A Pele do Espírito escrita por uzubebel


Capítulo 22
Capítulo 21


Notas iniciais do capítulo

Oi, gente. Eu tô viva!!!
E queria pedir mil desculpas pela demora. Nesse meio tempo em que fiquei sem postar, muita coisa aconteceu, mas, principalmente, minha avó foi internada na UTI, voltou pra casa, e hoje foi internada de novo. Eu queria muito dizer que vou tentar ao máximo voltar a postar os capítulos em dia, mas se isso não acontecer, queria deixar todo mundo avisado do porquê.

Então, se você realmente gosta do que eu escrevo e quer saber como a história termina, saiba que ela VAI TER UM FINAL SIM. Eu não vou deixar ninguém na mão, juro. Até porque pretendo posteriormente publicar uma versão "estendida" da história na Amazon, com algumas cenas e conteúdos extras. Assim, se você quer mesmo ficar por dentro de quando os capítulos vão sair e à quantas anda a minha escrita, eu tenho uma sujestão: vocês podem seguir minha página de escritora no Facebook (hmm..., que chique), com o bônus de que, além das notícias, eu planejo fazer alguns marcadores da história, com a ilustração da capa e outras que eu arranjar, pra sortear pros seguidores (e quem sabe não role até outros brindes mais legais, não é mesmo?). O link da página é esse:

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Então beijos, e até o próximo capítulo!



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 Byakko

Senti um peso sobre o meu peito e meu coração batendo contra o que quer que fosse. Tentei me alongar e mexer o braço, mas não consegui mexê-lo direito. Estava preso. Cocei os olhos com a mão livre, suspirei, me estiquei e senti os arabescos da abóbada cutucarem minhas costas, como dedadas doídas.

— Hmm... — Esfreguei para tirar a escuridão dos olhos.

— Hamm... — Ouvi em resposta.

Prendi a respiração. Ainda era estranho me acostumar com dormir – e acordar – por mais que eu só precisasse de uns 15 minutos de sono dia sim, dia não. Era mais estranho ainda acordar e, durante um segundo, me sentir perdido, sem saber onde estava ou lembrar o que tinha acontecido. Até algo ligar dentro de mim e tudo voltar, claramente: Lorena, o templo, a verdade que eu finalmente contei...

Afastei a mão do rosto, abri os olhos e senti dedos apertando um pouco meu braço preso. Olhei para baixo e vi a cabeça de Lorena descansando no meu peito, seus olhos fechados e tranquilos, ela me abraçando de lado e com a perna jogada sobre a minha, debruçada sobre metade do meu corpo. Gelei. Quando isso tinha acontecido? Cocei a testa. A última coisa da qual me lembrava era dela deitada ao meu lado, e não em cima de mim. Lembrava-me de ela ter caído no sono primeiro, depois de ouvir tudo o que eu dissera. Então... ela tinha me abraçado enquanto nós dois dormíamos, e eu nem tinha sentido? Foh estava certa, dormir me deixava vulnerável, alheio ao mundo, mesmo que eu não fosse capaz de sonhar... Talvez só por isso Mab não tenha sido capaz de me encontrar em tanto tempo.

— Grrr... — Ouvi Lorena murmurar alguma coisa sem sentido nenhum. Meu debate interno tinha feito meus braços se mexerem e a cabeça dela escorregar um pouco para o lado.

Sem movimentos bruscos, ou vou acordá-la, pensei, encarando-a. O calor do corpo dela me abraçava onde nossas peles se tocavam. Sua respiração saiu assobiando baixinho pelos lábios entreabertos e sorri. Disso eu me lembrava, e me fazia pensar que talvez ela não tivesse crescido tanto assim; ou mudado tanto quanto eu temia. Abaixei a mão e nem precisei me esticar para tocá-la no rosto. Suspirei. Afastei a franja escura dos seus olhos, encarando suas feições relaxadas. Da última vez que a vira dormindo, os pesadelos perturbavam suas noites. Se ela ainda sonhava com as mesmas coisas que me preocupavam tanto antes, eu não sabia – tinha parado de procurar a causa dos pesadelos ao ir embora, com o coração nas mãos –, mas, pelo menos agora, ela não parecia estar sonhando com nada. Sua respiração lenta escapava pela boca, e ela se apoiava em mim sem fazer força.

Minha mão escorregou para seu pescoço arqueado, onde eu senti sua pele pulsar lentamente. Passei os dedos lá, de cima a baixo, seguindo o ritmo do sangue, enquanto algo dentro de mim se agitava. Quando a artéria mergulhou para baixo das roupas de Lorena, eu parei. Ela se encolheu um pouco, como se sentisse cócegas. O que estava fazendo...?

Meu coração estava acelerado, ao contrário do dela. Batia tão alto que pensei que acordaria Lorena, deitada sobre ele. Será que ela ia perceber...? Ia conseguir associar isso à história que eu tinha contado e entender o que tinha acontecido comigo? O que tinha feito comigo? Eu tinha lhe explicado sobre Feng e Huang para que ela pudesse entender o que acontecera com meu irmão, mas não tinha tido a coragem para dizer o que tinha acontecido comigo. Na verdade, eu nem tinha pensado em lhe contar, até agora. Não tinha me passado pela cabeça, mais cedo. Tudo que eu queria era lhe explicar todo o passado dela e de sua família. Tudo o que a tinha trazido até aqui. E, mesmo assim, eu nem tinha terminado de contar tudo... Ainda precisava lhe dizer que ela podia ter suas memórias de volta, se quisesse.

