A Pele do Espírito escrita por uzubebel


Capítulo 19
Capítulo 18




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Byakko

 

Foh apertou o punho fechado contra a própria palma e estralou os dedos pra mim. Fez isso com as duas mãos, sem desviar o olhar. Desamarrou os laços que prendiam seu vestido cerimonial de cetim aos ombros e deixou que o tecido escorresse por seu corpo, até se amontoar no chão. Ajeitou as alças de sua roupa de baixo, uma blusa e calças pouco abaixo dos joelhos, ambas de algodão branco, sem contas ou bordados rebuscados, bem mais leves e confortáveis. Ela deu um passo para fora de seu vestido, avançando na minha direção.

Ela apontou o capuz sobre a minha cabeça.

— Tá esperando o quê? Vai sujar sua túnica desse jeito.

Suspirei. Por que Foh insistia nessa coisa toda de lutar? Todos os dias...

Mas fiz o que ela mandou e desabotoei a túnica dos ombros, abrindo-a na frente do corpo e despindo os braços. As roupas que eu usava por baixo também eram de algodão, mas de cor crua e amarelada: uma blusa sem mangas e uma calça longa, larga, que cobria meus pés descalços. Deixei a túnica prateada sobre a borda do ninho, voltei ao meu lugar diante de Foh, apertei a corda ao redor da minha cintura e fiz um nó reforçado. Depois, a encarei.

Ela bateu duas palminhas:

— Agora, sim.

A Fênix chutou suas sandálias de tiras para o outro lado do salão e seus pés descalços se cobriram de escamas acinzentadas e seus dedos se tornaram as garras curvas enormes de uma águia. Algumas penas vermelhas brotaram de seus cabelos ruivos, ao redor de seu rosto e de seus antebraços. As unhas de suas mãos também estavam afiadas, mas não eram nem de longe tão assustadoras quanto as de suas patas. Não era com elas que eu precisava me preocupar. Então, quando ela soltou suas mãos ao lado do corpo, seus punhos estavam em chamas, como tochas.

Pronto, agora eu podia me preocupar. Como sempre, Foh não estava de brincadeira. Apesar de estar sorrindo pra mim.

Bom, pelo menos alguém se diverte com isso.

Coloquei as mãos na frente do corpo, me preparando. Ela não estava em posição de combate, estava apenas parada, de pé, com as mãos em chamas, me observando. O que não significava muita coisa. Foh sempre me batia mais forte quando estava distraído. Encarei-a por cima de seus ombros, procurando...

É a milésima vez que fazemos isso e, como sempre, ela não botou as asas para fora...

Bufei e balancei a cabeça. Precisava manter o foco.

Ainda com as mãos em posição defensiva, coloquei um pé na frente do outro, distribuindo meu peso e usando o pé de trás como uma âncora.

Foh riu, inclinando a cabeça um pouco.

— Você parece tenso, gatinho.

Abaixei um pouco as mãos, trinquei os dentes e rosnei. Ela sabia que eu detestava ser chamado assim.

Aproveitando minha abertura, ela girou rapidamente, abaixando-se, pegou seu vestido no chão e o jogou sobre mim, cegando-me por um instante. Afastei a roupa ainda no ar, com o braço, e a rebati para o lado, mas Foh já tinha sumido da minha frente. Ouvi suas garras rasparem o chão atrás de mim e me abaixei, escapando por pouco da ter a cara socada por seu punho em chamas. Mas criando a distração de que ela precisava para pisar sobre o meu pé, perfurando-o com uma de suas garras curvas e prendendo-me ao chão. Apesar de não estarem em chamas como suas mãos, as garras de seus pés eram tão quentes quanto ferro incandescente, e me atravessaram como se minha carne fosse manteiga, cauterizando a ferida à ponto de não derramar uma gota de sangue. Mas doer. Doer muito.

Gritei, sentindo minha pele ferver.

Empurrei Foh com o ombro e a joguei numa das pilastras que sustentavam o salão no topo da Torre. Ela bateu de costas, rachando as pedras, e arfou. Foi o suficiente para o fogo em suas mãos se apagar por um segundo.

