A Pele do Espírito escrita por uzubebel


Capítulo 23
Capítulo 22




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 Lorena

Fiquei na água rasa enquanto via as luzinhas de cada canoa se afastarem até sumirem, engolidas pelo buraco no horizonte. Apesar de estar na água só até a cintura, eu me sentia gelada por inteiro. Era noite e eu tremia de frio, e de vazio. De repente, eu me senti perdida e sem perspectiva: eu tinha passado os últimos dois anos cuidando de Dorothea, evitando todo o resto, deixando tudo para depois, depois, depois... E agora que eu tinha chegado aqui, no “depois”, eu não tinha nada, nem ideia de pra onde ir. O que ia fazer agora?

Senti um toque quente e reconfortante na mão. Virei para trás e vi Byakko, mergulhado até a cintura no mar, de roupa e tudo. Exceto sua túnica, que eu vi dobrada na areia, atrás dele. O tecido claro das roupas leves dele ficava meio transparente quando molhado, de um jeito que as minhas roupas amarronzadas não ficavam... Fiz um pouco de força para enxergar melhor no escuro, mas eu não conseguia ver direito com as ondas subindo e descendo, cobrindo-o... Se a água recuasse só um pou...

— Você vai adoecer desse jeito — ele disse, interrompendo meus devaneios. Virei o rosto e coloquei uma mexa de cabelo atrás da orelha.

Byakko me puxou pela mão e me levou de volta até a praia; depois, estendeu sua túnica e cobriu meus ombros com ela. E me empurrou na direção de casa, como se eu não soubesse o caminho. Revirei os olhos, mas me deixei levar. Era tão mais fácil assim, quando alguém lhe dizia o que fazer...

Quando chegamos, ele atiçou a fornalha da cozinha, reavivando as chamas, e acendeu as lamparinas, para iluminar e aquecer a casa. Tudo de um jeito meio desajeitado, como se não tivesse prática nenhuma. Depois colocou uma cadeira ao lado do fogo sem explicar muito – mas eu imaginei que fosse para eu me sentar – e saiu para buscar mais lenha. Minhas roupas molhadas estavam grudando na minha pele e me incomodando bastante. Bufei. Só me sentar na frente do fogo e esperá-las secar não seria o bastante, eu teria que me trocar. Abri a porta do meu quarto de cabeça baixa e esqueci que fazia tempo que não tinha mais tanta privacidade assim lá dentro. Até ouvir Um e Dois:

— Você conseguiu, não foi?

Encarei as duas aldrabas

— Você o achou — Dois explicou.

Tá, eu não ia mesmo conseguir evitar essa conversa para sempre...

Joguei a túnica de Byakko sobre a cama e cruzei os braços quando senti um ventinho frio me cercar. Estendi a mão e fechei a janela. Pensando bem, tinha sido Byakko quem tinha me encontrado, caindo... E não o contrário. Mas como eu ia explicar isso?

Agora que eu tinha parado para pensar, Um e Dois ainda não tinham visto ele desde que voltara. Quando ele chegou e levou Dorothea, os dois estavam no quarto fechado; depois, quando voltou, Byakko entrou e saiu pela janela, enquanto eu tinha colocado os dois no corredor; e, finalmente, enquanto preparávamos o funeral de Dorothea, os dois tinham estado no quarto outra vez. Eles deviam tê-lo ouvido, é claro, mas não tinham visto com seus próprios olhos. É claro que queriam saber...

— Eu vou levar vocês para verem ele, assim que me vestir — disse, virando a cara dos dois para a parede antes que soltassem um comentário espertinho.

Estendi a túnica para secar nos puxadores da janela e vesti roupas quentes. Quando saí com Um e Dois nos meus braços, Byakko me procurava na cozinha. Ele sorriu quando viu os irmãos.

— Fico feliz que Lorena tenha tirado vocês do templo antes de algo ruim acontecer.

Os dois se entreolharam.