Sacudi a cabeça.

É claro que ela quer...

Então, porque estava tão preocupado, agora, em lhe contar o que tinha acontecido comigo? Não era algo que eu precisava fazer. O que eu precisava fazer era cumprir minha promessa e lhe contar tudo e lhe devolver seu passado. Nada era mais importante que isso. E, mesmo assim, quando Lorena acordasse, eu sabia que teria que esperar. Quando amanhecesse, e pelo resto do dia, ela só teria na cabeça a tarefa de velar o corpo de Dorothea adequadamente. Ela teria muita coisa pra fazer: tarefas que uma família inteira cumpriria junta. Mas ela não tinha ninguém. Só tinha a minha ajuda... Ainda mais com todas as famílias da ilha fazendo os mesmos preparativos para seus próprios entes queridos que eu também tinha levado. Uma fila de gente, graças ao meu próprio descuido.

Passei a mão no rosto, tentando não me mexer demais. Primeiro, eu a ajudaria com Dorothea; depois, eu lhe falaria de suas memórias; e então, só depois de lhe devolver tudo o que eu tinha roubado, teria o direito de lhe perturbar com os meus próprios dilemas...

 

Lorena

Eu nem me lembrava da última vez que tinha dormido bem, sem nenhuma imagem me perseguindo na escuridão. Sem sonhos, sem lembranças perturbadores, sem Byakko – ou uma imitação dele – fugindo por alguma trilha estranha. A única coisa me acompanhando no vazio do sono era a batida alta, constante e ritmada que lembrava música, mas que ecoava dentro da minha cabeça, como sangue. Da mesma cor que começou a encher minhas vistas.

Pisquei, ainda meio sonolenta, encarando a faixa de luz que tinha surgido no horizonte com as pálpebras apertadas. Mesmo que o sol estivesse apenas nascendo, a luz direta já me cegava. Argh... esfreguei os olhos, de quem tinha sido a ideia de dormir virada pro leste? Tentei me apoiar no chão para me levantar, mas acabei dando uma cotovelada em alguma coisa que definitivamente não fazia parte da arquitetura. Mas, o que quer que fosse, não gemeu nem reclamou. Uma mão me escorou pelos ombros e olhei para o lado.

— Tudo bem? — Ouvi Byakko.

E vi, de relance, uma careta preocupada se transformar num sorriso educado.

Foi impossível não lembrar do passado. Podíamos não estar no meu quarto, e eu podia não ter sonhado, mas aquela imagem já estava guardada na minha mente: eu acordando com Byakko de vigília ao meu lado, preocupado comigo ou com algo mais...

Tudo bem?, a pergunta ecoava na minha cabeça.

Não sei... Mas era como eu devia estar me sentindo, né? Bem. Era o que eu tinha dito pra Byakko ontem a noite, depois dele me contar a verdade e antes de apagar de cansaço: que tudo ia ficar bem. Mas, agora, eu só me sentia como uma grande mentirosa. Byakko tinha contado como minha família viera da cidade destruída que sempre tinha me atraído, mesmo que só por curiosidade; o porquê de o lugar ter sido apagado e só ter sobrado ele e seu templo na praia; tinha contado porque Isméria parecia me perseguir e como, sabe-se lá há quanto tempo, ele protegia à mim e à minha família da Serpente.

E, no fim das contas, eu tinha estragado tudo.

Eu tinha entregado minha vida para Isméria de mão beijada, depois de tudo o que ele tinha feito e depois de tudo pelo que ele tinha passado pra garantir que alguém ainda estivesse aqui. E eu era a última que tinha sobrado. E tinha jogado seus esforços literalmente pelo penhasco. Eu tinha visto a cara dele ao dizer sobre todas as pessoas que tinha falhado em proteger, e como aquilo o torturava por dentro... Como eu ia contar pra ele sobre mim e Isméria e nosso acordo...?

Eu não tinha ideia... A menor ideia.

Byakko ainda me encarava, esperando uma resposta. Tentei forçar um sorriso no rosto, como ele fazia quando via que eu tinha acordado dos meus pesadelos, e senti que tinha falhado tanto quanto ele.

— Tudo bem — respondi.

Olhei para o sol no horizonte e depois para as minhas próprias mãos. Por pior que estivesse me sentindo agora, eu tinha um dia cheio pela frente. Não podia ficar me perdendo em pensamentos agora, e muito menos podia ficar ali até descobrir como contar a verdade para Byakko. Respirei fundo. Dorothea estava morta, e eu tinha um velório para preparar. Tentei repassar em minha mente tudo o que precisava ser feito; eu não tinha visto muitos velórios antes e tinha participado de ainda menos. Tipicamente, só a família pode velar um espírito e cuidar da cerimônia, mas eu, criança, não fora capaz de cuidar de todo o necessário, então Dorothea se encarregara de tudo sozinha, mesmo não sendo do nosso sangue. E, agora, eu era a única família que havia sobrado para Dorothea...

