para a trilha que vinha da esquerda e seguia para a direita, em frente, em direção à montanha. Estávamos andando paralelamente a ela havia horas e só agora eu a tinha percebido.

E, se a trilha era real, os sonhos também não eram só... sonhos. Eram?

A trilha, o caminho para a montanha, as pilastras, o Espírito fingindo ser Byakko... Então era tudo real?

Repassei os sonhos na minha cabeça, as histórias que tinha ouvido, o rosto do homem nos meus sonhos – tão parecido com Byakko, mas com olhos e cabelos de cor diferente. Nunca tinha me passado pela cabeça que Espíritos irmãos guardariam alguma semelhança, todos os Espíritos que eu tinha conhecido eram tão diferentes um do outro, mas essa não seria a coisa mais absurda em todo o meu tempo em meio à eles. De repente pareceu um pouco óbvio demais que o Espírito que me assombrava nos meus sonhos era Yasuko.

O Espírito que tinha vendido as almas de todo o meu povo em uma aposta, e consequentemente a minha também. Uma dívida que, graças a Byakko, ele ainda tinha.

E que talvez quisesse quitar...

Mesmo que eu já tivesse prometido me entregar à Isméria de bom grado, Yasuko podia muito bem não saber disso. Afinal, os sonhos vinham acontecendo há anos.

Olhei para baixo, para Um e Dois, aninhados dentro da minha bolsa, com suas caras confusas. Olhei para o que eles tinham se tornado, depois de enfrentar Yasuko. E percebi que talvez, só talvez, houvesse um bom motivo pra Byakko andar tão nervoso com essa jornada...

 

***

 

Quando Byakko voltou, alguns minutos depois de eu terminar de comer, ele me entregou o cantil d’água e apenas me disse para segui-lo, e foi andando na direção da montanha. Apesar de claramente estar incomodado com alguma coisa, ele não tinha sugerido, hora nenhum, que voltássemos ou deixássemos minhas memórias pra lá. Ele só continuou me indicando para onde ir até o rio reaparecer e Tâmi se juntar a nós de novo, seguindo pela água rasa. Eu só esperava que, independentemente do que a postura de Byakko significasse, o fato de ainda estarmos seguindo adiante fosse sinal de que ele sabia o que estava acontecendo. Ou de que pelo menos tinha um plano. E me deixei iludir por isso enquanto passávamos entre as duas pilastras que eu já conhecia dos meus sonhos.

Parei de novo pra comer e descansar ali, apoiada numa das pilastras solitárias da mesma cor da pedra de que era feito o templo de Byakko. Talvez tivessem sido colocadas ali pelas mesmas pessoas, inclusive. Meu corpo doía depois de quase 10 horas de caminhada, e mal tínhamos começado a subir a montanha. Eu já queria ficar ali mesmo e continuar na manhã seguinte, mas Byakko disse que não estava longe, agora. Que me ajudaria a subir, se fosse preciso.

Imaginei se iria me carregar, também.

Quando me levantei e alonguei os ombros, já me arrependendo da bolsa pesada, Byakko me estendeu uma das pontas da corda que tinha trazido.

— Amarre na cintura e nas pernas, como uma cadeira. Vou te puxar quando estivermos subindo.

Assenti. Enquanto isso, ele tirou a túnica, pegou a outra ponta e começou a amarrá-la no próprio corpo; mas, ao invés de passar a corda pela cintura como tinha me mandado fazer, ele a passou ao redor dos braços, dos ombros e do tronco, como um colete. Só se enrolou um pouco na hora de fazer o nó na frente do peito. Me adiantei um passo e bati de leve na mão dele.

— Me dá — pedi a ponta da corda.

Byakko levantou uma sobrancelha, mas tirou os dedos do caminho. Fiz o tudo num movimento só, enquanto ele observava.

— Logo se vê que nunca precisou amarrar uma canoa na vida.

Tâmi riu atrás dele.

Puxei a corda com força para testar o nó e me assustei quando Byakko se desequilibrou pra cima de mim. Ele me segurou pelos ombros, mas não chegou a cair. Só me encarou com os olhos arregalados de surpresa. As mãos quentes em cima de mim, como eu nunca tinha sentido antes.

Eu me lembraria, não é?

Recuei um passo e ele me soltou.

— Desculpa, eu devia ter avisado.

Suas mãos caíram ao lado do corpo.

— Tudo bem.

