A Pele do Espírito escrita por uzubebel


Capítulo 3
Capítulo 02




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Lorena

A Praia Velha não ficava tão longe, apesar de muita gente preferir fingir que ela não existia. Eram vinte minutos de caminhada, talvez quinze se eu me apressasse só um pouco. Correndo como eu estava, cheguei à casa de Dorothea em bem menos tempo.

Entrei pela cozinha, meio ofegante.

— Desculpe, estou atrasada!

O cheiro que vinha do fogão era bom demais. Certeza que Dorothea ainda estava cozinhando pro festival.

— Lorena? Venha cá.

Corri até ela. A mesa estava atulhada de comida gostosa: pescado fresco, os mariscos que eu tinha apanhado, pães quentes e doces... O cheiro me encheu de fome.

Dorothea era uma viúva pequena de cabelos grisalhos e presos. Como tinha suspeitado, ela estava cozinhando no fogão de barro e atiçava o fogo, virando a madeira seca pra que queimasse bem. Era sempre legal ver ela cozinhar: ela nunca se cortava, mesmo arrumando tudo rápido demais, nem deixava a comida queimar.

Minha lembrança mais antiga era, justamente, comer de seu ensopado. Na época, logo depois do incêndio, eu podia não me lembrar dela — e nem me lembrava do meu próprio nome — mas o cheiro quente dos temperos tinha enchido minha boca. Parecia que eu não tinha me alimentado há dias. O que era bem possível. Entre o dia do incêndio que tinha destruído minha casa, e o dia em que fui encontrada, ninguém sabia onde eu tinha estado. Nem eu mesma. Só sabia que tinha apagado e que, quando acordei, já estava na casa de Dorothea, sentindo o cheiro delicioso de sua comida, louca por uma colherada. Sua comida fazia eu me sentir... em casa, desde então.

Mas ela não me recebeu com seu sorriso amigável. Dorothea se virou quando passei pela porta, batendo a farinha das mãos, e me encarou com um olhar severo.

— Lorena, onde você estava?

Passei a mão pelo meu braço depressa, como se estivesse com uma coceira.

— Anh... estava na praia — respondi, sem olhar pra ela diretamente — A gente tava colhendo os mariscos, mas Alice e Ed estavam com medo de se atrasar, e eu quis ficar para ver o pôr-do-sol, então eles vieram na frente.

Ela cruzou os braços.

— Qual praia?

Gaguejei.

Ela apanhou algo na cesta de mariscos ao lado do fogão, e me mostrou. O brilho do metal chamou minha atenção, e foi quando percebi como estava ferrada.

Antes que tivesse tempo de inventar outra meia verdade, Dorothea colocou o anel sobre a mesa e o empurrou na minha direção.

— Você estava naquelas ruínas, não estava?

Droga...

Só pude fazer que sim.

— O que nós conversamos sobre isso?

Eu olhava dela para o anel, para a cesta, para a porta, mordendo minhas bochechas até sentir gosto de sangue. Será que ainda havia alguma forma de pegar meu tesouro de volta? Talvez, se ela se distraísse...

Mas ela pegou o anel como se soubesse que eu estava pensando em uma maneira de recuperá-lo.

— Eu já havia lhe pedido para não ir à Praia Velha. Aquele não é um bom lugar. E é perigoso...

— Mas...

Ela me interrompeu com um gesto impaciente.

— Lorena... Nós conversamos sobre isso. Hoje eu não tenho tempo para lhe dar outra bronca. Se apresse, ou não vai conseguir ver seus pais antes do festival.

— Tá bom... — Sussurrei.

— E eu vou me livrar disso — ela mostrou o anel antes de jogá-lo em seu próprio bolso. — Não é bom mexer no que não é seu.

Dorothea se virou de novo para o fogão e começou a mexer nas panelas antes que sua comida queimasse.

O amuleto pareceu coçar entre as dobras das minhas roupas. De repente, ele se tornou ainda mais precioso. Era a única coisa que tinha sobrado da minha pequena busca da tarde, e isso significava muito. Tentei não tocar meus bolsos para não chamar a atenção de Dorothea. Não queria ter outro tesouro confiscado.

