A Pele do Espírito escrita por uzubebel


Capítulo 18
Capítulo 17




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Lorena

 

2 anos depois

 

Como sempre, eu fui sugada pela escuridão do vazio que deveria ser o rosto dos meus falecidos pais. Tive a sensação de cair por alguns segundos, o frio na barriga, mesmo sem conseguir ver nada ao meu redor. Senti meu corpo bater no chão de leve, como se não tivesse caído de tão alto assim, e abri os olhos. De novo, um sonho dentro de um sonho.

Agora, eu estava do lado de fora. Levantei do chão frio e arenoso. As árvores densas ao redor faziam sombra sobre mim e sobre o chão, sufocando os arbustos que mal chegavam a brotar direito. Mas, mesmo que ao redor as plantas altas dominassem, onde eu estava o chão era diferente. Era de pedra. Eu tinha caído sobre uma trilha de pedras arredondadas, muito parecidas com os seixos que eu costumava encontrar no Tâmi e jogar pra ver quicar na água. Era um caminho irregular, antigo, com as pedrinhas muito espaçadas entre si, desgastado com frestas de onde tinham começado a brotar pequenas plantinhas e grande parte coberto de solo ou de folhas secas. Mas eu tinha certeza de que aquilo não aparecera ali, espontaneamente. Não, o lugar tinha sido pavimentado, por mais que pudesse passar despercebido por quem não olhasse por onde pisa. Por sorte ou azar, eu tinha caído de cara lá. Seria difícil minhas bochechas não terem notado...

Além de que, não era a primeira vez que eu sonhava com a trilha.

Suspirei, no sonho mesmo.

Já fazia noites e noites que eu era arrancada das lembranças com as quais eu costumava sonhar, e levada pra algum outro lugar. Tinha começado do lado de fora da casa, trancada, seguindo pistas e ruídos até algum lugar que eu não sabia onde nem o que era. Só sabia que, toda noite, eu acordava antes de chegar lá. E que, na noite seguinte, eu sempre continuava de onde tinha parado. Mas, onde quer que esse lugar fosse, estava bem perto da montanha do outro lado da ilha, que parecia ser para onde eu estava indo, sonho após sonho.

Espanei as folhas secas grudadas nas minhas roupas e levantei a cabeça. Apesar da floresta ao redor, dava pra ver o pico da montanha adiante, bem perto. Dei de ombros e segui a trilha.

Eu já tinha aprendido que, se avançasse nos sonhos ou não, eles voltariam na noite seguinte, ou na outra. Andar em qualquer outra direção era perda de tempo.

As árvores começaram a ficar mais distantes uma da outra conforme o chão se tornava mais rochoso e irregular. As pedras na trilha começaram a ficar maiores, mais escuras, e pareciam uma mistura de tijolinhos com pedras maiores que brotavam do próprio chão. O caminho também começou a subir, discretamente. Quando o bosque finalmente se abriu por completo, só havia a montanha na minha frente, por onde a trilha continuava. O caminho calçado acabava entre dois pilares de pedra branca, muito parecidos com os do templo da praia, mas que não sustentavam nada além do céu. O céu e um vulto encapuzado empoleirado no topo de uma das colunas, de costas para mim.

Senti um aperto no peito...

— Byakko...? — Perguntei, baixinho.

Apesar disso, o vento carregou minha voz, e vi o vulto se mexer, encolhido, mas não se virar. Ao invés disso, ele se transformou numa nuvem de fumaça negra e reapareceu mais acima, no caminho para o pico da montanha.

Sacudi a cabeça. Ele se vestia igual ao Byakko. Tinha a mesma túnica branca com bordados prateados, o capuz cobrindo sua cabeça, mas algo não parecia certo. Ele parecia mais alto, o jeito como começou a caminhar montanha acima era diferente, mais duro, seus braços estavam colados ao corpo, como se ele não estivesse se sentindo confortável ali, ou mesmo naquelas roupas.

Era como se estivesse fingindo ser outra pessoa.

Mesmo assim, se fosse Byakko... Eu precisava falar com ele.

— Espera! — Gritei.

E corri para acompanha-lo.

Depois dos pilares de pedra, o caminho começou a se tornar mais difícil. A trilha desapareceu e deu lugar a uma mistura de degraus de pedra e sulcos esculpidos por onde eu devia escalar e subir a montanha. Não era fácil acompanhar quem quer que estivesse na minha frente. Ele se movia como se não se cansasse, aparecia nos lugares mais altos num piscar de olhos, enquanto eu precisava pular de pedra em pedra, subindo, escalando, esfolando minha pele. E não olhou pra trás, em nenhum momento.

Ele também não me deixava chegar perto demais. Sempre que chegávamos a um pequeno platô, e eu podia respirar um pouco, eu tentava correr até ele, conversar, olhar mais de perto, qualquer coisa. Mas, sempre que eu estava quase lá, ele desaparecia, me fazia comer fumaça negra, e reaparecia bem mais na frente ou acima de onde eu estava, ainda no caminho para o topo.

— Ei, espera! — Gritei, de novo, enquanto o vulto se afastava cada vez mais de mim.

Minhas mãos estavam tremendo de subir sem ajuda, e minha pele estava esfolada de me segurar às pedras para não cair. Eu ofegava e sentia a boca seca, apesar de ser só um sonho.

É, só um sonho...

— Quem é você?!

Dessa vez, o vulto parou.

Respirei fundo e me icei para cima da pedra em que estava agarrada. Acelerei o passo, tentando me aproximar, de novo. Mas a pessoa debaixo do capuz estava empoleirada no topo de um aclive, fora do meu alcance. Ou, quase... Tomei impulso, pisei numa das saliências do paredão inclinado e pulei, com o braço esticado. Consegui embaraçar os dedos na ponta da túnica branca, sentindo o toque do bordado na barra da roupa, e puxei, enquanto caía. Olhei para cima, para seu rosto coberto, e encarei o capuz, que começou a escorregar.

Ele me encarou de volta com o rosto de Byakko, mas com cabelos negros mais longos e olhos dourados como moedas.

E, então, eu caí.

 

***

 

Acordei depois de dar com a cara no chão do quarto e sentir os lençóis caindo por cima de mim. Descolei meu nariz do assoalho e ouvi duas risadinhas abafadas, um pouco acima da minha cabeça.