Tâmi se despediu mais uma vez e disse que nos encontraria lá em cima, onde quer que fosse. A água de seu rio escorria pela montanha, ou caía lá de cima em pequenas cascatas, ou desaparecia dentro das rochas outra vez. Ela seguiria pelo próprio caminho, e nós por outro, porque seu fluxo tinha esculpido faces íngremes demais na rocha. Um lugar que seria perigoso escalar. E escorregadio.

Ficamos de costas para o sol poente enquanto subíamos a montanha. Minhas pernas doíam muito, mas não foi tão puxado quanto eu esperava. Em alguns pedaços, havia degraus estreitos esculpidos na rocha, por onde subíamos um passo atrás do outro; mas, quando o caminho era íngreme demais e precisava ser escalado, era Byakko quem fazia todo o esforço. Ele subia, as garras se prendendo às pedras como no dia que me resgatara do penhasco, e, quando chegava à algum lugar seguro e plano mais acima, me içava pela corda.

Byakko me puxou para uma rocha meio úmida e senti gotículas de água na minha pele. O vento estava frio e logo ficaria escuro demais para escalarmos. Bom, pelo menos pra mim. Acima de nós, à esquerda, se projetava da montanha uma rocha comprida, de topo plano, uma sacada natural enorme sobressaindo da paisagem ao redor. Água escorria das bordas do pedregulho, formando um véu de pequenas cascatas brilhantes como o fogo do sol que se punha. Isso explicava a humidade suspensa no ar e o chiado constante no meu ouvido. As cascatas mais próximas passavam pela rocha em que estávamos de pé e caíam lá embaixo, num fosso fundo que engolia a água como uma garganta. Fiquei na ponta dos pés, na ponta da rocha, para alcançar a água. Estendi as duas mãos em concha pera o véu mais próximo e bebi um gole.

— Ei!

Levantei a cabeça. Tâmi estava lá, no terraço, acenando para nós dois. Encarei Byakko.

— Nós chegamos?

Ele olhava para cima, meio pensativo, mas abaixou o rosto e me encarou de volta.

— Falta pouco — respondeu, virando-se de novo para a montanha, procurando onde se segurar para subir até onde Tâmi nos esperava.

Ele não precisou de mais que três pulos pra chegar lá. Caminhou até Tâmi, segurou a corda com as duas mãos e gesticulou pra que me segurasse também, pois me traria pra cima. Ele apoiou a corda na rocha, numa face mais arredondada, até que ela estivesse esticada, e começou a puxar. Por um momento, eu observei o sol desaparecendo no horizonte; olhei pra baixo e vi as duas pilastras solitárias lá embaixo, pequenas como palitos; vi a trilha de seixos desaparecendo no meio das árvores e olhei na direção da vila, do mar lá do outro lado. Eu estava exatamente no mesmo ponto do meu último sonho. Tinha chegado tão perto... Olhei pra cima, pra Byakko, mas eu estava abaixo da rocha e não conseguia vê-lo. Só podia imaginar a expressão preocupada em seu rosto. A mesma que ele tinha usado a viagem inteira.

Por algum motivo, eu não sabia se devia mesmo ficar feliz por estar aqui, correndo atrás das minhas memórias. Havia um grande “porém” no ar, que ninguém fazia questão de me explicar. Nem Um e Dois.

Exceto, talvez...

Quando cheguei ao topo, tateei a rocha, tentando encontrar um ponto para me segurar e me içar para cima. Apoiei as mãos primeiro, depois os cotovelos, e me arrastei para cima. Byakko me puxou pela corda na cintura, até eu colocar os joelhos na sacada de pedra, e me ajudou a me levantar.

— Agora podemos descansar — ele tentou sorrir pela primeira vez no dia.

Empurrei Byakko um pouco para o lado.

— Uou...

