A Pele do Espírito escrita por uzubebel


Capítulo 2
Capítulo 01




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Lorena

As rochas cobertas de mariscos cortavam nossas mãos e pés. Nada que a gente não tivesse passado antes. Mas, enquanto eu procurava nas pedras algum sinal de cor ou de brilho, eu não estava dando uma meia-concha para as ostras que Dorothea tinha pedido. Eu estava mesmo era atrás das coisas que a maré baixa deixava na praia, e que os outros tinham medo de pegar.

O vento atravessava a praia até o mar, armando uma tempestade lá longe: o céu estava escuro e eu via alguns raios. As nuvens passavam bem rápidas pelo céu, mas sem cobrirem o sol muito baixo do entardecer. A maré recuada tinha deixado à mostra os restos do que os adultos diziam ter sido uma cidade. As pilastras de pedra branca das casas destruídas saíam das pedras encharcadas como as costelas de um peixe limpo.

Bem na frente, o templo da cidade-fantasma – a única coisa que continuava inteira – cobria um pedaço do sol no horizonte. Nem os adultos sabiam explicar o porquê: enquanto todas as casas no caminho e mais pra frente haviam sido destruídas, só o templo ainda estava inteiro, e cercado de ruínas. Quando a maré subia seus vários metros, o templo sumia embaixo das ondas, junto com toda a praia. Mas, quando a água voltava a baixar, a escadaria de pedra branca estava sempre seca, assim como as rochas num círculo perfeito ao redor.

O templo era o responsável pela maior parte das fofocas sobre Praia Velha. Ele estava cheio de suas próprias histórias de fantasma. Os adultos não tinham explicação pra falta de ossos e restos, nem pro que teria acontecido com as pessoas de lá. Era de se esperar que muitos tivessem morrido quando a cidade foi destruída. E quem já tinha tentado explorar o lugar falava de ter ouvido barulhos e rugidos terríveis, ter visto vultos na escuridão e objetos mudando de lugar. Como fantasmas atormentados deviam fazer. Por isso, os mais velhos faziam questão de contar histórias assustadoras aos mais novos. Diziam para as crianças malcriadas que, se não se comportassem, seriam deixadas no templo à noite, sozinhas. Pelo menos era o que diziam pras outras crianças. Dorothea não gostava nadinha dessas histórias.

As paredes lisas do templo eram mais altas que as de uma casa comum, apesar de dizerem que o lugar tinha um andar só. Seu teto era arredondado como um casco de tartaruga, e era coberto com desenhos de metal, que brilhavam no sol. Arcos seguravam o que parecia ser... – uma varanda, isso! – de cada lado das portas e janelas altas e escuras. Havia desenhos por toda parte, cavados na pedra ou feitos de metal.

— Lóris... — Ed me chamou. — Nós vamos mesmo fazer isso?

— Vamos fazer isso hoje? — Disse Alice, descendo de uma rocha molhada com cuidado para não escorregar.

— Eu nunca vi a maré tão baixa — respondi. — Quando é que vamos ter outra chance dessas?

Eu estava tão empolgada que quase nem conseguia deixar meus dedos parados, batendo eles sem parar na cesta que carregava.

Já Ed, de tão nervoso, estava ficando sem dedos para estralar.

— Você sabe porque os adultos nunca vêm aqui, né?

— Porque eles estão sempre ocupados? — Revirei meus olhos.

— Não! — Ed retrucou. — Porque eles têm pavor desse lugar!

— Você também deveria estar com medo. Ainda mais num dia como o solstício de inverno... Os Espíritos vão ficar furiosos por estarmos mexendo nas coisas deles, logo hoje.

Alice estava bem preocupada com a noite em que o nosso mundo e o mundo dos Espíritos ficavam mais próximos – o bastante para se tocarem, era o que diziam.

Dei de ombros.

— Eu procuro coisas aqui na Praia Velha faz tempo e ainda tô bem.

Finalmente, pus os olhos em algo interessante dentro de uma poça de água do mar. Era um anel prateado pequeno, de mulher, cheio de desenhos. Passei o dedo pelas linhas escuras, sentindo elas. Claro que eu não sabia o que o anel significava — as ruínas já estavam lá muito antes dos nossos ancestrais terem chegado na ilha — mas eu sabia que significava alguma coisa. Era um pedaço das pessoas que costumavam viver ali antes. E era isso que importava para mim.

Escondi o anel entre os mariscos na cesta pendurada em meu cotovelo, mas não estava satisfeita. Com a maré tão baixa, eu imaginava que vários objetos fossem aparecer na praia, como de costume. Eu mesma já tinha pegado várias coisas lá, quando conseguia um tempo sozinha. Ninguém mais tinha coragem de pegar nada na praia, mesmo que fosse algo valioso. Mas talvez os objetos tivessem recuado com as ondas. Ou talvez os Espíritos dos mortos estivessem escondendo seus tesouros. A gente já estava ali fazia tempo e o anel era tudo o que eu tinha encontrado.

Bufei.

Alice olhava em volta, principalmente para o sol que começava a sumir no horizonte.

— Já podemos ir? Está ficando tarde.

— Espera, quero fazer uma coisa antes — eu disse, seguindo em frente.

— Onde você vai? — Ed perguntou.

No único lugar onde não procuramos, não?

— Aposto como deve ter alguma coisa no templo. Algo interessante.

Ed e Alice correram para me alcançar e me puxaram pelo braço.

— Você tá maluca?! — Eles gritaram.

— Vai entrar no templo de um Espírito sem permissão? — Alice perguntou.

— Eu não vou fazer nada demais — Bufei. Por que eles tinham tanto medo dessas histórias que eram só pra assustar a gente? — E o templo deve estar tão abandonado quanto o resto da cidade.