Ela empurrou uma pratada de itens variados, mas principalmente de sobremesas, na minha direção.

— Anda, eu separei comida para seus pais. Um pouquinho de cada coisa. —Dorothea sempre dizia que meus pais gostavam de doces... — Vá levar para eles.

Ela se virou novamente e voltou com uma trouxa fechada, cheia de comida também.

— E leve essa para os seus amigos. — Finalmente, seu sorriso bondoso estava de volta. — Assim vocês terão alguma coisa para comer mesmo se acabarem se distraindo.

— Obrigada — eu agradeci, mas sem olhar pra ela.

Eu só tinha olhos para a porção generosa que ela tinha me dado, com várias das minhas comidas favoritas.

— Agora, vá ver seus pais. Logo vou precisar da sua ajuda para levar tudo até a clareira.

— Certo.

Saí da cozinha, e passei pela sala. Dorothea recebera visitas mais cedo, quando eu saí para a praia, mas já estava tudo arrumado outra vez. Ela nunca deixava as coisas fora do lugar por muito tempo. Se eu mexesse na cozinha, então, ela sabia só de bater o olho. Passei pelo curto corredor de paredes nuas e entrei no primeiro cômodo à esquerda. Era pequeno, limpo, sem móveis, além de dois altares apoiados contra a parede. Os dois também muito limpo e organizados. Dorothea dizia sempre que a bagunça ofendia os Espíritos. Que um altar bagunçado era desrespeitoso. Me sentei diante daquele mais à direita, arrumando as flores que Dorothea deixara sobre ele, mas com cuidado pra não tirar ele do lugar um centímetro sequer. Já tinha enfurecido Dorothea o bastante por um dia. Acendi dois incensos e seu cheiro encheu o quarto, me lembrando vagamente do templo. Pus o prato de comida em cima do altar e apanhei o desenho amarelado, de bordas chamuscadas, que também estava lá.

Dizem que o solstício de inverno é uma data sombria. Não dá pra pensar menos da noite mais longa do ano. As pessoas têm medo do escuro. Mas eu não.

Eu tenho medo da luz.

E eu nem me lembrava do porquê. Não me lembrava dos cinco primeiros anos da minha vida. Eu só sabia do incêndio porque Dorothea tinha me contado. E porque as outras pessoas cochichavam sobre isso até hoje. Se não fosse por isso, talvez nem soubesse porque tinha medo do fogo.

Beijei o casal na imagem, e depois a devolvi para o altar.

— Mamãe, papai, eu trouxe doces. Dorothea sempre diz que vocês gostavam de doces...

Suspirei.

— Feliz solstício de inverno.

 

***

 

Quando saímos, a maioria das pessoas já estava nas trilhas entre as casas, indo na mesma direção. Todos usavam suas melhores roupas e, como nós, tinham os braços cheios de comida e oferendas. Infelizmente, roupas novas pinicavam com seu tecido cru e novo, e eu não podia me coçar sem derrubar tudo que eu carregava no chão. Mal podia esperar pra chegar na clareira... Bufei.

As crianças mais novas passavam correndo por nós e repetiam errado cantigas que falavam de luto e separação. Algumas não tinham idade pra ter visto a morte de perto, nem tinham perdido alguém querido. Com tão pouca gente na ilha, o tempo entre um passamento e outro podia ser longo. Os adultos só cantarolavam, mentalizando a letra com tristeza.

A clareira estava limpa e coberta de toldos coloridos. As folhas secas tinham sido varridas do chão, como dizia a tradição. Não devia haver por perto nenhum lembrete de morte ou velhice. Até mesmo árvores doentes eram arrancadas de perto da clareira, dias antes do festival. Nem mesmo a comida estava morta. Os mexilhões e mariscos eram levados frescos, em jarros de água, e comidos vivos, ainda se mexendo. Eca... Essa definitivamente não era minha parte favorita do festival, então eu me focava nos doces.

Dorothea sabia disso, por isso tinha separado comida pra mim.