Dali, do alto da rocha, eu conseguia ver quase a ilha toda, igual tinha visto enquanto Byakko me suspendia pela corda. Mas, na outra direção, na direção da montanha, havia algo que eu nunca vira. Havia um portal enorme, um arco escavado na rocha, da altura de quatro ou cinco pessoas. As ombreiras eram esculpidas em baixo relevo com várias imagens e arabescos, como se contassem uma história, e no alto, no arco, havia símbolos, algo escrito em outra língua, como o nome de Byakko no amuleto. A água fluía através do arco de pedra, indo de dentro para fora da montanha, se espalhando pela sacada plana e escorrendo pelas beiradas. Então era ali, naquela face escura na montanha, onde o Tâmi nascia. A água límpida corria por veios na rocha, uma teia brilhante, e passava por baixo das patas de duas estátuas enormes que ladeavam a entrada da caverna: dois felinos enormes, de bocas arreganhadas, um branco e um negro, ambos com duas caudas cada. Um era esculpido da mesma rocha clara do templo de Byakko, tinha a cabeça abaixada e os dentes à mostra, mas parecia mais um gato curioso do que um animal acuado. O outro era esculpido numa pedra tão negra e polida que brilhava, tinha a cabeça levantada e a boca aberta, julgando todos que passavam abaixo dele, mas com cara de que nada realmente valia à pena ser engolido. Dei um passo pra frente, pensando em tocar as estátuas, mas recuei. E foi só então que percebi que eu estava errada: não era as pessoas que passavam, ou a entrada da caverna, que as estátuas vigiavam, e sim um ao outro. Um com a cabeça abaixada, o outro com o corpo e a pata levantada, correndo um atrás do rabo do outro. Como no mural do templo de Byakko.

Finalmente caminhei até a estátua mais clara. Levantei a mão para seu focinho e toquei a pedra fria.

— É você? — Perguntei, me virando para Byakko.

Ele cruzou os braços, seu sorriso tinha sumido. Me virei para a estátua escura, atrás de mim.

— E aquele é Yasuko — dessa vez eu afirmei.

Olhei Byakko de cima abaixo, depois puxei da memória a aparência de Yasuko, que eu achava que tinha visto nos meus sonhos. Com exceção dos olhos... Byakko nunca tinha me parecido nada além de humano, nesses anos todos.

— Mas... Como?

Ele se aproximou de mim, mas encarou a própria estátua de longe, com os braços recolhidos.

— Essa forma eu tive muito antes da humanidade como você imagina. Num tempo quando a morte, para vocês, eram os animais que rondavam as cercas de seus acampamentos. Um tempo em que os humanos ainda tinham medo do escuro...

Levantei a cabeça.

— Então você não é mais assim?

Byakko finalmente estendeu a mão e tocou a boca semiaberta da estátua, passando o polegar por suas enormes presas.

— Você ouviu, não ouviu? Aquela noite... E viu as marcas nas paredes depois — ele me encarou.

Ah, o templo... A noite em que ele tinha ido embora, as marcas de garras e os rugidos.

Eu quase tinha me esquecido.

Os rugidos vieram de algum lugar..., Um e Dois tinham me dito. Nunca foram as almas dos mortos. Mas ele nunca aparece nessa forma...

Os dois estavam certos, ele nunca tinha aparecido nessa forma, na minha frente. Eu só podia imaginar como era, pelas estátuas, os desenhos em seu templo, os olhos, as garras... Pela forma como ele se afastou da estátua, também, imaginei que ele não estaria disposto a me mostrar apenas para satisfazer minha curiosidade. E pelo mesmo motivo eu resolvi deixar pra lá.

Byakko caminhou até o arco da caverna e se sentou, com as costas apoiadas na rocha. Tâmi se aproximou de mim pelas costas, pôs as mãos frias no meu ombro e me empurrou na mesma direção.

— Você precisa comer e descansar.

Olhei para ela e depois para Byakko.

— Espera, nós vamos dormir aqui fora?

Ele levantou a cabeça e cruzou as pernas.

— Você não vai querer conhecer a caverna agora. Não no escuro — ele respondeu.

Um vento gelado me atingiu em cheio quando parei na frente de Byakko e cruzei os braços para me aquecer.

— Mas aqui fora está... frio.

Dei um passo para o lado, para mais perto da entrada da caverna e para longe do vento, e senti uma lufada quente atingir meus pelos arrepiados. Levantei a mão na direção da abertura da caverna, um caminho alto e estreito coberto de escuridão, e senti o ar quente na ponta dos dedos. Ar quente escapava da caverna, como uma respiração. Como se o arco esculpido fosse a boca de um animal enorme. Me virei para os dois Espíritos.

— Por que lá dentro o ar parece ser quente?

— Porque ele é quente — Tâmi respondeu. — Você não tocou a água que sai da caverna, tocou?

Pisquei. Me abaixei e coloquei a ponta do dedo na água que passava devagar ao meu lado.

— Ela é... morna. — Levantei a cabeça e encarei Tâmi — Mas, por quê?