Eu poderia pedir ajuda com algumas coisas, mas o essencial para o ritual de despedida precisaria ser feito por mim. Fiz uma lista mental do que poderia pedir ajuda, e para quem, e balancei a cabeça, como se precisasse confirmar tudo para mim mesma...

Byakko se mexeu debaixo de mim, se ajeitando, e só então percebi como estava debruçada nele, desde que acordara.

— Ah, desculpa — tirei o braço de cima dele — Eu te machuquei?

— Não, tudo bem.

Byakko se sentou e me encarou, como se esperasse eu dizer o motivo de ter ficado muda tanto tempo, o que se passava na minha cabeça.

Pigarreei:

— Então... Você vai estar ocupado hoje?

 

***

 

Primeiro, eu pedi a Byakko que me trouxesse água do mar. Dois baldes, pelo menos. Nós éramos batizados nas ondas, quando crianças, e precisávamos ser lavados na mesma água quando partíamos. Da água para a água... Nós tirávamos nossa vida da água salgada, e voltávamos a ela. E, enquanto Byakko fazia isso, eu fui até a casa de Cloé. Eu precisava de sálvia para colocar na água e poder banhar o corpo de Dorothea. Purificá-lo.

Infelizmente, eu não tinha mais nada para dar em troca das ervas. Tudo que um dia eu tivera de valor eu tinha trocado em coisas para cuidar de Dorothea e de mim, nos últimos tempos. Tudo o que eu tinha no bolso era a pedra turquesa de Tâmi, que eu nem sabia se valia alguma coisa para alguém além de mim. Mas era o que eu tinha... E estava pronta para implorar.

Bati três vezes na porta da casa com ervas e plantas penduradas para secar em cada cantinho, e esperei Vera atender. Quando a porta abriu, prendi a respiração. Cloé em pessoa me encarou através da fresta, com seus olhos apertados de quem não enxerga mais direito, e sua cara carrancuda habitual. Ela abriu mais um pouco a porta e esperei que fosse gritar comigo, mas não... Ao invés disso, ela levantou as sobrancelhas, desatou a boca e suspirou.

— Eu imaginei que você apareceria, mais cedo ou mais tarde...

Ahn?

A senhora se virou sem explicar nada, entrou em casa e deixou a porta aberta na minha frente. Apertei a pedra no meu bolso, sem saber bem o que dizer agora. Sacudi a cabeça.

— Cloé, desculpa, mas eu vim...

— Pshhh — ela balançou a mão enrugada, de costas pra mim. — Não precisa tagarelar. É claro que eu sei por que você veio. Pelo mesmo motivo que todos vieram aqui hoje.

Levantei as sobrancelhas.

Cloé começou a procurar alguma coisa dentro de sua casa escura e com cheiro de plantas desidratadas. Tocou, um por um, os maços de ervas pendurados no teto, fazendo uma careta antes de passar para o próximo. Até puxar as folhas de um maço de sálvia, esfregá-las nos dedos para conferir o cheiro e balançar a cabeça, satisfeita. Olhou ao redor, procurando alguma coisa, até que encarou a porta e eu, e fechou a cara.

— O que ainda está fazendo aí fora?! Não vai ajudar uma velha e pegar o que veio buscar? Os ramos estão altos, minhas costas doem e Vera não está aqui. Anda, anda! — Ela gesticulou para mim.

Apertei a pedra entre os dedos e depois tirei a mão do bolso. Qual o problema que gente velha tem em parar pra explicar as coisas? Abaixei a cabeça para entrar sem derrubar um monte de maços de ervas pendurados perto da porta, amarrados um pouco mais baixo que a soleira. Dei três passos e alcancei Cloé; levantei a mão para o único maço de sálvia em todo o meu campo de visão e o puxei, arrebentando o cordão fino que o amarrava ao teto. Senti o cheiro terroso das folhas que a velhota tinha amassado nos dedos e respirei fundo.

— Cloé, eu não tenho nada de valor pra te dar em troca delas... Eu só... — Comecei a me explicar, pensando na pedra polida no meu bolso.

— Shiu — Cloé sacudiu a cabeça para os lados. — Eu pedi alguma coisa? Não!

Ela pigarreou e apontou para as ervas na minha mão.

— Esse é meu último maço. É melhor você ir pra casa antes que mais alguém apareça pedindo por essa sálvia, ou vai ficar sem, por outros motivos — ela suspirou. — Eu não sei o que os Espíritos estavam pensando, mas eu nunca vi isso acontecer antes... Tanta gente, na mesma noite...

Ela coçou os olhos.

— Eu imagino que meus xaropes não ajudaram a querida Dorothea, não é...?

Assenti por reflexo, enquanto pensava em outras coisas. O que Cloé tinha dito mesmo? Muitas pessoas atrás de sálvia. Era seu último maço. Tanta gente, na mesma noite... Tanta gente como Dorothea, percebi.

Trazer Byakko tivera seus efeitos colaterais. Nesses dois anos, muitas pessoas, além de Dorothea, tinham sentido o gosto da morte, sem poder atravessar, propriamente. Pessoas doentes, pessoas que sofreram acidentes, pessoas brincando com sua suposta “invulnerabilidade”. Gente que não devia ter continuado aqui, desafiando a morte uma vez atrás da outra. É claro que Byakko não ia parar em Dorothea; ele tinha voltado e, como tinha dito, ia concertar tudo...