— Eu falei que ela ia cair da cama de novo. São mais dois pontos pra mim.

Alguém bufou.

Tirei o lençol de cima de mim, peguei minha sandália no chão e a joguei sobre a mesinha ao lado da minha cama. Errei Dois por pouco, mas acertei Um na lateral de sua juba de metal; ele girou como uma moeda e caiu de cara na madeira, como eu.

— Há, há, há — ele imitou uma risada sem graça, apesar de estar com a boca no móvel. — Bom dia...

— Bom dia, Lorena — Dois também me cumprimentou. — Sonhos conturbados de novo?

Eu sabia que ele só estava sendo educado. Os irmãos estavam vivendo no meu quarto desde que eu os tinha tirado do templo, e me viam dormir e acordar todos os dias. Eles sabiam quando eu sonhava e quando não, porque estavam sempre lá, me olhando de cima da cabeceira ou da mesa. Na maior parte do tempo, eles faziam apostas sobre as noites em que eu ia sonhar ou não, o que, atualmente, era quase todo dia.

— É, é... — Balancei a mão para ele, ainda um pouco sonolenta.

Olhei ao redor, para o meu quarto. Eu nem me lembrava de como tinha chegado até a minha cama, na noite passada... A última coisa de que eu me lembrava era de estar com Dorothea, sentada ao lado da cama dela. Esfreguei os olhos e me levantei, devagar. A tábua do assoalho estava aberta, como na noite passada. O que significava...

Sentei na cama, peguei o lençol e o sacudi na minha frente. O amuleto escorregou de alguma de suas dobras, bateu na quina das tábuas e caiu lá dentro do buraco, desaparecendo. Chutei a tábua solta de volta para o seu lugar e ela se encaixou perfeitamente, exceto pela sua ponta empenada.

Muito bem. Eu estava acordada havia três minutos e já estava colocando a casa em ordem. Excelente.

Mas ainda falta tanta coisa pra fazer hoje...

Penteei meu cabelo com os dedos mesmo e prendi metade dele para trás, só para que não caísse no meu rosto. Me levantei e fui até a mesinha, onde eu levantei Um e o apoiei de volta na parede, para que ficasse “de pé”.

— Obrigado — ele disse, contorcendo o nariz, como se tentasse tirar algo da ponta.

Depois, espirrou.

— Desculpa, mas... — Ele fungou — Um pano úmido ia fazer bem à nossa mesa.

Ele deu um sorriso amarelo.

Dois revirou os olhos.

Levantei uma sobrancelha só.

— Jura?

Queria dar na cara de bolacha dele, mas eu sabia que ele estava certo. A casa estava uma bagunça há dias, desde a última vez que eu recebera ajuda... Então, ao invés de lhes bater, eu levantei os dois e joguei meu lençol limpo sobre a mesa.

— Eu faço isso quando voltar com alguma comida — disse.

Os dois se entreolharam e sorriram.

Joguei o lençol por cima da cara dos dois pra poder trocar de roupa. Calcei as sandálias e puxei o pano de volta, agora que estava tudo bem eles olharem.

— Eu não sei quando vou voltar, mas prometo deixar vocês dois na janela quando estiver em casa, tudo bem?

— Isso seria ótimo — Disse Um.

— Mas não precisa se preocupar com a gente — Dois complementou.

Engoli em seco.

— Fiquem de olho em Dorothea, por favor.

— É claro que sim — os dois responderam juntos.

Assenti. Me virei, saí para o corredor e fechei a porta do quarto. Damon miou. Estava do outro lado, deitado contra a porta fechada do quarto de Dorothea. Ele se levantou, se espreguiçou, e veio até mim, se esfregando nos meus tornozelos.

— Bom dia pra você também, Damon — disse, coçando sua orelha.

Depois, dei um passo na direção da porta fechada, do balde com água e dos panos limpos que tinha deixado lá na noite passada, peguei tudo e levantei a mão. Suspirei. Estava cedo demais para Dorothea estar acordada, o que era... mais fácil. Então, prendi a respiração e abri a porta devagar. Entrei, enquanto Damon continuou sentado na soleira, balançando seu rabo, e fechei a porta na cara dele, sem fazer barulho.

Dorothea estava lá, deitada na cama, sem se mexer. A única coisa iluminando o cômodo era uma lamparina ao pé da cama, já que as janelas do quarto andavam sempre fechadas durante a noite, desde que a friagem começara a lhe fazer mal. O cheiro do quarto vedado era horrível...

Coloquei o balde e os panos sobre a mesinha ao lado da cama e me estiquei para empurrar as janelas. A luz da manhã entrou e o ar foi ficando mais leve. Dorothea continuou deitada, desacordada, sem sinal de sequer respirar. Puxei as cobertas sobre ela com cuidado e as joguei pela janela. Teria que lavar tudo mais tarde. Eventualmente... Suas roupas tinham o mesmo mal cheiro do quarto quando eu entrara: aquele de quem não consegue mais sair da própria cama sozinha...

Tirei suas roupas úmidas devagar e as joguei para fora também, onde o fedor não incomodaria. Umedeci os panos e esponjas na água limpa, e comecei a lhe banhar, tirando a sujeira e o suor da pele dela. Depois, abri a arca ao pé da cama, tirei roupas limpas de dentro e voltei a vesti-la. Seus olhos não mexeram em momento algum.

Joguei a água usada pela janela, coloquei os panos e as esponjas no balde e coloquei tudo com as roupas descartadas.

Encarei Dorothea. Não queria demorar, porque ainda precisava fazer muita coisa hoje para colocar a casa em ordem. Então só afastei seus cabelos brancos de seus olhos fechados e saí. Pelo menos ela estaria limpa quando acordasse...

Saí pelo corredor e Damon me seguiu até a cozinha. Deu a volta na pilha de galhos finos e secos que eu vinha tendo que usar como lenha, por mais que eles queimassem muito rápido e não esquentassem o bastante, cheirou um pouco de farinha caída no chão e parou. A cozinha, como o resto da casa, estava uma bagunça, apesar de estar também muito vazia. Fazia tempo que a mesa não ficava mais cheia de comida, como Dorothea gostava, que o fogão ficava aceso o dia todo, assando alguma coisa. Mal havia frutas por ali. Damon cheirou o ar, em busca de comida, e não encontrou nada.