Desapareci dali, numa nuvem de névoa, e ressurgi do outro lado do salão, à uma distância segura. Quando pisei no chão de novo, o buraco no meu pé já tinha se fechado, e só restara a marca preta circular da fuligem que tinha sido pele queimada, e o cheiro... A dor também tinha passado.

Se eu tinha aprendido alguma coisa com essas lutas contra Foh, era que eu me curava muito rápido. Ferimentos superficiais às vezes se curavam antes mesmo de poderem sangrar, e mesmo os piores não levavam mais que um ou dois minutos. Eu me curava muito mais rápido que a própria Foh, e mesmo assim ela alegava que eu não estava pronto para ir embora, ainda. Alguém com uma capacidade regenerativa tão grande deveria ser virtualmente imortal, mas lutar contra outros Espíritos era uma história diferente...

Até mesmo a dor era momentânea e fugaz, quando algo realmente tinha a capacidade de me ferir. Ela passava assim que eu terminava de me curar. Mas, sim, eu era capaz de sentir tudo agora: o toque dos outros, a dor dos ferimentos, o clima, a chuva e o punho flamejante da Foh em meu rosto, todo dia à tarde. Todo dia com o mesmo pretexto: de que eu precisava aprender a me cuidar sozinho.

Foh se levantou, arfando, e voltou a acender os punhos.

— Você está jogando sujo, gatinho — ela tentou me provocar outra vez.

Fechei os punhos, mas não lhe dei outra abertura. Apenas franzi as sobrancelhas.

Ela deu de ombros.

— Se você não vem, eu vou.

Suas pernas estavam “humanas” de novo e ela correu até mim, atravessando o salão. Me preparei para ser atacado de frente, mas, assim que pulou, Foh desapareceu num pilar de fogo e reapareceu acima da minha cabeça, em pleno ar. Quando caiu sobre mim, ela tinha seus pés de águia enormes de volta, me derrubou de bruços no chão e fincou suas garras nas minhas costas. Todas elas. Me imobilizando.

Gani.

Por sorte, a Fênix era leve como um passarinho, e não conseguiu usar o próprio peso para me manter no chão. Levantei, sentindo suas garras incandescentes ainda firmes na minha carne, queimando, rasgando, e tentei me jogar de costas contra uma parede.

Foh previu e cobriu meu rosto com suas mãos em chamas, queimando minha pele, meu cabelo, meus olhos. Me deixou completamente cego, enquanto me montava como um animal, agarrada às minhas costas. Saí por aí corcoveando, batendo nas pilastras, nas paredes, tentando tirá-la de cima de mim, enquanto Foh ria e me puxava pela cabeça, desviando minha rota toda vez que eu chegava perto demais de seu ninho e de sua filha, como se me controlasse com um cabresto. Enquanto isso, eu sentia tudo dentro do meu crânio ferver, até meus pensamentos começarem a ficar desconexos e eu sentir vontade de só deitar no chão e desistir.

Segurei-a pelos pulsos e tentei tirar suas mãos dali. Mas, apesar de seu pouco peso, isso não fazia jus à sua força: ela aguentou firme, enquanto eu sentia meus próprios dedos queimarem no fogo que a cobria. Comecei a sentir meus dedos perderem a força e afrouxarem ao redor do pulso de Foh, com a minha pele queimando e com suas mãos incinerando até meus pensamentos.

Foi quando senti um calor no meu ventre que não vinha das mãos de Foh, nem de suas garras ainda fincadas em mim. Não era a mesma sensação de dor e ardência, e sim de força. Senti aquele calor perambular dentro de mim, passando pela ponta dos dedos da mão, pelas minhas costas feridas, até meus pés. Caí de quatro no chão, com apenas uma mão ainda segurando Foh pelo punho. Senti pelos se eriçarem nas minhas costas, presas pressionarem minha boca por dentro, o cheiro de queimado e de sangue ficar mais forte, mais nítido. Senti meus dedos se retesando e garras emergirem de sua ponta, marcando o chão em que eu me apoiava e se fincando com força no pulso de Foh, fazendo-a gritar de dor pela primeira vez desde que a luta tinha começado.

Senti uma euforia enorme e inexplicável. Algo inebriante. Foh afastou de mim a mão em que eu fincara minhas garras, e o alívio da dor foi imediato, assim que senti a pele começar a se curar das queimaduras. Puxei sua outra mão também, enfiando as garras com força em sua carne, e ela arfou, afastando-a também. Senti minhas pupilas curadas se contraírem até se tornarem apenas linhas escuras contra o prateado. E rugi.