Ele provavelmente tinha levado todos aqueles que tinha esquecido, nos últimos dois anos em que sequer pisara aqui em Jada.

Ah, não...

Puxei Cloé pela manga.

— Quem já veio aqui? — Perguntei. — Ed e Alice?

Ela torceu o nariz.

— Eu não sei, muita gente veio — ela balançou a cabeça – Vera atendeu a maioria, antes de precisar sair. Mas gente da família deles veio, eu acho...

Meu coração deu um pulo.

— Mas você sabe se eles estão bem?

Cloé puxou a mão de volta.

— Claro que não sei. Eu não fico interrogando todos que passam aqui. As pessoas vêm e buscam o que precisam. E só.

Ela se virou e começou a caminhar para mais dentro de casa.

— Você já tem o que precisa para o velório de Dorothea — gesticulou. — Por que precisa saber disso?

— E-eu não sei... — gaguejei, pensando na pergunta.

Mas eu queria saber. Eram meus amigos...

Saí da casa da herbolária, fechei a porta atrás de mim – devagar, para não a irritar – e corri. A casa de Ed ficava mais perto, então fui pra lá primeiro. Quando estava chegando, diminui o ritmo. Não queria ter que bater à porta e perguntar, cara-a-cara, o que tinha acontecido. Quem eles tinham perdido... Então, ao invés de fazer isso, me aproximei das janelas e tentei espiar lá dentro. Não demorei a ver Ed na cozinha, com as três irmãs mais novas e a mãe, o que me deixou um pouco mais aliviada. Não havia sinais de um velório pela casa, diferente do que Cloé tinha me dito. Saí de lá sem ver o pai de Ed e sem falar com ninguém, mas imaginando que o senhor estaria por aí, com o filho caçula. Provavelmente ensinando-o a pescar, como tinha ensinado Ed.

Dei a volta na vila e corri para a casa de Alice, ainda de coração apertado. E, antes mesmo de espiar pelo lado de fora, a primeira coisa que ouvi foi o choro vindo de um dos quartos... Andei devagar, meio abaixada, seguindo o som dos soluços. Cheguei até um dos quartos, que eu sabia não ser o de Alice, e prendi a respiração enquanto criava coragem para me levantar. Apertei os punhos e estiquei um pouquinho as pernas; o suficiente pra colocar só meus olhos acima do batente e olhar para dentro.

Era o quarto do irmão de Alice. Ela estava sentada num banquinho ao lado da cama, com a cabeça baixa, os ombros sacudindo com os soluços, e as mãos molhadas segurando um pano meio amassado. Ela fungou e se abaixou. Afundou o pano num balde de cerâmica pequeno e ornamentado, encharcou o tecido na água com cheiro de sálvia e sal, torceu-o para tirar o excesso e se endireitou. Alice levantou o braço do corpo do irmão deitado na cama e começou a banhá-lo com a mistura, passando o pano molhado pela sua pele acinzentada. Ela jogou um pouco da água sobre a cabeça de seu irmão caçula, encharcando seu cabelo, pegou o pano de volta e tirou o excesso que tinha se empoçado nos olhos dele, fechados desde que eu tinha começado a assistir tudo...

Será que ele, e os outros, tinham visto Byakko? Como tinham visto ele? Será que tiveram medo?

Será que sabiam que a culpa era minha...?

Eu tinha apontado o dedo para Byakko, no dia em que o chamara de volta, dizendo como tudo na ilha estava “fora de ordem” por culpa dele. As pessoas doentes sem ter paz, adolescentes brincando com a própria morte como se fosse um jogo, acidentes sem qualquer consequência, gente que dizia que não havia nada do outro lado, além de silêncio e escuridão, porque Byakko não estava lá para pegá-los. Mas eu sabia que não era verdade. A culpa era minha. Culpa de ele ter partido, e causado tudo isso. E, agora, culpa de ele ter voltado e, na tentativa de concertar tudo, só causar mais estragos...

Aquilo tudo pesava na minha garganta à ponto de me puxar para baixo, de eu querer me abaixar e me encolher.

Saí dali antes que Alice olhasse por cima do ombro e me visse espreitando na janela. Eu não sabia o que faria, se ela olhasse pra mim com aquela cara de choro. E não tinha forças para descobrir.

Corri para casa com os ramos de sálvia apertados no meu punho fechado e os olhos ardendo. No caminho, guardei a planta no bolso. Quando cheguei lá, Byakko estava na entrada, sentado na soleira, com o sino girando em sua mão e dois baldes cheios de água aos seus pés. Com certeza ele tinha ido até a praia e voltado num piscar de olhos. Ele levantou o rosto e sua cara de tédio me dizia como ele tinha esperado pacientemente até eu voltar. Até que ele me encarou, e sua expressão mudou. O sino caiu no chão, com uma badalada rápida que morreu quando atingiu a terra batida. Ele se levantou e veio na minha direção. Parou na minha frente, ergueu as mãos, mas não me tocou.

Esfreguei meu rosto e respirei fundo.

— O que foi que você fez, Byakko...?

Seus dedos se fecharam, mas ele não desviou o olhar.

— O que você fez com os outros...? — Perguntei outra vez.

Seu rosto estava sério.