Ed cruzou os braços.

— Se você quer ir, tudo bem. Mas nós não vamos com você. Não lá pra dentro.

— Está ficando escuro... Vamos nos atrasar para o festival — Alice comentou, tentando me convencer a dar meia volta.

Estava mesmo ficando tarde. Dorothea ficaria preocupada e viria atrás de mim se me atrasasse, e ela não podia saber que eu estava na Praia Velha.

— Vão na frente. Aqui — entreguei minha cesta de mariscos para Alice. — Entreguem pra Dorothea e digam que eu já vou. E se ela perguntar onde estou, hã... Eu estou em qualquer lugar, menos aqui. Tudo bem?

Eles concordaram.

— Você tem certeza...? — Alice perguntou, dando uma última encarada no templo.

— Sim... — Bufei.

— Então a gente se encontra na clareira?

Fiz que sim com a cabeça.

— Nos vemos mais tarde.

Os dois subiram em direção à vila. Eu fui pelas pedras escorregadias, descendo em direção ao templo. Estava entre a marca escura que a água deixava, onde a maré chegava em seu ponto mais alto, e a construção. Continuei. A decida era difícil, porque o templo tinha sido construído nos rochedos que continuavam mesmo debaixo d’água. Nunca dava pra ver a areia na Praia Velha, não importava o tanto que a maré baixasse. Apenas pedras. De onde eu estava, não havia caminho mais fácil. A única trilha para lá ia do templo para dentro do mar, onde a maior parte das ruínas ficava sempre submersa, mesmo na maré baixa.

Agora, a maré estava uns quatro ou cinco metros abaixo do normal, e as ondas batiam na escadaria do templo. Em seu máximo, o mar fazia o prédio sumir inteiro.

Nem parece um templo velho.

Estava distraída, quando um movimento inesperado atraiu minha visão: um vulto empoleirado no teto, contra a luz do sol se pondo, que desapareceu tão rápido quanto surgiu. Como um truque da luz.

Sacudi a cabeça, enquanto um calafrio me chacoalhou o esqueleto. Havia mesmo algo ali? Será que as histórias de fantasma tinham algum fundamento?

Mesmo assim, continuei. Parei na frente da escada de mármore que levava para dentro do templo, tentando não pisar nas ondas que iam e vinham. Onde eu estava, nas rochas na praia, tudo estava encharcado ainda. Mas, só um passo à frente, estava tudo seco: os degraus, o chão e até as paredes. Como se uma bolha gigante cobrisse o lugar todo quando a água subia.

Subi cada degrau, nervosa, e parei no último. Ótimo. Até agora, nada tinha tentado me devorar. Nenhum fantasma passou arrastando suas correntes nem disse “bu!”. Eu estava mesmo sozinha.

 As portas na minha frente eram tão altas que eu mal alcançava as cabeças de tigre metálicas, uma delas com um anel na boca. Imaginava que as portas velhas seriam pesadas de se abrir, mas elas se abriram tão fácil que eu caí para trás, sentada. Pareciam bem-cuidadas demais para um lugar abandonado..., pareciam mais as portas da casa de Dorothea.

Entrei. O lugar estava muito escuro. A única luz vinha da porta aberta e das janelas na parte de baixo do teto curvo, e eu via muito pouco. Acima da minha cabeça, preso ao lado da entrada, estava pendurado um sininho de prata. Daqueles que se usava para anunciar sua presença ao Espírito do templo. Estendi a mão para a corda de seda... Um pouco de proteção dos Espíritos nunca era de se jogar fora, né? Mas, se o que diziam do templo era verdade – que era mal-assombrado – então chamar a atenção deles talvez não fosse a melhor ideia... Ainda mais no solstício.

Infelizmente, o som do sino já se espalhava pelo salão.

Meus olhos começavam a se acostumar com a falta de luz. Eu via agora alguns detalhes nas pilastras que sustentavam o templo, e ao redor do círculo de janelas na base do teto “de tartaruga”. Além disso, a luz das janelas altas iluminava a única mobília de todo o salão: um altar cercado por laguinhos de água limpa. Comecei a avançar bem devagarinho em direção ao altar, ainda com medo de algo estranho acontecer, como algum fantasma aparecer para lustrar as estátuas de felinos entre as pilastras, porque tudo naquele lugar parecia limpo e organizado demais. Sério. Incensos queimavam, a ponta dos archotes tinha cheiro de óleo novo, o chão estava seco e sem poeira e vários objetos estavam colocados sobre o altar.

A parede atrás do altar era um painel esculpido. Ele mostrava dois felinos grandes e ferozes, um preto e outro branco, presos dentro de um círculo. Ou uma clareira. Ou uma arena, talvez? Os dois pareciam se encarar, lutar e dançar, tudo ao mesmo tempo. O claro segurava uma joia vermelha entre as presas, e o escuro, uma joia azul.

Me aproximei do altar. Em cima dele tinha um amuleto, feito de uma pedra tão branca quanto as paredes do templo, mas que não parecia ser do mesmo tipo. Ela não era riscada de cor como as paredes.

No momento que o peguei, o toque fraco do sino foi interrompido. Olhei por cima do meu ombro e vi que ele tinha parado de balançar de repente, como se alguém o tivesse segurado. Mas não tinha ninguém por perto, nem escondido nas sombras. Só eu.

 Outro calafrio me subiu a espinha na hora. Vi através das janelas o céu que escurecia, e decidi que tinha passado da minha hora de ir. Joguei o amuleto no fundo do meu bolso e passei apressada pelas portas que tinha deixado abertas. Não me virei para olhar para trás nem quando as ouvi se fecharem sozinhas.


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