— Isso! — Foh comemorou. — Finalmente, gatinho!

Foi então que, sem a dor em minha cabeça, meus pensamentos se tornaram nítidos outra vez, e recobrei a consciência, sentindo a transformação acontecendo.

— Não... — Murmurei.

Foh percebeu e lutou contra mim, enfiando suas garras com mais força nas minhas costas, tentando me infligir mais dor, querendo me obrigar a me defender.

— Byakko! — Ela gritou comigo. — Você não vai desistir agora, vai?!

Sacudi a cabeça.

Num último golpe de força, eu puxei Foh pelos braços, tirando-a de cima de mim e jogando-a longe. Ela girou no ar, atravessou o salão todo e bateu de costas contra a parede arqueada do outro lado. Depois, caiu no chão, meio atordoada.

Eu também caí no chão, com a testa tocando a camada de poeira, em posição fetal. O calor que eu sentira por dentro tinha me abandonado e agora eu só sentia frio, medo, arrependimento...

— Não, não, não, não... — Eu repetia, como um mantra, enquanto tentava voltar ao normal, respirando fundo.

Senti os pelos desaparecerem, as garras recuarem e as presas se tornarem dentes arredondados outra vez. E então, à cada fôlego que eu tomava, minhas pupilas também voltavam a se abrir e relaxar.

Eu nem tive tempo de me acalmar e, de repente, Foh já estava de pé, em cima de mim. Ela chutou meu ombro, me deixando deitado no chão. Suas sobrancelhas estavam franzidas, seus dentes estavam trincados. Ela estava possessa comigo. Por fim, ela acendeu apenas sua mão direita, com os dedos bem esticados como uma lâmina, e a apontou para o meio do meu peito, como um raio. Ela parou suas unhas à um centímetro de distância das minhas costelas. Não o bastante para perfurar meu peito, mas o bastante para que as chamas em seus dedos queimassem minha roupa e minha pele, mandando um recado: se fosse o mundo real, eu estaria morto. E agora ela estava lá, apontando para meu único ponto fraco. Um coração.

— Você estava quase lá, estava conseguindo, ia ganhar de mim. Não pode desistir assim!

Engoli em seco, ainda encarando sua mão apontada para mim. Depois, virei o olhar para ela.

— Desculpe...

— Tsc... Uma forma humana é frágil, Byakko, e não vai te proteger. Você é mortal agora e precisa lutar pela própria vida, se não quiser que seu verdadeiro nome seja uma mentira irônica — Ela apagou as chamas em sua mão, mas não a afastou de mim. — Você é mortal, mas não é humano. Pare de agir como um e se limitar à esta pele. Ou vai morrer!

Ela deu um passo para trás, finalmente.

Sacudi a cabeça.

— Não...

— Não o quê?! — Foh rebateu.

Desviei o olhar.

— Eu posso não ser humano, mas também não sou um monstro...

Foh chiou.

— Mas está vulnerável. E não só por causa dessa forma à qual estupidamente se apegou, mas porque não vai conseguir lutar com ninguém se estiver ocupado demais lutando consigo mesmo.

Ela se agachou ao meu lado e me segurou pelo ombro.

— E quem disse que as outras peles que você tem são monstros? — Perguntou.

Suspirei.

— Ninguém precisou dizer, eu vi... Nos olhos deles.

Foh se levantou e foi até um canto do salão. Pegou a moringa de água e despejou um pouco na cumbuca de barro que tinha se tornado minha, depois de dois anos vivendo aqui, com ela. Em seguida, voltou carregando-a e parou de pé ao meu lado.

— Você precisa esquecer isso, Byakko. Você pode ser uma pessoa diferente, agora, mas não significa que seu passado não faça parte disso. Parte de quem você é. Não pode fingir que nada disso existe.

Ela estendeu a água pra mim. Estava mesmo morrendo de sede. Ergui o corpo e me sentei no chão. Depois, estendi a mão para pegar a cumbuca. Mas, quando a toquei, Foh a virou, jogando a água toda na minha cabeça, me encharcando.

— Foh! — Gritei. — O que é isso?!