— Eu levei os que estavam marcados. Fiz o que disse e concertei a bagunça que deixei para trás...

Trinquei os dentes.

— Por que não me avisou? Você não me disse que ia levar todo mundo — fechei os punhos e bati no peito dele, sem forças. — Por que não me disse antes?!

Byakko baixou as sobrancelhas, me encarando no fundo dos olhos.

— Foi a primeira coisa que eu te disse. Assim que nos encontramos...

Pisquei.

— Eu nunca escondi de você, e nem de ninguém, o que eu sou... A diferença é que você foi a única que não se importou. Até agora...

Sacudi a cabeça.

— E-eu não me importo.

Byakko segurou meus pulsos, se esquivando dos meus socos.

— Então por que está chorando? Por que está brava comigo?!

Tentei puxar minhas mãos de volta, com toda a minha força, mas Byakko não parecia nem estar se esforçando pra me segurar.

— Eu estou brava comigo! — Gritei.

Ele levantou as sobrancelhas e me soltou, deixando as mãos caírem ao lado do corpo.

— Todos na ilha estão de luto, e a culpa é minha... — Expliquei.

Byakko estendeu a mão pra mim. Funguei, segurei seus dedos, e ele me puxou até a casa, em silêncio. Nós estramos e ele puxou uma das cadeiras da cozinha para eu me sentar. Respirei fundo e acatei. Ele saiu de novo, voltou com os baldes de cerâmica na mão e fechou a porta da frente atrás de sim. Deixou tudo sobre o fogão, depois voltou e se sentou ao meu lado.

Levei a mão ao peito e apertei minha roupa com força, até amarrotar o tecido.

— Como você faz pra não se sentir assim? — Perguntei. — Toda vez que tira alguém querido das pessoas?

Ele baixou o rosto, me encarando, pegou minha mão e apertou minha palma.

— Eu nunca disse que não me sentia assim...

Funguei. Ele podia estar um pouco encolhido, mas não parecia nem de longe tão afetado quanto eu agora, ou como ele mesmo na noite passada, quando tinha até mesmo chorado na minha frente.

— Você... já se acostumou?

Byakko baixou o olhar e parou de desenhar formas na minha palma, com a ponta dos dedos.

— Você não tem que se sentir assim — ele suspirou. — Esse é o meu fardo. E você não teria que se sentir assim, se eu não tivesse partido e estragado tudo.

— Se eu não tivesse te mandado embora e estragado tudo — rebati.

Ele levantou uma sobrancelha.

— Se eu não tivesse escondido a verdade de você e estragado tudo, primeiro.

Bufei.

Certo, íamos ficar assim o dia inteiro, se eu não o deixasse com a palavra final. E eu não tinha tempo pra isso.

Medi uma mão no bolso e tirei a sálvia lá de dentro, enquanto olhava através da janela e secava meus olhos com as costas da outra mão. Pela posição do sol, eu já tinha perdido uma hora. Não podia me dar esse luxo.

Balancei as ervas na frente do rosto de Byakko.

— Dorothea está esperando.

Ele assentiu, se levantou e se escorou na porta, como que pra sair do meu caminho, ao mesmo tempo que ficava por perto para me ajudar. Fui até o fogão, coloquei a água toda num mesmo caldeirão de barro com a boca larga, e deixei lá para ferver. Aticei a brasa do fogão, que já estava quase se apagando, coloquei mais lenha na fornalha e deixei a chama pegar. Coloquei a sálvia no balcão e piquei as folhas, as flores lilases e o talo, tudo junto, e joguei tudo na água, até a mistura virar um chá ralo com cheiro de tempero. A sálvia é uma planta que elimina cheiros fortes e sabores desagradáveis, e por isso era usada para “purificação” em vários pequenos rituais, mas era ainda mais importante nos velórios. Como a cerimônia sempre precisava terminar ao entardecer, às vezes era preciso que o corpo esperasse algumas horas ou até um dia, para tudo terminar; então, as ervas anulariam o cheiro até lá. Se ela realmente afastava outros Espíritos malignos do corpo, eu já não tinha certeza: Byakko, pelo menos, não parecia nem um pouco incomodado.

Finalmente, tirei o caldeirão do fogo e o deixei sobre a mesa pra amornar.

Repassei minha lista mentalmente e chamei Byakko. Entreguei-lhe uma cumbuca mediana, de pedra, e disse:

— Preciso de resina. Fresca. Vai precisar cortar o tronco pra tirar pra mim.

Descrevi a árvore que precisava encontrar e ele desapareceu com um aceno de “tudo bem”, numa baforada de neblina.

Precisei revirar a casa toda atrás de um pedaço de pano limpo. Entrei no meu quarto, pensando em transformar algumas roupas em velhas em trapos, mas esqueci de Um e Dois lá dentro.  Já prevendo o papo furado, cortei qualquer chance de me enrolarem: os dois queriam saber o que estava acontecendo – e com razão – mas eu não tinha tempo. Só prometi que explicaria tudo pra eles quando terminasse, à noite, e milagrosamente os dois não insistiram. Deviam ter visto a quão apressada eu parecia.