— Nós também — e sorriram meio amarelo.

Lembrei do escândalo que tinham feito na hora do machado, da história que tinham contado com desespero e ri das lembranças.

Isso..., pensei. As lembranças.

Voltei correndo para o meu quarto enquanto Byakko, Um e Dois me observaram sair, sem entender nada. Levantei a tábua do assoalho e pesquei todas as folhas que estavam jogadas lá embaixo, e o que tinha sobrado dos meus cadernos. Fiz um montinho com tudo, equilibrei as folhas soltas e rasgadas no topo, e voltei pra cozinha equilibrando a pilha nos braços. Byakko levantou as sobrancelhas, sem entender o que eu fazia. Ele pegou a metade de cima da pilha, as folhas que começavam a escorregar, e as colocou na mesa. Coloquei o resto ao lado e me sentei na cadeira mais próxima do fogo, sentindo alguma coisa finalmente derreter dentro de mim. Eu tinha anos e anos guardados ali, naquelas páginas. Anos de Dorothea, que nunca iam se perder: receitas, anotações, manias, relatos... Anos de todos ao meu redor. E anos meus.

Talvez alguma coisa ali me dissesse o que fazer agora...

Byakko puxou a capa do meu caderno de debaixo da pilha de folhas avulsas, abriu-o e viu os restos de folhas rasgadas nas costuras. Ele levantou a cabeça.

— O que aconteceu? — Perguntei.

Suspirei. Parecia que fazia tanto tempo desde que isso acontecera... Eu surtando, me sentindo traída por Byakko depois de descobrir que ele quem tinha tirado as minhas memórias. Depois de tudo o que tinha acontecido recentemente, qualquer ressentimento parecia pequeno. Abaixei a cabeça e continuei mexendo nas folhas, como se isso não fosse nada demais. Mas, na verdade, eu só não queria olhar nos olhos dele.

— Eu fiz isso — Respondi. — Depois que você contou que tinha tirado as minhas memórias e foi embora.

Ele fechou a capa e arrastou o caderno de volta para o lugar, com as sobrancelhas contraídas. Peguei o caderno, abri no vão que as páginas arrancadas tinham deixado e passei o dedo nos pedaços de papel que tinham sobrado, presos à costura da lombada. Depois, vasculhei a pilha de papéis pra descobrir alguma das folhas que tinha sido rasgada.

— Quando você contou tudo, eu fiquei com tanta raiva que tentei arrancar todas as folhas que tinham alguma menção a você — encontrei uma das páginas certas e a alinhei com a lombada do caderno aberto, com o pedaço dela que estava costurado ainda, como se pudesse encaixá-la de volta só porque queria. — Eu achei que queria esquecer. Que se eu te esquecesse, a dor ia parar. Mas eu sei que não... Eu conheço o outro lado, e fui estúpida de pensar nisso.

Peguei outra página rasgada e encontrei seu lugar. Depois, encarei Byakko, finalmente.

— Além do mais, eu percebi que você estava em praticamente todas as páginas, então seria impossível me livrar de você sem me livrar do resto — dei de ombros. — Aí eu desisti.

Byakko se inclinou para trás, apoiou as costas na cadeira e cruzou os braços.

— Então por que trouxe tudo isso pra cá?

Peguei várias folhas de uma vez e as encarei.

— Quando eu fui buscá-las, eu pensava em reler alguns trechos. Me lembrar de algumas coisas boas, me lembrar de Dorothea quando ainda estava bem...

E me lembrar de mim mesma..., pigarreei.

— Mas, agora, estou pensando em concertar os cadernos. Refazer a lombada, costurar as folhas de volta, arrumar tudo — Tirei o cabelo molhado da frente do rosto e coloquei atrás da orelha. — Me parece algo que eu preciso fazer. Não posso perder tudo isso — sacudi as páginas.

Byakko assentiu.

Peguei um punhado de folhas soltas, coloquei na frente dele e levantei uma sobrancelha.