Foi Byakko quem respondeu:

— Porque essa montanha é, ou era, um vulcão.

Sentei-me no chão, ao lado dele.

— Eu nunca ouvi falar isso. Ninguém na vila sabe. Isso não é perigoso?

— Não. O vulcão está extinto há muito tempo. Mas, mesmo que o vulcão esteja inativo pra sempre, abaixo dele a terra ainda pega fogo, e as rochas são finas e aquecem a água que brota.

Isso explicava a respiração quente e úmida da caverna.

— Mas por que o vulcão está extinto?

Byakko e Tâmi se entreolharam por um tempo, até o sol sumir de vez no horizonte, levando a luz alaranjada consigo e deixando o mundo coberto por um véu azulado de sombras. O Espírito do rio chiou por entre os dentes afiados, como se suspirasse, e respondeu:

— Porque seu Espírito está morto.

 

***

 

Nenhum dos dois quis me explicar direito o que aquilo significava, além do óbvio, mas que me parecia inacreditável: Espíritos podiam morrer de alguma maneira. Podiam desaparecer, ser destruídos, ou sei lá. E, se a morte de seu Espírito tinha transformado o vulcão numa mera montanha dormente, o que aconteceria com outros? O que aconteceria se fosse o sol, a lua, ou o mar? Eu nem conseguia imaginar.

Finalmente, o frio e a escuridão nos alcançaram de uma vez e Tâmi convenceu Byakko e ir buscar alguma lenha para que eu acendesse uma fogueira, já que nenhum dos dois ia mesmo me deixar entrar na caverna para dormir. Ele tirou sua túnica dos ombros, colocou sobre mim e desapareceu. Eu me aninhei, encolhida sob o tecido morno. Encarei minha bolsa, largada no chão ao lado das patas das estátuas, à alguns passos de mim. Um e Dois provavelmente não sentiam frio, mas pelo menos estavam cobertos também. Ouvi um ruído e, quando me virei, Tâmi estava ao meu lado, o mais próximo que podia sem deixar a água de seu rio.

— Agora você já pode perguntar o que quer, menina — ela disse, sorrindo sem mostrar seus dentes afiados.

Pisquei. O Espírito afundou mais na água, até a cintura – de uma maneira mágica, com certeza, já que a água aqui não passava de três dedos de altura – apoiou os braços na rocha e me encarou.

— Vamos — ela me encorajou. — Eu sei que você quer saber de algo.

Abri a boca. Tâmi levantou um dedo comprido e fino.

— Qualquer coisa, menos sobre o vulcão.

Meus dentes se fecharam com um clique.

— Não era isso que eu ia perguntar.

Ela levantou sua sobrancelha sem pelos e se ajeitou em sua minúscula poça d’água.

— Pergunte, então.

Bom, pelo menos uma coisa estava me preocupando desde a manhã. Encarei minha bolsa distante de mim, calculei na minha cabeça se os dois poderiam ouvir nossa conversa de onde estavam e perguntei, baixinho:

— Por que eu tenho a impressão de que Byakko está incomodado com alguma coisa?

Tâmi deu uma risadinha.

— Ele não consegue disfarçar, não é mesmo? — Ela apoiou o queixo nas mãos. — Ele sempre tem coisa demais na cabeça, até para um Espírito.

— O quê?

— Byakko sabe que, assim que vocês atravessarem, ele vai precisar enfrentar o irmão pra poder devolver suas memórias pra você. E, bem, quando se trata de Yasuko, ele já falhou antes. Ele tem medo de falhar de novo, e tem medo de te colocar em perigo por causa disso. Byakko não se perdoaria se você se machucasse, e mesmo assim... Aqui estamos nós, porque ele prometeu que faria isso, que faria a coisa certa.

Me lembrei da noite em que Byakko tinha me contado a verdade, de como seu corpo estava tremendo quando ele admitiu ter falhado várias e várias vezes quando se tratava de afastar Isméria da minha família. Me lembrei de como ele não olhou pra mim quando admitiu ter falhado com meus pais e ter falhado comigo. Tudo aquilo era um problema pra ele. Seu irmão era um problema pra ele. E mesmo assim ele estava me trazendo, um passo atrás do outro, para o meio de uma situação que ia machucá-lo, com certeza. E eu nem tivera a decência de conversar abertamente com ele sobre isso e saber como se sentia. Mas eu era um caso perdido, é claro... Mal tinha contado sobre Isméria, com medo de, por isso, perder a chance de ter minhas memórias de volta. Enquanto isso, Byakko estava se machucando e sofrendo pra me dar o que eu queria. E tudo ainda parecia estar ligado àquela aposta...