— Desculpa, amigo — disse, passando por ele em direção à porta da frente. — Ainda preciso resolver isso.

Sequei os olhos bem antes de abrir a porta e sair de casa, massageando o inchaço e as olheiras que eu queria, mais que tudo, que desaparecessem. Se ia ter que passar por dentro da vila, a última coisa de que eu precisava era que me vissem daquele jeito: demonstrando cansaço e fraqueza logo cedo. Chequei os bolsos antes de passar pela soleira, conferindo as trouxinhas de ervas mágicas lá dentro do primeiro, e a pedra turquesa dentro do segundo. Depois, chequei as marcas de cinzas em todos os rodapés, de todas as portas e janelas externas, e cheirei a casa, conferindo as proteções contra Isméria. Fazia só dois dias desde que eu queimara os últimos incensos e jogara suas cinzas ao redor da casa. O cheiro continuava forte e se manteria assim por alguns dias, enquanto eu pensava em como refazer tudo, encontrar todos os ingredientes de proteção, como tinha feito dois anos atrás. Apertei a nuca, alongando os ombros, já sentindo eles tensos só de pensar no trabalhão que eu teria. Pelo menos ainda tinha uma ou duas semanas para conseguir tudo...

Peguei a cesta pendurada do lado de fora e Damon saiu também.

Fechei a porta e dei a volta na casa, para checar as pilhas de roupa que teria que lavar. Pensei em tirar tudo dali de uma vez, mas quem ia mexer naquilo, né? Não... Eu tinha muita coisa para fazer hoje, ainda, e Um e Dois estariam de olho em tudo. Respirei fundo, olhando para o céu, passei a cesta pelo meu braço e fui em direção à praia, como tinha planejado desde que acordara, com o gato em meu encalço.

Seria um saco ter que dar a volta para evitar a vila, então cortei pelo centro mesmo, pisando firme. Algumas pessoas pararam e viraram a cabeça na minha direção, procurando alguma coisa diferente, algo do qual pudessem fofocar, como de costume, mas eu apenas ergui a cabeça e continuei. Foquei no barulho do mar, para onde eu estava indo, e só voltei a respirar quando vi as casas passarem e sumirem da minha visão periférica.

A praia estava cheia de garotos da minha idade e seus pais. Era verão, a água estava quente e fervilhava de cardumes. Uma mistura de jovens e velhos estava dentro da água até a cintura, enquanto outros estavam nadando, guiando os cardumes pelo canal de areia submerso, em direção às redes de pesca que foram lançadas no ar e afundaram na água. Logo eu identifiquei Ed, na ponta do grupo alinhado em meia-lua, puxando sua rede de pesca pululando de peixes. Ele virou a cabeça, como se tivesse sentido alguém o olhando, e me encontrou logo. Ed acenou para mim, segurando a rede cheia apenas com a mão livre. Suspirei e fui até ele, tentando ignorar os olhares dos rapazes que me alfinetavam pela nuca.

— Ei, Lóris. O que faz aqui?

Damon, que vinha no meu encalço, pulou em cima de um peixe que escapou da rede que Ed arrastava pela areia. O gato deu-lhe uma patada na cabeça e o abocanhou, sem se importar muito com o bicho se debatendo. Depois, levantou o rabo, contente, e voltou para o meu lado com o peixe pendurado na boca.

Joguei o cabelo para trás da orelha.

— Precisava falar com você...

Ele encarou a cesta pendurada no meu braço, sua rede cheia e depois olhou pra mim.

— Você precisa de alguma coisa...? — Ele perguntou, com um tom desconfiado.

Bufei.

— Eu não vim atrás da sua pesca do dia, se é o que quer saber.

Ele levantou uma sobrancelha.

— Então...

— Preciso de um favor. Você acha que consegue arrumar o machado da Dorothea? — Perguntei. — Ele está praticamente cego e tem sido um horror conseguir lenha para cozinhar. Faz dois dias que só acendo o fogo com galhos secos que consigo catar por aí.

Infelizmente, o machado da minha antiga casa tinha sido levado pelo mar, depois de eu ter largado ele lá ao correr com Um e Dois nos braços. E, lembrando do buraco que eu fizera nas portas do templo com ele, eu só conseguia pensar que não estaria passando esse aperto se ainda o tivesse.

Ed parou quando chegamos nas pedras, abriu um cesto grande e começou a separar os peixes bons e jogá-los para dentro. Os menores, filhotes, e aqueles que não tinham carne boa seriam devolvidos pro mar. Ele separou um peixe com ferrão venenoso, deixando-o na areia, e continuou.

— Ah... Você já tentou falar com Koch?

Me sentei numa pedra alta, enquanto o observava trabalhar.

— Já, mas eu não tenho nada para lhe dar em troca. Não sobrou muita coisa desde que Dorothea adoeceu, e eu não tenho tido tempo para fazer nada de valor.

Ele parou o que fazia, com os ombros caídos.

— Ei, que vergonha, eu nem perguntei como Dorothea estava...

Dei de ombros.

— Na mesma... — Suspirei. — Tudo que eu tenho feito é cuidar dela e da casa.

Ed jogou a rede para o lado, agora vazia, e se sentou na areia, de frente para mim.

— Ei, eu sei que um monte de gente já deve ter te dito isso, e acho que eu já te disse isso, mas, você sabe, você não precisa cuidar dela sozinha. Já é adulta agora.

Cruzei os braços para esconder meus punhos fechados. Eu sabia exatamente do que ele estava falando. Do que todos falavam pra mim, o tempo inteiro. Eu já tinha dezoito anos havia alguns meses, a idade que se espera que as garotas escolham seus parceiros para a vida. Mas, mais ou menos na época do meu aniversário, Dorothea tinha ficado doente. Primeiro, ela tinha caído e machucado o quadril, que já não era mais tão forte quanto antes. Depois, já de cama, ela começou a definhar dia após dia. Tinha começado com uma tosse noturna, depois a febre, até respirar se tornar tão difícil para ela, como era pra um peixe fora d’água... Todos na ilha tinham tentado esperar que a coisa passasse, mas não passou, ao contrário de sua paciência e tolerância. E, no fim, deixaram de me ceder a gentileza de antes. As famílias estavam inquietas. Alice e todas as garotas da minha idade já tinham feito suas escolhas, mas ainda havia muitos garotos solteiros, enquanto as próximas a completarem dezoito anos eram pelo menos dois anos mais novas que eu. A maioria das famílias não queria esperar tanto. Por isso, havia muitos jovens brigando por mim como se eu fosse um animal que precisava ser domado, e as famílias desses garotos passaram a me negar ajuda, até que toda a vila embarcou nessa. Se eu estivesse desesperada o suficiente, se estivesse passando necessidade, eu teria que dar o braço a torcer e me casar, para ter um homem que me trouxesse comida e uma sogra que me ajudasse a cuidar de Dorothea. Era disso que Ed estava falando: se eu me casasse, não precisaria fazer tudo sozinha. Mas a que preço?