Voltei para a cozinha e coloquei só a ponta do dedo na água com sálvia: estava na mesma temperatura do corpo. Pronta. Respirei fundo, joguei o pano sobre o ombro, peguei o caldeirão pesado e segui, um passo atrás do outro, tentando não derramar nada no chão. Sim porque eu mesma teria que limpar depois, ou Dorothea me assombraria para sempre. Abri a porta do quarto de Dorothea, devagar, e a encarei na cama pela primeira vez desde a noite anterior. Eu não me lembrava muito bem daqueles últimos segundos dela viva, enquanto espiava pela fresta da porta, mas ela parecia... sossegada. Tinha partido com uma mão sobre o peito – provavelmente por reflexo – e os olhos fechados.

Entrei, e me sentei ao seu lado. Agora, encarando seu rosto sem cor, eu percebi como ela estava fraca e frágil antes. Quando levantei sua mão para tirá-la de cima do peito, ela pesava tanto como uma pena... Quase como se todo o peso dela tivesse ido embora quando Byakko a levou. Suspirei. Dobrei o pano limpo e o mergulhei na água. Peguei uma faca pequena no bolso e fiz um corte nas roupas dela; o resto eu rasguei com as mãos. Precisava despi-la, banhá-la e vesti-la de novo, antes que o corpo ficasse rígido demais para se mexer.

Comecei a fazer como Alice: mergulhava o pano limpo na água, torcia para tirar o excesso, e passava o pano húmido pela pele de Dorothea. Com o pano mais encharcado, torci sobre sua cabeça e molhei seu cabelo branco e ralo. Limpei a nuca, as costas, debaixo dos braços, das pernas, entre os dedos e atrás das orelhas, até Dorothea voltar a ter o mesmo cheiro de tempero de antes. Já estava fechando os botões de sua roupa – a favorita de Dorothea, a que ela fazia questão de usar nos festivais – quando Byakko voltou e bateu na porta de levinho, para me avisar de sua presença.

Ele se virou e foi pra cozinha me esperar, enquanto eu arrumava tudo. Encontrei ele do lado de fora, com a vasilha transbordando uma resina âmbar, os dedos pregando um no outro, e ri. Era como repassar as tradições a uma criança.

O puxei pelo braço e levei pros fundos da casa. Ao lado da pouca lenha armazenada, havia um embrulho grande e estreito, feito de um tecido rústico banhado em látex flexível, deixando o material impermeável e resistente. Me abaixei, desatei os nós em cada ponta e comecei a desenrolar o tecido. Byakko me ajudou, puxando a ponta oposta, e nós dois desempacotamos o que havia lá, tão bem guardado: uma canoa pequena, da altura de uma pessoa, e com largura na medida para caber alguém deitado de costas.

Aquele barco, apesar do que se podia imaginar, não era usado para pescar. Era unicamente um objeto cerimonial, um símbolo da jornada da vida, e da morte. Todos tinham um daquele, teoricamente. Eles eram feitos quando uma criança nascia, e usado em só duas ocasiões a vida toda: no batismo, quando se celebrava a chegada à vida, e nos funerais, quando se despedia dela... Byakko se sentou ao lado para tirar a sujeira que tinha grudado em seus dedos, e a película de resina seca que tinha se formado, como se o barco não fosse nada demais. E, bem, não devia ser mesmo nada demais, para ele: se tinha uma coisa que eu tinha aprendido nesses anos, era que a jornada da vida e da morte não passava por outro senão Byakko, e que provavelmente metade dos costumes de todos os lugares eram uma piada para os Espíritos. Mesmo assim, ele parou o que estava fazendo e me encarou demoradamente, como se esperasse as próximas instruções que eu fosse lhe passar. Tudo aquilo podia ser uma grande bobagem, mas ele nunca ia dizer isso: se os costumes eram importantes para Dorothea, eram importantes pra mim, e eram importantes pra ele.

Sacudi a cabeça e voltei a me concentrar no que precisava ser feito. Estranhamente, o barco de Dorothea estava bem conservado, para a idade que tinha. Chequei por buracos, cupins, humidade, qualquer fragilidade que eu precisasse concertar antes de colocá-lo na água, mas não havia nada. Nem sua cor parecia ter desbotado tanto assim. Dorothea tinha cuidado bem dele, como de tudo em sua vida. O barco que supostamente deveria ser meu, por outro lado, não estava em lugar nenhum. Ele tinha queimado, junto com a minha casa. Mais um motivo pra maioria das pessoas terem me evitado, depois de tudo... Quem ia querer por perto uma alma que nunca teria descanso, e provavelmente ficaria aqui, os assombrando? Almas atormentadas – como as sem funerais apropriados – traziam azar e doença, era o que diziam. Me virei para Byakko e ri dessa ideia.

— O que foi? — Ele perguntou.

Sacudi a cabeça.

— Nada.

Estendi a mão para ele, pedindo pela resina que ele trouxera, e Byakko me entregou a vasilha. Podia não ter muito o que arrumar no barco de Dorothea, mas podia lhe dar uma demão de verniz, principalmente sobre os desenhos nas laterais da pequena canoa. Cruzei as pernas e alonguei os braços, Byakko se arrastou para mais perto e me observou trabalhar.