Ela levantou a sobrancelha.

— Você não mereceu, gatinho — Foh me provocou. — Pode se levantar e ir buscar você mesmo. E depois jogou a cumbuca no chão ao meu lado.

Senti meu peito vibrar com um rosnado baixo. Ela deu de ombros e começou a caminhar para o próprio ninho. E disse:

— Devia ter usado essa raiva quando lutamos — ironizou.

Foh adorava me dar nos nervos.

Então, algo maldoso me passou pela cabeça...

— Você fez todo esse discurso sobre eu não poder fugir do meu passado, mas também não está sendo sincera. Nós lutamos todos os dias há semanas, você muda de pele, se transforma, mas nunca coloca suas asas pra fora. Por quê? O que aconteceu que você não as usa nunca?

Ela fechou os punhos, ainda de costas pra mim, o suficiente para seus braços tremerem.

— ... Tem alguma relação com a pessoa que você perdeu? O pai da...

Foh voo pra cima de mim, tão rápido, que eu só percebi o que tinha acontecido quando senti sua mão em chamas queimando minha garganta. Ela estava com a respiração pesada, descompassada, a boca aberta, seu cabelo tinha se transformado numa crista eriçada de penas. Resumindo, com muita, muita raiva. Estava claro que eu a tinha cutucado num lugar dolorido...

— Cale a boca, Byakko. Você não sabe de...

— De nada — concluí, com a voz rouca, enquanto ela apertava meu pescoço e eu tentava puxar seus dedos para longe. — Eu sei...

Foh me soltou, e, quando toquei minha garganta, a pele já estava se refazendo, mas ainda era difícil respirar.

— Dizer essas coisas não vai te levar à lugar nenhum, Byakko. Você pode me deixa muito brava, mas eu não vou te mandar embora. Pode dizer o que quiser, mas eu não tenho muito mais a perder... Você não está pronto, e vou repetir isso até entrar nessa sua cabeça dura — ela bateu no meu crânio como se fosse uma porta fechada. — Mas...

Depois, apontou o dedo pro meu peito.

— Eu estou com raiva de você, então suma da minha frente antes que eu te jogue pela janela da torre. Não vai demorar pra seus ossos se refazerem, mas eu vou curtir cada segundo... — Ela guinchou no final da frase.

Assenti.

A Fênix caminhou até o próprio ninho outra vez, sem olhar para mim. Entrou e se sentou lá, com seu ovo. Então, começou a cantar baixinho, como se ninasse a criança adormecida.

De repente, me senti um intruso.

Suspirei.

Passei por trás de seu ninho e desci as escadas. Passei olhando através das janelas redondas que acompanhavam os degraus: estava começando a entardecer, com o céu se pintando da cor do fogo. Então, alguns degraus depois, eu estava no térreo, de frente para a árvore esculpida que retratava Feng e Huang.

Encarei as duas estátuas, de bicos abertos para mim. Eu às vezes descia e ficava imaginando como tinha sido pra eles, os primeiros a passarem por aquilo, os primeiros a cair. Eu podia reclamar de Foh, podíamos brigar e trocar palavras ácidas e revirar os traumas um do outro, mas eu não estava sozinho. Eles, não. Os dois tiveram que passar por tudo sem um mentor sequer. Avancei um passo e toquei o sulco no meio do peito das estátuas, depois seguindo a espiral ao redor com a ponta dos dedos. Eu já tinha entendido que o sulco não era diferente da estátua no meu próprio templo: também tinha abrigado uma pedra encrustada, eras atrás. Uma gema que se tornou um coração.

Baixei a cabeça e suspirei. Não era como se eu não entendesse o que Foh queria. Talvez fosse ela quem não conseguia me entender. Eu tinha passado minha existência inteira sendo visto como algo assustador pelos outros, despertando medo e aversão em todos que me viam, e agora... Agora, como mortal, eu finalmente podia escolher como queria me parecer. Podia ser como quisesse. Não precisava mais afugentar ninguém. E o que eu não queria ser, de jeito nenhum, era sozinho... Nunca mais. Mesmo assim, Foh ficava insistindo que eu mudasse de forma para lutar. Que eu era mais forte antes. Que poderia morrer se não estivesse disposto a isso. Mas eu não me importava com nada disso, desde que pudesse ser quem eu pensava ser. Desde que pudesse me parecer com o que Lorena via de bom em mim.