Todos os dias era a mesma coisa: no fim da tarde, a casa de Dorothea ficava cercada de “presentes” dos meus pretendentes. Eles deixavam cestos com peixes frescos, legumes, farinha, cogumelos, leite de amêndoas; às vezes, deixavam até joias de família e adornos que fariam qualquer outra garota suspirar. Mas nada daquilo que eles deixavam na porta era ajuda. Não. Eles estavam armando arapucas do lado de fora, como caçadores. Aceitar qualquer das coisas que eles espalhavam lá fora, comer do que eles traziam ou vestir os adereços era o mesmo que aceitar um pedido de casamento. Era gritar aos quatro ventos que eu aceitava o homem que tinha me provido o que fosse.

E isso eu não queria...

Por mais difícil que fosse cuidar de Dorothea, da casa, e conseguir comida sozinha, enquanto todos os outros tinham me virado as costas.

Eu não podia pedir comida à Ed pelos mesmos motivos – eu via quando ele deixava sua própria oferenda na porta de entrada, toda tarde. Mesmo que ele talvez fosse o menos idiota de todos os outros rapazes da minha idade. Pelo menos, era o único que não tinha me hostilizado quando criança e, agora, fingia que nada tinha acontecido, enquanto tentava me conquistar. Ele pelo menos era meu amigo... E, justamente por isso, eu estava aqui, pedindo a ajuda dele no que eu sabia que ele poderia me ajudar. As famílias não ficariam bravas com ele só por afiar o machado de Dorothea, eu achava.

Ouvi risadinhas, conversas paralelas, vozes se aproximando. Ed levantou a cabeça e olhou por cima do meu ombro. Eu me virei. Um grupo de garotos mais novos que eu, com mais ou menos dezesseis anos, estava vindo pra cá, não sei porque. O irmão mais novo de Alice, Enzo, estava entre eles e ria alto de algo que devia ser uma piada. Quando chegaram perto, ele acenou para nós e correu na nossa direção.

— Ei, Lorena! — Ele gesticulou para mim, depois, bateu seu ombro no de Ed, tentando jogá-lo na areia, cumprimentando-o também.

Garotos... Revirei os olhos.

Os outros garotos do grupinho nos alcançaram logo, e um deles encarou o chão ao meu lado. Ele se abaixou, pegou pela cauda o peixe que se debatia na areia, evitando seu ferrão venenoso na espinha dorsal, e riu.

— Ei, Enzo, viu isso?

O garoto pegou o peixe pálido pelo ferrão, levantando-o bem, mas evitando a ponta com veneno.

— Ed pescou um Caveirinha, quantos pontos você acha que vale? Morrer por algo assim.

Enzo bufou.

— Você tá doido? O veneno do Caveirinha te deixaria de cama uns três dias antes de te matar. Tem formas mais rápidas de se morrer... — Ele riu. — E de ganhar pontos!

Os outros garotos também riram.

Do meu lado, Ed fechou a cara.

Eu só me perguntava se Alice tinha ideia de que Enzo estava andando por aí ao invés de fazer suas tarefas. Suspirei.

O garoto voltou a sacudir o peixe.

— Mas daria pontos extras por criatividade, certo? E ousadia.

Enzo coçou o queixo, parecendo pensar no assunto.

— É, é verdade — Ele assentiu e se virou para o grupo. — Quantas conchas vocês acham que vale morrer com picada de Caveirinha?

— Eu daria vinte conchas fácil pra ver o Lipe alucinando na cama pelos próximos três dias — o mais baixo do grupo disse, rindo, se referindo ao garoto com o peixe.

Conchas? Só os velhotes usavam conchas, tudo para fazer apostas em seus jogos no tempo livre. O que os garotos estavam fazendo...?

— Uou, isso é um desafio? — Lipe retrucou.

Todos riram.

Enzo deu um soquinho no ombro de Lipe.

— Vinte conchas te colocariam na minha frente, cara. — Ele levantou as mãos abertas. — Você quem sabe.

O garoto riu, e se virou para Ed:

— Acho que vou ficar com ele — disse.

Ed apenas suspirou, acenando.

Os garotos gritaram, como se estivessem prestes a ver algo incrível.

Me inclinei para Ed.

— O que é que tá acontecendo...? — Cochichei para ele.

Ele gesticulou para que eu esperasse um pouco. O grupo começou a se afastar, ainda falando alto e rindo. Enzo acenou para nós e foi atrás dos amigos, passando o braço sobre o ombro de um deles e cochichando:

— Em três dias posso morrer pelo menos uma vez ao dia. Ele nunca vai conseguir me alcançar, nem com os pontos extras...

Senti um calafrio. Ed me segurou pelo braço, enquanto eu via o grupinho voltar para a vila. Fiquei calada. Agora eu sabia qual era a brincadeira: estavam apostando suas próprias vidas.

Ele esperou todos desaparecerem para responder minha pergunta.

— É um jogo, pra eles... Estão brincando com a morte há dias. Alice está ficando maluca, mas Enzo não escuta ninguém. Acha que é...

— Imortal? — Complementei.

Ed assentiu.

Saber do que os garotos achavam tanta graça me revirou o estômago. Desde que Byakko tinha desaparecido da ilha, as coisas não tinham mudado pra mim; a diferença era que os outros não sabiam o porquê. Mas eu sabia. Não tinha ficado claro logo. Levou uns dias para acontecer da primeira vez. Um menino, uma criança, se afogou depois de entrar no mar e ser puxado pela correnteza. Quando seus pais conseguiram nadar até ele, não havia o que pudesse ser feito. Ele tinha morrido. Juro. Eu estava na praia, quando aconteceu, e ajudei Dorothea com o velório, antes de ela cair doente. Nós o colocamos no barco, o cobrimos de flores e mantas, e estávamos prestes a jogar a canoa no mar – para fazer a passagem para o Outro Lado – quando, enquanto sua mãe falava e chorava, o sol se pôs e o mundo ficou escuro, e o menino acordou. Ele se levantou, engasgado, se pendurou na borda da canoa e vomitou toda a água salgada em seu corpinho, até finalmente voltar a respirar.