Depois de ajudar ela a carregar todas as oferendas, eu me afastei para procurar meus amigos. Desde que tinha saído de casa, não conseguia me livrar da estranha sensação de estar sendo observada. Mas não da maneira que estava habituada. Por onde eu passava, as pessoas da vila costumavam virar a cabeça para me encarar. Cochichavam entre si sobre mim, a menina do incêndio, e como eu misteriosamente tinha sobrevivido, depois de ter sido encontrada muito longe da minha casa destruída. Esses olhares ainda me perseguiam, mas pela primeira vez não eram eles que me incomodavam. Era outra impressão. A de estar sendo vigiada à distância.

Ed e Alice não estavam muito longe da comida, claro, mas ficaram felizes ao ver que eu trazia uma porção só para nós. Estavam sentados de frente para a fogueira alta e quentinha, mas não perto demais. Por mais confortável que o calor fosse numa noite de inverno, eles sabiam que sentar muito perto me deixava nervosa. Com vontade de sair dali. Lá na frente do fogo, os meninos mais velhos contavam histórias sobre os Espíritos – e sobre fantasmas. Alice pescou um biscoito da sacola e Ed escolheu um punhado de balas de algas.

Um dos garotos adolescentes estava encenando, entre o fogo e a plateia, uma das várias histórias sobre a Praia Velha e seu templo assombrado. Ele dizia que seu avô havia entrado no templo, mas que não tinha ouvido lamentos ou sussurros estranhos. O que ele viu foi um par de olhos assustadores na escuridão do lugar mal iluminado, antes de fugir correndo. Outro riu, e contou uma versão diferente do lugar. Porque seu pai tinha entrado e ouvido um monólogo baixo e soturno, ele disse — eu não sabia o que significava —, mesmo sem encontrar de onde vinha a voz. Um terceiro contou sobre as tochas lá dentro, que chegavam a se acender sozinhas, como mágica. E isso eu também já tinha visto. Quando eu passava por lá, algumas vezes, era possível ver que uma luz fraca de fogo escapava pelas janelas do telhado de tartaruga.

Ed lambeu o doce das pontas dos dedos.

— Detesto histórias de fantasmas... Prefiro as histórias sobre o tempo antes dos Espíritos sumirem. Você não acha, Lóris?

Era assim que ele me chamava: Lóris. O apelido era o nome de um país distante, do outro lado do mar, onde os habitantes tinham olhos e cabelos negros como os meus. Além de significar chama. Perfeito para a garota que não morreu queimada.

Cocei meu nariz, tentando esconder um riso depois de ouvir as histórias.

— Eu não vi nada disso que estão falando — comentei com eles minha própria experiência no templo. — Na verdade, é um lugar estranhamente... normal.

— Normal? Tá falando sério? — A voz de Ed falhou de tão aguda.

— É — respondi. — Era limpo e bem-cuidado, como se fosse a casa de alguém.

Alice estava boquiaberta.

— Mas você viu alguma coisa?

— Não exatamente... — Pensei no sino que tinha misteriosamente parado de tocar. Mas agora, na frente do fogo e dos meus amigos, o medo que eu tinha sentido não existia mais. — Mas eu encontrei uma coisa.

Botei a mão no bolso e puxei discretamente o amuleto para fora ­– apenas um pedacinho – mostrando para os dois o que eu tinha encontrado. Alice levou as mãos à boca na hora, e Ed estava mudo de tão chocado.

— Você pegou isso no templo? — Alice perguntou.

Fiz que sim.

— Você roubou de um Espírito? Tá maluca?! — Ela olhava pra mim como se quisesse tomar aquilo de mim, mas parecia estar com medo demais para tocar o amuleto. — Você precisa voltar lá e devolver isso!

— Por quê? Não tinha ninguém lá. Eu não vi nada. Não roubei nada de ninguém. O amuleto estava jogado em um canto.

O que não era bem verdade...

— Você pode não ter visto o Espírito, mas não significa que ele não estava lá.

— Aff... Os Espíritos não são invisíveis, Alice — ninguém fazia lendas sobre aquilo que não podia ver, né?

Empurrei o amuleto de volta para o fundo do bolso.

— Além disso, Dorothea encontrou o anel... Ela vai jogar ele fora, com certeza. O amuleto foi a única coisa que sobrou...

— Mentira! Você tem um monte de bugigangas daquele lugar, tudo escondido debaixo daquela...