— Um e Dois me disseram uma coisa mais cedo. Disseram que Byakko estava lá quando eles tentaram salvar a irmã deles, e mesmo assim os dois falharam. Tudo isso tem a ver? E tem a ver com a aposta de Yasuko e Isméria?

Tâmi apertou um pouco os olhos e me encarou. Provavelmente pensando sobre se, o que quer que fosse, deveria ser contado ou não.

— Não é diretamente ligado a você e sua família, mas... — Tâmi fez uma pausa. — Sim, tudo tem a ver, como você disse. Afinal, Isméria nunca teria conseguido destruir a cidade se Byakko estivesse lá. Ela sempre soube que, numa disputa direta, perderia. A maioria dos Espíritos perderia se estivesse na mesma situação. Mas não Yasuko...

— Ele é tão... — pensei bem em qual seria a palavra certa para usar. — Poderoso quanto Byakko?

O Espírito olhou para o lado, pensando.

— Provavelmente... Mas não é esse o motivo. A verdade é que Byakko sofre quando precisa confrontar o irmão, e Yasuko sabe disso. Eles já foram muito unidos, sabe. Já foram a sombra um do outro. Acho que, de uma outra maneira, ainda são...

Ajeitei-me contra a rocha, pensando se eles tinham se distanciado depois da aposta ou muito antes disso. O que tinha acontecido...?

Tâmi continuou:

— Yasuko tinha um motivo para querer que Isméria conseguisse o acordado, algo além da própria aposta feita. A garota por quem ele se apaixonou... Ela era um deles. Uma das almas que Isméria tinha o direito de reivindicar. Mas ele não queria entregá-la. Ele a queria. Então, Yasuko fez outro acordo com Isméria: ele atrairia Byakko pra longe da cidade, seria uma distração, e Isméria teria os outros de bandeja. E em troca a Serpente prometeu que não a teria. Que ela estaria segura com Yasuko.

Eu estava tremendo. Não sabia se por causa do frio, ou se por causa do que estava ouvindo, mas sabia que não queria conhecer Yasuko. Não queria conhecer o Espírito daquelas histórias...

— Qual era o nome dela? — Perguntei, baixinho.

— Mérope — Tâmi respondeu, se levantando um pouco. E suspirou antes de continuar. — Yasuko a sequestrou, tirou ela da cidade. Quer dizer, ele precisava que ela não estivesse lá quando Isméria fizesse o que planejava, então uniu o útil ao agradável. Levá-la ao Mundo dos Mortos gerou exatamente a comoção que ele queria, porque ela tinha dois irmãos que logo foram atrás dela... — Seu olhar se desviou para a minha bolsa afastada e depois voltou para mim. — E foi como a mensagem alcançou Byakko.

Ela fechou e esfregou os olhos com os dedos longos.

— Esses dois patetas foram atrás da irmã sozinhos. Como disseram mais cedo, era solstício, então enganar Taiga não foi nenhum problema. E quando Byakko soube o que eles planejavam, correu logo atrás dos dois. Pra tentar evitar que Yasuko fizesse coisa pior com os idiotas. Só que não chegou a tempo. Yasuko já os tinha punido pela ousadia de tentar enfrentá-lo. Tinha matado a irmã na frente deles, para tê-la para sempre, e depois os puniu. Byakko só chegou a tempo de salvar os dois de coisa pior, e então, enquanto ele estava lá... A Serpente agiu. E ele estava longe demais para dar tempo de fazer algo. O que foi que ele me disse na época... — Tâmi bateu no queixo, pensando. — Disse que sentiu tudo, na hora. Como milhares de velas enterradas na areia, sendo apagadas por uma onda.

Engoli em seco.

— Então Byakko se culpa porque não conseguiu proteger as pessoas na cidade, nem Mérope, nem Um nem Dois?

Ela assentiu.

— Ele conseguiu se redimir, mais ou menos, com as pessoas da cidade depois. Ele os transformou em outra coisa, mas em algo tão vivo quanto Mab, ele e eu. Tão vivo quanto um Espírito pode ser. Mas algo no meio do caminho. Um e Dois, no entanto, não podiam se tornar o mesmo sem seus nomes e sem seus corpos, então Byakko os trouxe de volta e os colocou no templo. Mas Mérope... Ela ficou com Yasuko. Se algum dia ela sair de lá, se sair do Mundo dos Mortos, ela será de Isméria. E isso nem Byakko nem Yasuko queriam.