— Então... Você vai me ajudar?

Byakko

Eu encarei Lorena, encarei as páginas, folheei as três do topo e fiz uma careta. Havia um monte de escritos, rabiscos e desenhos em todas as folhas, mas isso não me dizia nada. Não que a letra dela fosse horrível – eu nem podia julgar isso – e sim porque eu nunca tinha aprendido a... ler. A língua dos Espíritos sempre foi apenas falada: por que criaturas que viviam pra sempre e tinham uma memória infinita desenvolveriam uma maneira de registrar o que quer que fosse, fora de suas cabeças? Se o nome verdadeiro de um Espírito era um segredo tão poderoso, por que alguém o escreveria e espalharia por aí? A escrita não era algo que os Espíritos precisavam entre si, e por isso não existia na nossa língua.

E mesmo assim, mesmo sendo capaz de falar com Lorena na língua dos humanos, eu era incapaz de entender os símbolos nas páginas e seus significados.

— Eu não consigo... — murmurei baixinho.

Lorena levantou uma sobrancelha.

— Quê? — Perguntou.

Suspirei e repeti, dessa vez um pouco mais alto:

— Os Espíritos não leem...

Lorena me encarou, sem dizer nada. Balancei as folhas na mão, como se seu farfalhar fosse traduzir os escritos pra mim, o que certamente não ia acontecer, mas eu não consegui evitar de balançar as mãos.

— Eu não sei ler... E é provável que nenhum Espírito já tenha se dado o trabalho de aprender. Nossa língua não tem símbolos, nada precisa ser registrado, porque tudo o que um Espírito precisa fazer para saber de algo é falar com outro. Não é como se fôssemos esq... — esquecer não!, pensei, vendo a sobrancelha de Lorena se contrair só um pouco. — Desaparecer. Não é como se fôssemos desaparecer junto com tudo o que sabemos.

Lorena cruzou os braços.

— Então, você não sabe ler nada?

— Não.

Ela levantou uma sobrancelha.

— Não mesmo?

— Não — repeti.

Lorena se levantou muito rápido, correu para o quarto, mexeu em alguma coisa – ouvi um barulho como de alguém enfiando a mão numa caixa cheia de objetos – e voltou depois de um baque seco de madeira batendo contra madeira. Ela parou na minha frente, com o amuleto pendurado na mão, mostrando as costas dele pra mim. Apontou para os símbolos entalhados e me encarou.

— Então o que está escrito aqui?

Quê?!, estreitei os olhos.

— Meu nome.

Um deles, pelo menos...

— E como você sabe disso se não sabe ler? — Ela se sentou na cadeira de frente pra mim.

— Porque eu estava lá quando me batizaram, gravaram o meu nome no templo e no amuleto? — Levantei as mãos.

— E como você tem certeza de que não escreveram “bobalhão” em tudo só pra te zoar, se você não sabe ler?

Dois quase se engasgou de tanto rir, olhou para Um e disse:

— Eu faria isso.

Eu encarei os dois até se engasgarem de verdade.

— Não, tá escrito Byakko mesmo, eu tenho certeza — Um pigarreou. — Eu li.

Lorena riu, com o amuleto ainda pendurado na mão. Puxei-o de seus dedos frouxos, pelo cordão, e o coloquei de volta no pescoço dela. Ela parou, com os olhos arregalados. Pegou o amuleto caído sobre seu peito e o analisou ali, como se tivesse se esquecido de como ele se parecia ou de quanto pesava. Como se não o visse assim faz tempo.

— O que importa é que ele funciona — eu disse.

Lorena franziu as sobrancelhas.

— Eu cheguei a duvidar que funcionasse, durante o tempo que te chamei e você não veio. Mas, se você diz...

Encarei o chão e me sentei, meio encolhido.

— Eu sinto muito...

Ela apertou o amuleto na mão, pensando, e depois me encarou.

— Então, se o amuleto ainda funciona, você ouviu? Ouviu eu te chamando?