Mas aquela foi só a primeira vez que aconteceu.

Desde que Byakko desapareceu, ninguém mais na ilha parecia capaz de morrer.

Todos que “morriam” passavam pelo mesmo: o coração mudo, a pele fria, a completa ausência de sinais vitais. Todos ficavam assim, por um tempo. E então horas, ou mesmo minutos depois, eles voltavam, com o corpo ainda ferido, dizendo que não havia nada do outro lado, nem ninguém. Só havia escuridão.

Para alguns, parecia uma benção, ser intocável pela morte. Para outros...

Sacudi a cabeça.

— Você não... Entrou nessa, né, Ed? — Perguntei. — Esse jogo... — Cuspi a última palavra.

Ele piscou e depois sacudiu as mãos.

— Não, pelos Espíritos. Não! — Ele apontou para o rumo pra onde o grupo tinha seguido. — Eles são adolescentes!

Respirei fundo, um pouco mais aliviada. Depois, me levantei e espanei a areia úmidas das minhas roupas. Ed segurou minha saia longa pela barra.

— Espera, onde você vai?

— Eu ainda tenho um monte de coisas pra fazer Ed. Tenho que conseguir alguma comida para Dorothea e para mim, e talvez tenha que afiar meu próprio machado — respondi, levantando uma sobrancelha pra ele.

Ele passou a mão pelo próprio rosto, massageando as sobrancelhas e enchendo-as de areia.

— Eu te ajudo com o machado, tá? Pego a pedra de amolar com meu pai e passo na sua casa mais tarde. Pelo menos... — Ele apertou o próprio braço, pensando. — Pelo menos isso eu posso fazer.

Assenti e coloquei a mão na cabeça dele, sacudindo a areia do seu cabelo. Sorri, só um pouquinho.

— Obrigada, Ed.

Me afastei dali, com Damon no meu encalço, depois te ter brincado com seu peixe até perder o interesse. Meu estômago estava doendo de fome, e conseguir comida era a segunda coisa mais importante na minha lista mental de prioridades. Eu tinha conseguido me virar por um tempo, fazendo algumas permutas com outras pessoas na ilha. Eu tinha trocado vários dos objetos da Praia Velha por comida – pelo menos aqueles que eu pudera mentir e dizer que eram coisas que meus pais tinham deixado –, como brincos, pulseiras, colares, facas, cachimbos e moedas. Alguns eu tivera que disfarçar a escrita estranja, arranhando ou apagando-a, mas tinha funcionado. Infelizmente, não havia mais nada de valor que eu pudesse passar para frente, e a comida tinha acabado de vez. Isso fazia dias, e os outros na ilha sabiam. Tanto que achavam que eu desistiria logo. Mas eles estavam longe de saber a verdade: eu vinha recebendo ajuda, mas não de alguém que eles pudessem julgar e oprimir.

Abaixei-me para pegar um seixo na beira do rio, endireitei o corpo, ajeitei a mira e o joguei na água. A pedra quicou três vezes na superfície da água e afundou. Ondinhas se formaram no ponto em que a pedra desapareceu e, três segundos depois, uma cabeça pálida e sem pelos emergiu até a altura de seus olhos leitosos. Acenei para Tâmi. Ela se levantou e sorriu.

— Olá, pequena Thânat...

Revirei os olhos. Eu desistira, havia muito tempo, de descobrir porque ela me chamava assim.

Tirei a cesta trançada do meu braço e a sacudi na frente dela. O Espírito do rio a pegou, passando os dedos longos pela alça, e me encarou:

— O que vai querer hoje?

Suspirei.

— Eu não me sinto realmente no direito de escolher, Tâmi...

Ela estreitou os olhos.

— Sou eu quem estou perguntando.

Cruzei os braços.

— Algo sem espinhos facilitaria bastante da hora de preparar e comer. Não posso correr o risco de Dorothea se engasgar... — Pensei alto.

Tâmi voltou a sorrir.

— Pois bem.

Ela submergiu a cesta trançada na água, bem devagar, o bastante para nem fazer a água ondular. Depois, de cabeça abaixada, começou a ciciar baixinho, parecendo o ruído da água escoando pelas pedras. Três bagres grandes de bigodes longos saíram do fundo pedregoso do lado e começaram a nadar ao redor de Tâmi, devagar, como se estivessem em transe. O Espírito terminou de submergir o cesto e assobiou alto, comandando os peixes a entrarem. Eles obedeceram, nadando em círculos entre as paredes de vime, um atrás do outro. Então, Tâmi puxou a cesta para cima, deixando a água escorrer pelos furos do trançado e aprisionando os peixes lá dentro, como numa arapuca. Quando perceberam, os bagres começaram a se debater.

Tâmi me estendeu a cesta de volta, pingando água, e Damon recuou, miando alto, indignado.

Os peixes tinham um tamanho razoável o bastante para caberem no cesto, uma cabeça grande e achatada da qual eu poderia fazer sopa, e um corpo alongado coberto de couro. Pesavam, os três, mais ou menos seis quilos de carne sem espinhos. Eu poderia fazer filés e postas de tamanho razoável que, depois de salgadas, durariam pelo menos uma semana. Pelo menos nos próximos dias, eu não teria que me preocupar tanto com o que comer.

— Obrigada, Tâmi. Sério.

Ela sacudiu a cabeça.

— Não é nada, menina.

Encarei Tâmi. Não sabia muito bem o que dizer. Queria fazer algo mais...

— Eu queria poder sentar e conversar, Tâmi, mas... — Comecei.

Ela tirou as mãos da água e acenou com as pontas dos dedos, pingando água, me dizendo para ir, sem problemas.

— Vá para casa, querida. Nós conversamos quando precisar da minha ajuda de novo.