Passei um pouco mais de tempo lá, encarando as estátuas, sentindo o cheiro de poeira que dominava a Torre por inteiro. O lugar foi escurecendo conforme o sol se punha e, quando voltei a encarar o céu, a noite caíra lá fora, e eu estava sozinho, no escuro, apesar de poder ver perfeitamente.

Suspirei.

Está chegando a hora...

Me sentei no chão, de pernas cruzadas, sentindo as pedrinhas coloridas que pavimentavam o térreo por completo, ao redor das raízes da árvore. Respirei fundo, fechando os olhos, e me preparei, com os punhos fechados sobre as pernas.

Byakko?

Não demorei a ouvir a voz baixa e sussurrada soar na minha cabeça.

Toda noite, mais ou menos no mesmo horário, era assim, há pelo menos um ano. Lorena começava a me chamar, usando o amuleto, e repetia meu nome vezes sem conta, como uma oração...

Byakko.

Ela chamou de novo, um pouco mais alto dessa vez, como se eu não tivesse ouvido logo da primeira.

Byakko...

Dessa vez, ela disse algo mais depois do meu nome, algo que eu era incapaz de entender. O amuleto não conseguia traduzir, tudo o que ele podia me transmitir era o meu nome. Nada mais do que ela falava eu era capaz de entender, mesmo sendo capaz de deduzir quando ela conversava algo mais. Havia sempre um zumbido insistente, antes ou depois do meu nome, quando ela falava algo mais.

Qualquer coisa além disso eu só podia tentar imaginar...

Byakko... Byakko... Byakko...

Ela me chamou várias vezes, intercalando meu nome com o zumbido das coisas que eu não conseguia saber que ela dizia, sua voz se tornando mais urgente, mais embargada, até eu ter certeza de que ela soluçava entre as sílabas do meu nome, chorando...

Abaixei minha cabeça, cobrindo-a com meus braços, e comecei a soluçar também.

Byak-ko...

Ela chamava, vez após a outra.

De repente, senti um toque quente sobre meu ombro e virei o rosto para ver quem era. Foh tinha descido e acendido os braseiros ao nosso redor com o próprio fogo, em completo silêncio, enquanto eu, de cabeça baixa, não era capaz de perceber nada além do choro ecoando na minha mente. Ela puxou minha túnica, que tinha trazido pendurada em seus braços, e a jogou sobre os meus ombros, como um cobertor.

— Você esqueceu lá em cima — ela disse, enquanto se agachava ao meu lado, tentando abotoar a túnica na frente do meu corpo sem passa-la pelos meus braços.

Logo ela desistiu e a deixou de lado. Eu segurei as duas pontas na frente do pescoço, como se estivesse com frio, e ela sorriu.

Tentei respirar fundo.

— Pensei que estava brava comigo.

Ela entortou os lábios e desviou o olhar, cruzando os braços.

— Rum... — Resmungou. — Você não sabe de...

Revirei os olhos.

— De nada, eu sei... — Completei.

Ela assentiu.

Alguma coisa você está aprendendo.

Foh se ajeitou no chão, sentando-se de pernas cruzadas, como eu, apesar de estar de volta ao seu vestido de cetim.

— Ela está chamando, não está? A garota... — Ela perguntou.

Anui, me encolhendo ainda mais. Não importava que Foh estivesse ao meu lado e que estivéssemos conversando, eu ainda conseguia ouvir o choro de Lorena claramente, como se ela estivesse com a cabeça apoiada no meu outro ombro.

— Sim... — Respondi. — Como todas as noites.

Foh balançou a cabeça e ficou em silêncio.

Abaixei minhas mãos, sentindo-me cansado.

— Seja sincera, Foh, você veio pra ter certeza de que eu não ia me render, não é? Que não ia largar tudo aqui pra voltar pra ela... Porque... — Suspirei, fechando os olhos e deixando a cabeça pender em direção ao chão. — Sinceramente, é o que eu penso em fazer, todas as noites, quando a escuto...

Foh colocou a mão sobre a minha cabeça, como se pudesse abafar a voz de Lorena desse jeito, e me confortar. Só que...