Assenti.

— Mas eu não sabia o porquê de você estar me chamando. Só ouvia sua voz chamando meu nome, e não sentia como se você estivesse em perigo — cruzei os dedos da mão. — Então eu... Não pude voltar. Porque eu não sabia.

Ela suspirou, esfregou os olhos, e depois sorriu.

— Tudo bem...

Foi quando percebi que não importava tudo o que tinha passado desde que eu voltara, ainda ia levar um tempo pra nós dois voltarmos a ser o que éramos antes. Ou talvez isso nunca acontecesse, mas tudo bem, porque pelo menos Lorena não tinha desistido de mim, eu achava. E eu respirei, aliviado. Mas, antes do que fosse, e agora que o velório de Dorothea tinha passado, pra não a perder de vez eu teria que contar toda a verdade. Ou o resto dela. Tinha contado à Lorena sobre seu passado, e agora precisava lhe contar sobre suas memórias.

— Ei... — Eu disse, pensando por onde começar. — Tem mais uma coisa que eu preciso te dizer, Lóris...

Minha voz quase falhou no final de seu apelido. Ainda me sentia um impostor usando-o, como se não merecesse.

Ela levantou a cabeça, curiosa.

— O quê?

— É sobre suas memórias — respondi, ainda um pouco reticente, mas só isso já foi o suficiente para fazer seus olhos brilharem e eu me perguntar por que tinha evitado essa verdade por tanto tempo... — Você pode tê-las de volta se quiser. Eu prometi pra mim mesmo que as devolveria a você, quando voltasse, mas não consigo fazer isso sozinho. Você vai precisar ir comigo, ou não vai funcionar.

Lorena levantou as sobrancelhas, sem entender, depois as franziu e me olhou um pouco torto. Desconfiada, eu acho. Eu também estaria...

— Mas... Por quê? Você não só mexeu na minha cabeça? Não basta desfazer a magia de Espírito que usou? Não dá pra fazer isso... tipo, agora?

Ela me encarou com seus olhos brilhantes. Grunhi, pensando em como explicar a “magia de Espírito” que eu tinha usado. Não, não ia ser fácil...

— Não é tão simples assim — comecei. — Manipular mentes nunca foi uma das minhas habilidades. Diferente de Mab e alguns outros Espíritos, eu não consigo entrar aqui — apontei a testa dela até quase tocá-la.

Lorena cruzou os braços.

— Exceto para falar — retrucou.

Bufei.

Sim, exceto para falar.

Ela gesticulou pra que eu continuasse a explicar.

— O que eu quero dizer é que continuo tão incapaz de tirar algo da sua mente, como eu sempre fui. Então, anos atrás, eu tive que lhe tirar as memórias de uma maneira... incomum, mas da única maneira que eu seria capaz de fazê-lo... Usando os meus próprios poderes.

Ela levantou uma sobrancelha e me olhou torto.

— Como?

Cocei minha nuca, puxando os fios de cabelo mais curtos com um pouco a mais de força do que planejava, e respirei fundo.

— Separando da sua alma o pedaço que continha suas memórias...

Lorena ficou pálida. E muda. Com os olhos arregalados e uma cara assustada que nunca tinha visto ela usar nem quando eu lhe dissera, na infância, que, ei, eu era a própria Morte. Grande jeito de começar uma conversa, hoje eu sabia... Só que não. Talvez nem fosse exatamente uma cara assustada. Talvez ela não tivesse entendido direito o que eu tinha falado. Isso. Eu só preciso me explicar melhor.

— Mas foi um pedaço pequeno... — Tentei esclarecer tudo — Quer dizer, você ainda é você, não é?

Ela abriu a boca, como um peixe fora d’água. Muito bem, Byakko, isso mesmo, é assim que você conta pra uma pessoa que mutilou a alma dela.