 

***

 

Já estava em casa, na cozinha, tirando o couro dos peixes e sentindo a fome que vinha sempre na hora do almoço, quando ouvi o sino da entrada tocar uma, duas, três vezes. A porta da frente estava fechada, e não se moveu. Eu fiquei paralisada, prendendo a respiração. Um e Dois, que estavam na mesa da cozinha, variando um pouco a paisagem, se calaram. Então, uma cabeça escura e careca deslizou pela janela da cozinha. Mab se apoiou com os cotovelos no batente da, rindo da minha cara branca, e disse:

— Olá, mocinha.

Quase engasguei.

— Pelos Espíritos, Mab. Meu coração! — Um reclamou.

Dois riu.

Mab levantou uma sobrancelha.

— Por que você fez isso? — Perguntei.

Mab deu de ombros e saiu da janela, deslizando de volta para a entrada. Depois, ela girou a maçaneta e parou sob a porta aberta.

— Você pediu para que eu conferisse as proteções ao redor da casa quando eu voltasse, lembra? — Ela disse, passando a mão no símbolo entalhado no batente.

Ah, é, tá...

Apesar de eu ainda querer torcer seu pescoço estupidamente longo e elegante.

— A barreira ainda funciona, mas está enfraquecendo — ela cheirou o ar e encarou as cinzas no batente da porta, como se fosse uma barreira. — Isso é novidade. Não vai me deixar entrar?

Suspirei.

— Você pode entrar, Mab.

Ela sorriu e entrou saltitando um pouco, por cima da linha de cinzas.

— Parece que você fez umas melhorias nas proteções, mas o cheiro das ervas está enfraquecendo. Vai precisar queimar os incensos outra vez em menos de uma semana.

— É, eu sei... — Arranquei o couro do último bagre e joguei a pele no chão. Assim como das outras vezes, Damon a pegou e correu para fora. Eu não sabia o que ele pretendia fazer com ela, mas pelo menos estava me ajudando a manter a casa limpa. — Mas os incensos acabaram. Vou precisar encontrar os ingredientes de novo e fazer tudo do zero. Repetir os rituais.

— Hmmm... — Mab disse, coçando o queixo. — Acho que posso ajudar com algumas coisas. Vou tentar.

Sonho pegou o pano sobre o meu ombro e começou a limpar a mesa atrás de mim. Levantou Um, depois Dois, e jogou toda a farinha e a poeira no chão. Depois, pegou a vassoura apoiada num canto e começou a varrer.

Eu ri.

— Onde foi que você aprendeu a fazer isso?

Mab me encarou, depois desviou o olhar e sorriu, encarando o chão, distraída, como alguém que se lembra de algo.

— Acredite, não faz muito tempo, os Espíritos viviam com as pessoas. Alguns nas mesmas casas. Bom, não eu, pelo menos, mas... — Ela suspirou. — Todo conhecimento é uma troca.

Terminei de cortar as postas de carne de peixe, coloquei tudo numa vasilha de cerâmica e enxuguei as mãos no pano com cheiro de poeira e farinha.

— O que aconteceu?

Ela deu de ombros.

— O mundo mudou.

— Jura? — Rebati.

Ela olhou de mim para a vassoura descabelada em suas mãos, me encarou e sorriu.

— Talvez, nem todos.

Mab varreu toda a cozinha enquanto eu salgava a carne de peixe e separava as cabeças para fazer um caldo. Levei as postas para fora, para secarem no sol da tarde e no sereno da noite. Na manhã seguinte eu voltaria para pegá-las. Mab colocou os galhos secos no fogão e eu acendi a lenha. Coloquei numa panela de barro as cabeças de peixe, cubos de carne fresca que eu tinha separado, ervas e água salgada. Acrescentei um resto de cogumelos secos e farinha, e logo a mistura começou a ferver. Enquanto isso, Mab, Um e Dois me observavam, conversando.

Logo começou a anoitecer.

— Mab, você... — Comecei, mas desisti.

Ela me encarou.

— O que foi, querida?

Parei de mexer o caldo na panela e estralei os dedos.

— Por acaso você... teve notícias dele?

— Ah... — Sonho se apoiou na mesa. — Não, querida. Infelizmente, não.

Voltei a me virar para o fogão, sentindo o fogo aquecer minha barriga.

Mab também estava procurando por Byakko havia muito tempo. Desde que ela fora até o templo, para vê-lo, e encontrara o lugar destruído. Ela viera até mim, buscando explicações, e eu lhe contara o que eu sabia: que as pessoas da ilha tinham feito aquilo, que Byakko as tinha assustado, contei das coisas que ouvi e que não faziam nenhum sentido para mim. Ela ouviu tudo, acenando com a cabeça, em silêncio. E, quando eu terminei, disse que tudo ficaria bem, que logo ele deveria voltar.

Mas ele não voltou, pra nenhuma de nós.

Não procurou nenhuma de nós, não tentou explicar o que tinha acontecido, nem mesmo tinha voltado para brigar comigo. Não tinha procurado Mab, que era sua amiga há milênios, que esperança eu tinha? E, mesmo assim, quando Sonho vinha me ver, eu fazia a mesma pergunta de sempre.

— Mas eu tenho certeza que Byakko está por aí, em algum lugar — ela disse, tentando me animar. — Ele só...

De repente, Mab se calou e levantou a cabeça, como se tivesse ouvido algo. Ela caminhou até mim, pôs a mão no meu ombro, e disse:

— Tem alguém vindo, querida. Preciso ir.

E então, antes que eu conseguisse sequer virar o corpo para lhe responder, ela desapareceu.

— Ops... — Disse Dois.

Corri para pegar as aldrabas e voltar a escondê-las no meu quarto. Quando coloquei o pé no corredor, voltando, ouvi uma batida na porta da frente. Bom, pelo menos isso significava que era um humano querendo entrar. Joguei um pouco de areia úmida no fogo, para baixar as chamas e não queimar a comida, e corri para abrir a porta.

— Oi! — Ed acenou com a cabeça. — Desculpa a demora, foi difícil achar a pedra de amolar. Tive que esperar meu pai voltar pra casa.

De repente, ele olhou por cima do meu ombro, estreitando os olhos.

— Ei, Lóris... — Ele fungou. — Que cheiro é esse?

— A-ah... — Gaguejei.

Ele virou a cabeça para o fogão aceso, mesmo sem entrar na casa.