Cobri sua boca antes que ela deixasse escapar meu segredo.

— Psiu!

Alice sacudiu a cabeça pra se livrar de mim e terminou de sussurrar sua frase:

— Escondido debaixo daquela tábua solta no seu quarto!

Bufei.

— Eu sei, tá legal? Mas eu quero o amuleto. Ele parece importante. Porquê mais algo assim estaria largado em cima do altar?

Ela guinchou.

— Você tirou isso de cima do altar?!

Sacudi as mãos pra cima e pra baixo, pedindo pra ela não gritar.

— Eu não fiz nada de errado.

— Você roubou a oferenda sagrada de um Espírito! — Alice rebateu.

Por que Alice continuava insistindo tanto num Espírito que não devia passar de uma lenda?

— Ninguém faz uma oferenda naquele templo desde antes dos barcos dos nossos ancestrais atracarem na ilha, Alice. Pelos Espíritos, para de surtar — eu disse. — Ed, diz alguma coisa!

— A-ahn... — ele gaguejou.

— Grande amigo você... — chiei. — Olha, se for pra vocês continuarem com esse drama, eu vou comer e voltar pra casa. Ainda tenho que esconder isso da Dorothea. E não, vocês não podem contar nada pra ela.

Eles se encararam, e depois se viraram pra mim.

— Não acredito que estavam mesmo pensando em contar pra ela!

Eles tentaram negar, mas, no fim, os dois concordaram — como amigos — que não contariam nada. E não tocaram mais no assunto. Mesmo assim, ainda que escondido comigo, o amuleto deixava os dois bem nervosos. Por causa dele, a conversa não voltou a fluir como antes. Então, acabei decidindo voltar mais cedo para casa, mesmo assim. Pelo menos para guardar o amuleto num lugar seguro antes de Dorothea voltar para casa.

Eu era capaz de me lembrar bem do primeiro item que eu resgatara da praia. Eu já tinha ouvido várias histórias do lugar. Mas, como a praia ficava no caminho para o bosque em que Dorothea buscava resina e ervas, eu e ela tínhamos o costume de passar por lá.

Um dia, tinha existido uma cidade naquela praia. E agora não havia mais. Essa era a história. E não restava nada de seus antigos moradores além de seus objetos abandonados, que o mar costumava cuspir de volta: cerâmicas, roupas, joias... E tudo ficava lá até a maré voltar a subir, sem que ninguém pegasse nada.

Um dia, eu encontrei uma boneca. Devia ter pertencido a uma criança também. Eu tinha seis anos quando aconteceu. A boneca tinha olhos negros, abundantes cabelos escuros e usava roupas diferentes de tudo o que eu já tinha visto... Suas cores eram vivas de um jeito que nós nunca conseguiríamos tingir, porque nossos tecidos eram amarronzados, de fibra crua. O formato das roupas também era diferente, com cortes delicados e diagonais, e dobras e pregas nos ombros. Além disso, o cabelo da boneca estava enfeitado com contas brilhantes, e não com nada que viesse do mar.

E eu a peguei.

Quando percebeu, Dorothea bateu na minha mão, esbravejando para que eu soltasse aquilo agora, agora! Disse que o brinquedo estava amaldiçoado, igual a qualquer outro objeto daquela cidade fantasma. Mas ela logo se virou, e não me viu esconder a boneca. E jamais descobriu a pequena tábua solta no assoalho do meu quarto.

A boneca foi a primeira de vários tesouros que peguei na praia. Cada um deles tinha uma história que ninguém sabia. Eram como eu, que tinha perdido minha própria história no incêndio que matou a minha família, e não sabia como recuperar. Eu tinha começado juntando itens do meu próprio passado, desenhos, objetos que eu desenterrava dos restos da minha antiga casa, atrás de alguma pista. Uma resposta. Depois, acabei me atraindo por outras histórias. Foi quando descobri as coisas que o mar costumava espalhar pela ilha.

Uma boneca;

Um bracelete;

Algumas moedas de cobre;

Roupas de cores vivas;

Um amuleto.

Tudo isso estava escondido sob o assoalho do meu quarto.


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