 

***

 

Quando já estava quase entardecendo, e meu tempo se esgotando, saí para checar a canoa. Respirei aliviada quando toquei a resina e senti ela seca, mas também não podia me empolgar: me restava pouco para colocar Dorothea em sua canoa, cobri-la e, finalmente, levá-la até a praia. Byakko se ofereceu para carregar o corpo de Dorothea do quarto até o lado de fora; colocou ela no barquinho e deu um passo pra trás. Eu me abaixei ao lado dela, ajeitei a posição de suas mãos e cobri-a com uma mortalha até a altura do peito. Ajeitei seus cabelos despenteados, alinhando a franjado jeito que ela gostava de usar e suspirei.

A última coisa que eu precisava fazer era encher o barco de flores. E, mesmo que eu tivesse colhido todas as que tinha encontrado, por horas e horas enquanto o barco secava no sol, eu tinha quase certeza de que não tinha colhido nem perto do suficiente. Esse era um trabalho para uma família inteira, e eu era só uma... Mesmo assim, peguei uma sacola cheia das flores que eu tinha colhido e comecei a colocá-las, com as pétalas para cima, ao redor do rosto e dos cabelos de Dorothea. Eram flores do campo, coloridas, em várias cores: amarelas, vermelhas, alaranjadas e em tons de rosa. Coloquei todas que eu tinha comigo – até sacudi a sacola, como se as flores fossem se multiplicar assim – mas elas tinham mesmo acabado. E eu mal tinha passado da cintura de Dorothea...

Comecei a sentir no peito o peso de estar tão sozinha, de não ser o bastante, e esfreguei os olhos...

Senti um toque no meu ombro.

— Ei, Lóris... — Byakko me chamou.

Eu virei a cabeça. Ele estava ao meu lado, segurando uma trouxa enorme nas mãos, com uma cara triste. Não, uma trouxa não. Era a túnica dele, enrolada pelas mangas, com um nó meio frouxo, e estufada com o que quer que estivesse lá dentro. Mas... eu nem tinha visto ele se mexer. Mesmo assim, de alguma forma, ele tinha saído, buscado o que quer que fosse, e voltado sem que eu nem percebesse.

Ele se sentou ao meu lado, de pernas cruzadas, e passou o embrulho pra mim.

— Anda — disse. — É pra você.

E gesticulou para que eu abrisse.  Desatei o nó na minha frente, abri dobras e dobras de tecido, e centenas de papoulas brancas pularam no meu colo, até haver um monte delas por todos os lados. Arregalei os olhos. Byakko me encarava, com um silêncio pesado, esperando alguma coisa. Enfiei a mão na pilha de flores, só pra sentir que eram de verdade. Para ter certeza...

— Eu vim te devolver isso... — Ele disse, usando as mesmas palavras que eu, muitos anos atrás, quando fora lhe devolver a flores que ele tinha esquecido ao fugir de mim.

Eu quase tinha me esquecido... Esquecido que jár tinha encontrado Byakko na mesma situação: ele fazendo o que estava ao seu alcance para honrar o próprio luto e, agora eu sabia, o passado que ele tinha perdido. Ele sabia o que eu estava passando, e provavelmente por isso estava com aquela cara boba de quem tenta fingir que vai ficar tudo bem. A mesma de quando ele tentava dizer que os pesadelos parariam, mesmo sabendo que era uma mentira.

Eu tinha me preocupado tanto com a culpa que eu sentira por ter trazido a morte para tantas famílias, tinha me sentido tão culpada... E nem tinha parado pra pensar como Byakko se sentiria ao me ver assim, me ajudar o dia todo, me ver em silêncio, tendo causado o mesmo à mim... Porque eu sabia que ele se culpava, eu tinha certeza. Isso era a cara dele.

Ele mesmo tinha dito pra mim, e eu nem reparara...

— Como você faz pra não se sentir assim? — Perguntei. — Toda vez que tira alguém querido das pessoas?

— Eu nunca disse que não me sentia assim...

Engoli em seco. Como eu podia ser tão estúpida...?

Peguei uma papoula e a encarei. Era igual à que ele tinha me dado anos atrás. Eram as mesmas flores que ele usava para montar o próprio altar, um símbolo da perda dele.

— Obrigada... — Disse.

Ele deu de ombros e sorriu. Mas dessa vez foi de verdade.

— Eu só sabia onde encontrá-las.

Byakko encheu as mãos com papoulas, colocou metade nas minhas mãos meio dormentes, e continuou a cobrir Dorothea por onde eu tinha parado. Encarei ele, seu rosto calmo, depois virei a cabeça para analisar a fileira meio torta de flores que ele estava fazendo, completamente desalinhadas das flores que eu já tinha colocado. Ri, e ele parou.

— O que foi?

Não queria dizer na cara dele que estava tudo errado, até porque eu não me importava, então sacudi a cabeça.

— Nada não — respondi.

E, ao invés de corrigi-lo, eu fui colocando as minhas próprias flores nos espaços que ele deixava vazios, como se ainda se lembrasse dos objetos que deixava sobre o altar do próprio templo, cercados de flores também.

Quando terminamos, o sol já estava baixo. Estava na hora de levar Dorothea para o mar.

Byakko segurou a canoa pela popa, e eu encarei a popa que não ia se levantar e sair dali sozinha. Eu tinha conseguido: Dorothea parecia deitada num tapete de flores, olhando aqui de cima. Não havia um espacinho sequer sem pétalas brancas ou coloridas. Seu espírito ficaria orgulhoso, eu tinha certeza. Depois de um tempo admitindo pra mim mesma que eu tinha conseguido, eu me abaixei. Segurei a proa, eu e Byakko nos levantamos devagar, equilibrando o corpo, e começamos a andar, os dois em silêncio. As únicas duas peças de um cortejo minúsculo, mas esforçado. É, isso mesmo.