— Eu nunca tinha feito isso antes, não sabia como seria, ou se sua alma ainda teria algum tipo de conexão com esse pedaço que faltava, então o levei para o mais longe possível. Eu...

Lorena pôs a mão na minha boca antes que eu tagarelasse mais ainda.

— Eu vou entender tudo, eventualmente. Só me diga o que nós precisamos fazer — ela estreitou os olhos. — Porque eu quero minhas memórias de volta. É tudo o que eu quero...

Segurei seu pulso e puxei sua mão quente até a minha bochecha. Queria me deitar e descansar assim, mas...

— O pedaço da sua alma com suas memórias está no Mundo dos Mortos... Em um lugar seguro —  eu garanti. — Mas sozinho eu não posso trazê-lo de volta.

Lorena inclinou a cabeça, me encarando.

— Por quê?

Suspirei, massageando o pescoço.

— Porque ela... — não gosta de mim, eu acho — não vai querer vir comigo.

— Ela? — Lorena perguntou.

— É... complicado. E você já tem muita coisa pra absorver, de tudo o que eu falei. Precisa descansar antes de irmos. Talvez alguns dias...

— Quê?! — Lorena pulou da cadeira. — Não! Não, não, não, não, nós vamos agora! Eu não tenho nada melhor para fazer.

Sacudi a cabeça.

— Você precisa descansar.

Ela balançou os braços.

— Então nós vamos amanhã!

Levantei as mãos, dando-me por rendido, e disse:

— Tudo bem, amanhã, depois de uma boa noite de sono — enfatizei.

Cruzou os braços e bufou.

Tá! — apontou pra Um e Dois. — Então fica com eles, porque os dois conversam a noite toda e não me deixam dormir direito.

— Mas o quê?! — Um retrucou.

— Quem disse isso?! — Dois também.

Acenei para eles não discutirem, e ambos se calaram.

Lorena foi para o quarto batendo um pouco os pés. Vi-a entrar, apagar a lamparina acesa do lado da cama, fechar a porta e ouvi o ruído abafado dela jogando o corpo na cama. E suspirei.

Podia ter sido pior, não podia?

Quer dizer, ela tinha gritado comigo antes, e me mandado embora. Mas eu ainda estava aqui. Ela tinha perguntado o que “nós” precisaríamos fazer pra recuperar suas memórias. Ou talvez eu só estivesse aqui ainda porque Lorena não conseguiria recuperar suas memórias sozinha. E porque não poderia ter ajudado Dorothea sem mim... Pensei em todas as vezes que ela tinha me chamado, desesperadamente, enquanto eu ainda estava na Torre com Foh. Será que ela teria me chamado de volta se não precisasse de mim por causa de Dorothea? Ou por causa de suas lembranças? Será que, se não fosse por tudo isso, ela ainda teria se importado em me chamar de volta? Será que Lorena me queria aqui, sinceramente?

Sacudi a cabeça, tentando afastar esses pensamentos. Nada disso importava, porque eu tinha prometido pra mim mesmo, e ia fazer o que fosse preciso. O que quer que acontecesse depois de devolver à Lorena suas memórias, seria um mistério para o futuro. E eu pensaria nisso no futuro.

Apoiei-me na mesa para me levantar e senti as folhas de papel se amassando sob o meu peso. Lorena tinha corrido tão rápido pro quarto que esquecera todas as suas anotações na cozinha. Suspirei e pensei que arrumar tudo não ia me fazer mal. Pelo menos ocuparia minha mente. Comecei a arrumar todas as folhas numa pilha, com os cadernos por baixo, pra que Lorena pudesse guardar tudo quando acordasse amanhã de manhã. Até que um punhado de folhas com desenhos me chamou a atenção: eles estavam longe de ser perfeitos, tinham manchas de tinta de lula em alguns lugares e traços um pouco picados, mas passavam o que queriam. Havia desenhos do amuleto que eu dera para Lorena, Tâmi, Mab, Um e Dois. Folheei várias páginas vendo apenas as figuras, já que não podia ler os parágrafos embaixo de cada uma, e parei, de repente. Na folha na minha frente havia dois rostos, lado a lado, como se fosse uma comparação de um pelo outro. O da esquerda parecia ser eu, com os cabelos brancos e olhos de gato prateados, e passei o dedo sobre a palavra embaixo dele, que eu deduzi ser meu nome, mas na língua dela – diferente de como estava escrito no amuleto. Mas o rosto da direita, muito parecido, tinha cabelos negros, um olhar severo, e os mesmos olhos de gato, só que de outra cor. Dourados. Exatamente como meu irmão se parecia...