— Mas você não está pronto — ela repetiu, pela milésima vez só hoje.

Estremeci.

— Você não tem nada melhor pra falar...?

Ela ajeitou a postura e se sentou com as pernas dobradas e os braços cruzados sobre os joelhos, com a cabeça inclinada olhando pra mim.

— Por que você quer voltar? — Ela perguntou. — Tem medo de que algo aconteça com a garota?

Levantei a cabeça, encarando a porta selada na minha frente, e respirei fundo.

— Não...

Fazia um tempo que eu não sentia a Serpente rondando o lugar, e Damon estava de olho em Lorena o tempo todo, eu sabia. Eu o tinha proibido de sair do lado dela, a não ser que fosse para protege-la. Podia não ter voltado a ver Mab ou Tâmi desde que partira, mas sabia que as duas tinham se tornado amigas de Lorena também, e que cuidariam dela da própria maneira. Não, não era a distância que me preocupava. Era o tempo. Eu tinha medo de, em alguma noite, não a ouvir mais, porque todas as noites eu a fazia sofrer por não poder encontrá-la. De ouvi-la chorar por minha causa, um dia atrás do outro. Temia que, quando eu finalmente estivesse pronto para partir, eu não tivesse para onde voltar. Pelo menos enquanto eu ouvisse sua voz dizendo meu nome, eu não estaria sozinho...

Diferente de você, eu não tenho uma eternidade para esperar...

Encarei Foh.

— Não... — Repeti, suspirando. — Eu tenho medo de ela desistir de mim.

Ela anuiu, em silêncio. Depois, levantou a mão e a usou para afastar o cabelo que caia no meu rosto, e a deslizou para coçar atrás da minha orelha. A Fênix ficou assim durante todo o tempo em que eu continuei ouvindo Lorena chorando, com a voz cada vez mais baixa, mais entrecortada, vagarosa, até ela se calar, vencida pelo cansaço, já bem mais tarde da noite.

Esfreguei os olhos com as palmas das mãos, sentindo eles arderem, e escondendo-os de Foh.

 

***

 

Na manhã seguinte, Foh bateu cedo na porta do cômodo que tinha se tornado o meu quarto, enquanto eu estava sentado na cama, olhando a cidade pela janela. Eu não sabia de onde ela tirara as poucas coisas que tinha colocado lá pra mim, como a cama – já que ela mesma parecia dormir no ninho, lá em cima – mas pelo menos ela tinha me dado um lugar onde poderia ficar sozinho. Bom, a maior parte do tempo, pelo menos... Ela não fazia muita questão de se anunciar antes de entrar, e riu de mim quando pendurei o sino na entrada, pera ela tocar. Como sempre, ela não usou o sino, como qualquer humano ou Espírito respeitosos fariam ao lidar com outro Espírito. Mas, dessa vez, eu fui surpreendido por três batidas na porta de madeira.

Abri a boca para lhe dizer que entrasse, mas ela não esperou minha resposta, e a porta se abriu bem antes. Suspirei. Pelo menos já era um avanço ela ter avisado que estava aqui...

Foh se apoiou o no batente da porta, jogou-me uma laranja e cruzou os braços. Com uma mão, apanhei a fruta no ar.

— Bom dia, gatinho...

Ah, não... Ela só me chamava assim quando...

— Coma logo e me encontre lá em cima — ela concluiu.

Respirei fundo.

— Não é meio cedo pra isso...?

Foh só me provocava assim quando íamos duelar, o que acontecia todo dia, pontualmente, durante a tarde. Sempre no mesmo horário. Foh poderia cacarejar toda tarde e eu saberia exatamente que horas eram: hora de levar uma surra. Logo, não fazia muito sentido ela querer me bater agora. Ela era uma criatura de hábitos inabaláveis.

Foh revirou os olhos.

— Eu decidi dar uma mexida no nosso cronograma hoje.

— Mas, por quê?!

Ela levantou uma sobrancelha e deslocou o maxilar para o lado. Depois, apontou para cima.

— Lá em cima. Agora...

Suspirei e larguei a laranja em cima da cama. Pelo menos eu não estava mesmo com fome. Me levantei e a segui escada acima.

— E o seu trabalho, Byakko? — Ela puxou outro assunto, enquanto subíamos. — Conseguiu resolver os problemas?