Como o Espírito estava comigo, achei melhor fazer um ajuste nos ritos: todos na ilha iriam pra mesma praia a oeste, colocar seus entes queridos na água do mar, para que viajassem até o Outro Lado através do horizonte. Mas eu não sabia se Byakko podia ser visto. Ou se queria. Então, decidi que entraríamos no mar por outra praia. O que importava era mandar o barco para o oeste, certo? Eu poderia ajustar o curso quando estivesse na água. Eu só esperava que Dorothea não ficasse brava pela praia que eu tinha escolhido... A relação que ela e Byakko tinham ainda era meio estranha pra mim. Talvez fosse algo que eu devesse perguntar pra ele, quando tudo acabasse.

A primeira coisa que eu vi, quando nos aproximamos, foi a cúpula do templo. A maré na Praia Velha estava baixa, como na noite passada, então descemos as pedras com cuidado e abaixamos a canoa na linha das ondas.

— O que acontece agora? — Byakko perguntou.

— O barco tem que ser colocado no mar e seguir além do horizonte, para o oeste. Quando o sol se pôr, ele vai rasgar o horizonte e abrir a passagem entre a vida e a morte, guiando todas as almas até o Mundo Invertido. E é por isso que os espíritos só atravessam no crepúsculo.

Byakko ia abrindo a boca, eu acho que para finalmente questionar a tradição, mas parou, me encarando. Comecei a tirar as minhas roupas mais pesadas, ficando com o mínimo possível, uma peça em cima e outra em baixo, e ele arregalou os olhos.

— O problema é que alguém precisa guiar o barco na direção certa — concluí, jogando minhas roupas no chão. — Ou, dizem, a alma pode se perder para sempre.

Me sentei na areia molhada, tentando manter a pederneira na minha mão longe da humidade, e olhei para o sol, que já começava a submergir na água, onde quer que o mundo acabasse. Senti os segundos escorrerem através do buraco que o sol abrira no horizonte, a garganta dar um nó cego e os olhos arderem. Devia ser a maresia, o vento jogando sal e areia nos meus olhos...

Tinha chegado a hora.

Eu precisava concluir os ritos.

Tomei fôlego e forcei a memória, tentando me lembrar das palavras certas:

— Nós caminhamos juntos, até então, todos os dias. Mas, na jornada que você vai fazer agora, eu não posso te acompanhar — acendi a pequena lamparina na proa da canoa, com uma faísca da pederneira. — Mas tudo bem, porque você não vai ser a primeira a ir, nem a última. E, um dia, eu também vou te encontrar lá, do Outro Lado.

Levantei-me e rodeei a canoa até a popa. Comecei a empurrá-la para a água e Byakko deu um passo adiante, querendo me ajudar, mas eu estendi o braço e gesticulei que não.

— É algo que eu preciso fazer — respondi. — Sozinha.

É o papel da família, engoli em seco. Você já fez bem mais do que eu poderia esperar, Byakko...

Continuei. Entrei nas ondas, segurando o barquinho pela popa, empurrando-o; a água subiu até meus joelhos, meu quadril, minha cintura, meu peito, meus ombros... até eu não conseguir mais tocar a areia no fundo com os pés. Mas ainda não era o suficiente. Eu tinha que nadar para o oeste, o máximo que conseguisse.

— Você só vai ter que seguir a luz — continuei a oração. — O mar, que cuidou de você a vida toda, vai te proteger no caminho. As ondas não vão te derrubar, as correntes vão te empurrar, e os animais serão seus avatares.

Olhei para trás e ao redor. Outras luzinhas começavam a aparecer na água, à minha direita, todas vindo da mesma praia. Dezenas de outros barquinhos que iam seguir na mesma direção que Dorothea.

Engoli em seco outra vez.

— Você não vai estar sozinha — sussurrei, mais um alento pra mim, do que pra ela.

Nadei o mais longe que conseguia. Já sentia as pernas doerem, ao mesmo tempo que estavam ficando dormentes com a água gelada. Os outros também estavam se aproximando, com as lamparinas acesas na proa de cada barquinho, e uma pessoa empurrando cada um. Alice se aproximou, emparelhou comigo, e parou de nadar também, enquanto mais gente vinha atrás. Ela me encarou e acenou com a cabeça, ofertando suas condolências de longe. Retribui o aceno.

Por fim, todos se alinharam.

Era minha última chance de dizer algo para Dorothea:

— Não se perca, tá bom? — Funguei. — Eu não quero ter que pedir pra Byakko te colocar no caminho certo, mas você sabe que eu faria isso — sussurrei. — Por você, eu faria...

Todos deram um empurrão forte nos barquinhos de seus entes queridos, impulsionando-os uma última vez na direção certa. O sol já estava sumindo, a penumbra do crepúsculo caia sobre nós, e a passagem estava aberta. Não havia mais nada que pudéssemos fazer além de observá-los se afastar até sumirem no horizonte, na escuridão da noite e...

— Adeus...

 


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