Debaixo do rosto dele também havia algo escrito. Uma frase. Mas eu não conseguia saber o que era. Onde Lorena podia ter visto meu irmão, e quando, era um mistério. Eu não conseguia imaginar Yasuko saindo de seu mundo por motivo nenhum, e ainda menos para encontrar uma humana. A última vez que ele tinha saído, que eu sabia, fora para me confrontar...

Isso está indo longe demais, ele dissera pra mim, como se pretendesse fazer algo a respeito.

— Ei, vocês — chamei Um e Dois. — Vocês conseguem ler isso? — Apontei os escritos abaixo do rosto que eu pensava ser de Yasuko.

Os irmãos apertaram os olhos, confusos. Eu não sabia se, nesse tempo com Lorena, eles tinham aprendido a ler na língua dela, mas os dois eram minha única chance de saber.

— Ahn... Eu não sei — disse Dois. — Mas eu acho que diz “o homem dos meus sonhos”.

Um bufou.

— Claro que não. Diz “o homem nos meus sonhos”, ou “o homem que aparece nos meus sonhos”. É isso.

— Ah... — Dois murmurou, revirando os olhos para o irmão. Até que voltou a encarar o desenho, e disse: — Espera, esse não é...?

— Yasuko? — Um completou, encarando-me.

Dobrei a folha e guardei-a comigo, apoiando as mãos na mesa.

Nesses dois anos longe, nem tinha me passado pela cabeça que os sonhos estranhos, que ela tinha antes, tinham continuado. Eu tinha ido embora e me esquecido deles completamente. Foh não me deixava muito tempo para pensar em outras coisas, independente do que fosse. Pensando bem, eu nunca tinha descoberto de onde eles vinham; nem mesmo Mab “o” Espírito dos Sonhos, o que de cara deveria ter acendido um alerta na minha mente antes. Mas, não... eu sempre estive tão preocupado com esconder a verdade de Lorena e não a perder, que não me foquei o bastante na tarefa.

Agora, no entanto, eu percebi uma coisa que não tinha percebido antes: os sonhos tinham começado exatamente depois de Yasuko aparecer para me confrontar, e deixar implícito que faria alguma coisa a respeito. Eles tinham começado devagar, instigando Lorena a procurar suas lembranças perdidas, e depois... Eu não tinha ideia para o que tinham evoluído nesse tempo em que estivera longe, mas eu imaginava que ele tinha revelado o próprio rosto – considerando o desenho – o que significava que estava impaciente.

Mas... Impaciente com o que? O que Yasuko queria? Por que faria isso? Como...

Foi então que eu percebi o que eu vinha ignorando faz tempo sobre os sonhos: havia mais de uma maneira de afetar a mente de alguém, e eu sabia disso, porque eu tinha feito. Tinha mexido na alma de Lorena para afetar suas lembranças, e pra isso tinha lhe tirado esse pedaço à força...

Um pedaço que estava lá, num lugar seguro... No mundo de meu irmão.

Cai na cadeira com força, apoiando o corpo na mesa e cobrindo meu próprio rosto com as mãos, sentindo um peso enorme sobre os ombros. Como um elástico amarrado entre as costelas e a coluna, fazendo pressão no meu peito. Tentei respirar fundo.

Agora eu não conseguia me livrar da sensação de estar levando Lorena para uma armadilha...


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