— Os Thanats estão aprendendo — dei de ombros. — Eles vão aos lugares onde não posso estar, é isso que importa. Somos uma equipe, agora.

Foh assentiu.

— Que bom. Achei que esse seria um problema bem maior.

— Todos eles têm um pedaço de mim. Se não fosse por isso...

Minha cabeça emergiu no salão superior e o sol da manhã, ainda perto do horizonte, me cegou por uns segundos. Resmunguei. Cobri os olhos com a mão e continuei subindo, com Foh ao meu lado.

Quando chegamos ao topo, ela saiu pelo alçapão primeiro. Caminhou até o espaço que tinha se tornado o nosso “ringue”, alongou os ombros e os braços, e me encarou. Eu ainda estava na escada, faltando o último degrau para subir e chegar ao salão.

— O que está esperando? — Ela perguntou.

Balancei a cabeça.

— Ah, nada. Desculpa...

E fui até onde ela estava.

Foh estava cantarolando, enquanto tirava sua elaborada roupa de cetim. Eu não me lembrava de ter visto ela cantando para ninguém além de sua filha adormecida – apesar do fato de que só havia nós três na Torre – e muito menos para si mesma. Era impressão minha ou Foh estava... de bom humor?

Eu nem sabia o que pensar disso. Nunca a tinha visto tão feliz antes de, bem, me bater... Será que eu devia ficar preocupado?

— Por que você ainda está parado aí? — Ela perguntou, se virando para mim depois de ter pendurado seu vestido e tirado suas sandálias.

— Ah...

Ela bufou e caminhou na minha direção. Depois, levantou a mão para o meu peito e começou a soltar o botão grande da minha túnica.

— Vem, eu vou te ajudar, ou vamos nos atrasar.

Segurei a mão dela logo que ela conseguiu soltar o tecido, e a Fênix me encarou.

— Foh, o que está acontecendo? — Perguntei.

Ela puxou a mão de volta e deu um passo para trás.

— Eu só... Tenho planos pra hoje.

Levantei a sobrancelha.

— Planos? Eu nunca te vejo sair dessa Torre. Que tipo de planos?

A Fênix cruzou os braços.

— Planos do tipo que vão rolar exatamente aqui, na Torre. Agora, anda logo, nós temos trabalho a fazer.

Bufei.

— Se você tinha planos, o que custava me dar um dia de folga? Pelo menos uma vez?

Foh fez uma careta.

— Não! Você ainda não está pronto! — Ela levantou os braços na minha direção, tentando me pegar, mas eu desapareci dali, deixando-a comendo poeira – ou névoa, na verdade.

Reapareci do outro lado do salão, enquanto ela tossia. Coloquei a mão na boca, já que estávamos longe agora, e gritei pra ela:

— Eu não disse que queria sair, disse que queria um tempo!

Ouvi Foh grunhir, mesmo estando do outro lado do salão. Então, fumaça começou a sair da sua cabeça. Literalmente. Ela desapareceu, como uma chama soprada, e fez o mesmo que tinha feito durante a nossa última luta: caiu em cima de mim. Dei um passo pro lado e desviei, mas ela me pegou pelo capuz e me puxou de volta.

Ri. Era a primeira vez que nosso “duelo” se transformava em algo divertido.

— Tira logo essa porcaria, ou vou queimá-la junto de você inteirinho — ela praguejou, puxando o colarinho aberto da túnica.

— Ei, ei, tá bom! Eu vou...

Mas o resto da frase se perdeu antes de sair pela minha boca.

Foh percebeu minha expressão estática e parou. Se aproximou de mim e estalou os dedos na frente do meu rosto.

— Ei, Byakko...?

Não respondi. Só conseguia pensar na sensação horrível que me dominou, um pressentimento ruim, que parecia me revirar por dentro. Foi então que eu senti: foi uma fisgada entre meus olhos, e uma sensação urgente de perigo e morte, como um calafrio, convocando-me para recolher a alma de alguém.

Alguém com um nome muito familiar.

Não, não, não, não..., disse a mim mesmo antes de desaparecer dali, de ir pra longe, e deixar Foh, confusa, para trás.

Lorena era o nome gravado na minha mente, como um farol.


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