Então Byakko não podia ajudá-los. Ele não tinha só falhado, também não podia fazer nada a respeito. Não podia compensar, como tinha tentado fazer comigo, e como tinha feito aos outros – o que quer que tivesse feito, afinal. Aquilo devia deixá-lo maluco. E eu, sem saber, tinha trazido Um e Dois comigo, achando que ajudaria, que poderíamos fazer alguma coisa diferente dessa vez, ajudar Mérope. Mas não havia o que fazer.

Tudo o que eu tinha feito até agora, para conseguir o que eu queria, para conseguir minhas memórias de volta, estava machucando meus amigos.

Eu estava com tanto frio...

 

Byakko

— Mas você acha que Um e Dois gostariam de ter a chance de poder ajudar a irmã...? — Ouvi Lorena perguntar quando voltei.

— Tenho certeza de que eles fariam qualquer coisa — Tâmi respondeu, antes de olhar pra mim.

Assim que percebeu, Lorena também me encarou. Ela estava completamente encolhida no canto, abraçando os próprios joelhos por baixo da túnica, com a boca tensa e as sobrancelhas contraídas. Ela puxou um pouco o canto dos lábios, um gesto muito leve, mas meio duro, e disse:

— Você demorou um pouco.

Suspirei.

— Desculpe. Eu não... Hmm. Não sabia quais os galhos certos pra trazer.

Uma meia-verdade. Mas ainda era melhor que verdade nenhuma.

— Desde que não tenha trazido galhos verdes ou úmidos, está tudo bem — ela explicou, se levantando.

Lóris foi até a bolsa, jogada ao meu lado, e se abaixou para pegá-la. Abriu, ignorou as caras entediadas de Um e Dois, e puxou o sílex lá de dentro.

— Trouxe folhas secas também?

Assenti e puxei um punhado delas de dentro dos bolsos. Ela e eu voltamos andando até a parede inclinada da montanha, onde o vento não pegava tão diretamente. Lóris largou a bolsa no chão montou a fogueira, um galho em cima do outro, e no espaço meio oco no centro ela fez um ninho com as folhas secas. Ela jogou faíscas sobre as folhas e cobriu a pequena chama que surgiu com as mãos, para não se apagar com o vento. Logo a fogueira estava queimando, Lorena colocou Um e Dois de frente pro fogo – os irmãos bocejaram também – e se apoiou nas rochas, enquanto estendia a mão para o fogo, com os olhos pesados.

— Bem melhor agora — murmurou.

Um e Dois concordaram, cansados demais para responder.

Depois ela cruzou os braços e se inclinou até apoiar a cabeça no meu ombro. Prendi a respiração. Não tive nem tempo de ter medo de me mexer: Lorena caiu no sono quase instantaneamente, exausta. As aldrabas foram pelo mesmo caminho, logo em seguida.

Tâmi estalou a língua.

— Você não pretendia contar nada pra ela, né?

Encarei-a até perceber do que ela falava. Depois, desviei o olhar e cruzei os braços.

— Você não aprendeu nada, Byakko? — Tâmi me repreendeu, falando um pouco mais alto, mas, por sorte, Lorena não acordou, só se mexeu um pouco. — Por que não contou tudo logo pra ela? Por que não disse como se sente?

Joguei a cabeça pro lado, estralando o pescoço.

— Porque preciso fazer isso. Preciso concertar o que eu fiz. E tenho medo de que, se Lorena souber como me sinto, vai desistir das memórias por causa disso.

Tâmi apoiou as mãos espalmadas no chão, apertando os olhos leitosos na minha direção.

— E isso faz sentido pra você?

Pisquei.

— Claro.

— Você tirou as memórias de Lorena para compensar a perda dos pais dela, e agora quer devolvê-las para compensar o fato de tê-las tirado em primeiro lugar. Quando é que vai deixá-la fazer as próprias escolhas e lidar com sua culpa sozinho?

Abri a boca.

Tâmi sacudiu a cabeça e começou a afundar na própria água rasa, até desaparecer.

— Quando é que vai perceber que o único que precisa ser salvo do passado é você, Byakko?

 


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