— Isso é peixe? — Ele me encarou. — Como conseguiu isso?

— Eu...

— Você aceitou comida de algum dos outros caras? — Ele franziu as sobrancelhas.

— Não! — Respondi um pouco mais alto do que deveria.

Reparei bem quando ele escondeu a outra mão atrás do corpo, segurando uma sacola de couro. Não dava pra ver o que tinha dentro dela, e eu só podia deduzir, mas eu tinha um palpite...

— Então como conseguiu peixe fresco?

— Eu mesma peguei, juro.

Ele me encarou por um segundo e depois desviou o olhar.

— Mas... Quando foi que você aprendeu?

Esfreguei uma mão contra a outra, entrelaçando os dedos.

— Eu... não diria que eu aprendi. Levei o dia todo pra conseguir esses três... — menti.

Vi ele apertar a pedra de amolar até os dedos ficarem brancos.

— Ah, tá... — Foi tudo o que ele disse.

Estendi a mão para tocar seu braço, mas ele deu um passo para trás. Recuei.

— Não, tudo bem, sério — ele disse. — Não importa como você conseguiu.

Ed jogou a sacola que carregava no chão, do lado de fora, com a boca fechada num nó. Depois, levantou a mão com a pedra de amolar e apontou para o objeto.

— Bom, eu vou... Vou fazer o que te prometi.

E rodeou a casa até os fundos, onde o machado e a madeira ficavam, e desapareceu das minhas vistas.

Respirei fundo, tentando organizar os pensamentos, e encarei o céu. A noite tinha chegado de vez. Ouvi Ed acender a lamparina nos fundos e começar a friccionar a pedra contra o metal, em silêncio. Senti o cheiro da comida passando do ponto e fui trazida de volta ao mundo real: o mundo onde eu não tinha mais tempo pra nada, nem pra tentar pensar em uma forma de explicar tudo para o meu amigo. Já era tarde e, se eu não corresse, não conseguiria dar comida para Dorothea antes de...

Corri para o fogão, apaguei as chamas com areia e prometi a mim mesma que limparia a fornalha amanhã. Peguei uma cumbuca e enchi de caldo de peixe, evitando pegar pedaços muito grandes ou difíceis de mastigar. Não queria que Dorothea acabasse se engasgando sem querer, com sua garganta ferida do jeito que estava. Joguei uma colher lá dentro e segui para o quarto de Dorothea.

Damon estava deitado na frente da porta, fechada desde que eu saíra pela manhã. Senti um aperto no coração em pensar que eu não conseguira sequer de dar um bom dia descente para Dorothea, antes de sair. Afinal, ela ainda estava... Avancei um passo e Damon se levantou, saindo do caminho. Levantei a mão, segurei a maçaneta e parei. Era ainda pior pensar nisso porque eu sabia que, assim que eu abrisse a porta, Dorothea sorriria para mim, independente de quão mal ela estivesse, como se eu fosse a melhor “filha” do mundo.

Funguei e engoli o choro.

Não..., disse a mim mesma. Agora, não. Você vai poder fazer isso depois.

Abri a porta e entrei. A lamparina continuava acesa, iluminando o quarto. Dorothea estava deitada de costas, como sempre, com as mãos sobre o peito. Ela olhava pela janela aberta, mesmo que não tivesse lua no céu, hoje, para iluminar o mundo lá fora. Eu conseguia ouvir sua respiração mesmo à vários passos de distância: rouca, fanhosa, intercalada com algumas crises de tosse e engasgos que, às vezes, duravam minutos, como se tivesse algo se contorcendo na sua garganta. Dorothea tentou levantar a cabeça quando ouviu a porta, mas não conseguiu. Então, só a virou na minha direção, ainda apoiada no travesseiro.

Sim, ela sorriu...

— Olá, querida — disse, acenando para que eu me aproximasse.

Ela pegou minha mão livre, quando parei ao lado de sua cama, e a segurou, apesar da fraqueza em seus dedos.

— Como foi seu dia, querida?

Funguei e engoli o choro.

Mais tarde, repeti para mim mesma. Faça isso mais tarde, sozinha...

— Foi tudo bem — respondi, tentando sorrir pra ela.

Vamos, sorria!

Dorothea apertou minha mão com um pouco mais de firmeza. Encarei seus dedos magros, rugosos, e sua pele marcada pelo tempo e deteriorada pela doença. Nos dois anos desde que Byakko se fora, e depois de alguns meses de doença, Dorothea parecia ter envelhecido dez vezes mais do que o tempo que tinha passado de verdade. Com a tosse e a garganta ruim, ela não conseguia comer tão bem, e com suas mãos trêmulas ela mal conseguia beber água sozinha. Depois da queda, ela não tinha conseguido voltar a andar direito, e aos poucos não conseguiu mais voltar a se levantar, nem se exercitar. Logo, ela tinha emagrecido muito, parecia ter pele demais para um corpinho tão frágil, trêmulo, e parecia transparente como um fantasma, apesar da grande ironia pairando por toda a ilha: o “fantasma” do templo tinha partido.

— Oh, querida, eu sinto tanto por deixar tantas responsabilidades nas costas da minha menina. Uma casa é responsabilidade demais para uma pessoa sozinha...

E, mesmo assim, ela tinha feito o mesmo por anos: cuidado da casa sozinha, depois de seu marido morrer, e enquanto eu ainda era nova demais para ajudar. Mesmo que ela tivesse recebido ajuda das pessoas da comunidade, já que sua condição de viúva era bem diferente da minha de solteira, ainda assim era muita coisa para fazer sozinha. E eu nunca a tinha visto reclamar, nenhum segundo, da responsabilidade de cuidar de si mesma e de uma criança que não era sua. Agora eu entendia...

Se Dorothea tinha feito tudo aquilo, eu podia fazer também. E podia fazer por ela.

— Tudo bem — respondi. — Eu dou conta.

Ela sorriu.

Coloquei a sopa na mesinha ao lado de sua cama e a arrastei, até que ficasse ao lado do peito de Dorothea. Depois, dei a volta e parei na cabeceira da cama, passei os braços por baixo do corpo leve de Dorothea e a puxei para cima, ajeitando-a para se sentar e comer. Ela tossiu de leve, mas logo se recompôs. Estendeu a mão um pouco trêmula para a colher e eu estalei a língua quando vi. Ela cruzou os braços, como se fosse uma criança.

— Eu posso pelo menos comer sozinha, Lorena — bufou.

Eu ri. Dei três passos e me sentei ao seu lado, na cama. Tirei a tigela de seu alcance e, com a outra mão, enchi uma colher com caldo de peixe. Ela ainda estava de cara virada.

— Eu quero fazer isso, Dorothea.

Ela me encarou de canto de olho, de cima a baixo.

— Só se me disser que está fazendo isso para evitar a bagunça. Também não quero que tenha que lavar as minhas roupas e as da cama amanhã... — Ela suspirou.

Levantei a sobrancelha.

Ela se virou para mim e abaixou a cabeça.

— Eu sei, eu sei... Essas minhas mãos velhas têm feito muita bagunça, ultimamente...

Abaixei a colher.

— Dorothea...

Ela balançou a mão na frente do meu rosto.

— Tudo bem, querida. Tudo bem. Todo mundo começa e termina a vida com mãos desajeitadas — respirou fundo. — Mas eu estou orgulhosa de você. Se tem uma coisa que consegui te ensinar em todos esses anos, foi a cozinhar com o coração. O cheiro está ótimo... — Sorriu.

Tentei retribuir, mas não sei se funcionou. Por dentro, eu me sentia uma impostora.

— Você não vai comer também, querida? — Dorothea perguntou.

Levantei a cabeça.

— Ah, sim... Depois de você.

— Promete? — Ela levantou uma sobrancelha.

Assenti.

— Prometo.

Ela se ajeitou e apoiou o corpo nos travesseiros e peles amontoadas na cabeceira da cama. Enchi a colher de novo e a estendi para a boca de Dorothea. Ela fechou a boca, sorveu, e engoliu bem devagar. Fez isso colherada atrás de colherada, em absoluto silêncio. Às vezes, quando ela tentava comer e conversar, acabava se engasgando e piorando. Desde então, nossas conversas aconteciam apenas antes e depois de ela terminar a refeição. Mesmo assim, ela tinha um olhar distante: alternava entre olhar pela janela, apesar do escuro lá fora, e para baixo, para as próprias mãos cruzadas sobre o colo. Quando a colher bateu no fundo da tigela vazia, finalmente, eu perguntei:

— O que foi, Dorothea? Em que está pensando.

— Ah, eu? — Ela se virou para mim. — Estou cansada, só isso.

Dorothea levou a mão à garganta, onde eu sabia que a dor era pior. A noite se alongava, e logo a temperatura cairia: era nessa hora que a doença a torturava mais. Sempre que esfriava, as crises de tosse vinham e rasgavam seu peito, fazendo-a engasgar vez após a outra, até ficar completamente sem ar.

Finalmente, ela sacudiu a cabeça e suspirou.

— Eu nunca disse isso, mas acredito que a Morte possa ter virado as costas para nós... Nós queimamos o templo de um Espírito e agora vamos definhar e apodrecer aqui, sem poder ir para o Outro Lado — vi suas mãos se apertarem. — Eles fecharam as portas do Mundo Espiritual para nós. Fomos amaldiçoados...

Bati a tigela contra a mesinha ao lado da cama, fechando os olhos.

— Não... — as palavras me escaparam. — Não foi isso. A culpa é minha...

— Claro que não, Lorena. Não havia nada que você pudesse fazer para impedir aquela barbárie. Não se culpe, querida... — ela enxugou minhas lágrimas com cuidado.

Chacoalhei a cabeça com força, mas não disse nada. O que eu podia dizer? Contar à Dorothea que a verdadeira maldição jogada sobre ela era culpa minha? Que ela não podia ter paz nem descanso da vida porque eu mandara a Morte embora da ilha? Como ia lhe explicar tudo?

Mas essa era a verdade: a culpa era minha. E, pelo mesmo motivo, Byakko se recusava a voltar, mesmo que eu o chamasse e procurasse. Eu o tinha escorraçado e era isso. Não havia perdão para mim. Essa era a verdadeira maldição: o rancor dos Espíritos.

Eu não me importava comigo mesma, só queria que ele voltasse para ajudar Dorothea. Eu podia lidar com o ódio de Byakko. Eu entendia seu ódio. Mas Dorothea não tinha feito nada para merecer isso, e estava pagando pelos meus erros. Se ele pudesse voltar, só por ela...

Eu aceitaria qualquer outra punição...

Dorothea levantou os braços e me puxou para dentro de seu abraço. Acariciou minha cabeça e me deixou chorar, só um pouquinho, dizendo que tudo bem. Ia ficar tudo bem...

Depois que eu me acalmei um pouco, ela me afastou e enxugou meu rosto.

— Querida, você precisa ir comer alguma coisa. Já está ficando tarde — disse, com a voz ainda mais enrouquecida do que quando eu chegara lá.

Senti o frio e percebi que estava chegando a hora. Ela não queria apenas que eu fosse comer, queria que eu não estivesse ali, para assistir. E, pela primeira vez, eu não me opus. Não sabia se teria forças para ficar lá e ver tudo, até o fim, sem desabar e fazê-la se sentir ainda pior. Então, apenas assenti.

— Muito bem! — Ela apertou minha bochecha.

Dorothea me empurrou para fora da cama com o que lhe restava de forças e fez com que eu me levantasse.

— Boa noite, querida... — Disse, apertando minhas mãos e sorrindo uma última vez na noite.

Soltei uma mão e a estendi para fechar a janela do quarto dela, pelo menos para evitar a friagem. Depois, me virei de novo para a senhora.

— Não se esqueça de tomar o xarope que Cloé fez, tá bom?

Ela fez uma cara feia, achava as ervas de Cloé tão amargas quanto eu, mas não discutiu. Mesmo que só a morte pudesse lhe dar alívio de verdade dos sintomas da doença, ela sempre tomava os remédios religiosamente.

Saí do quarto. Damon estava no corredor, vigiando a porta do meu quarto, onde eu tinha escondido Um e Dois. Acariciei sua cabeça quando passei por ele, e segui para a cozinha. Precisava ver se estava tudo bem com Ed, e agradecê-lo pela ajuda. Pensei em lhe oferecer algo para comer, em troca, mas não tive a chance. Assim que entrei na cozinha, encontrei o machado em cima da mesa, a porta aberta, e nem sinal do meu amigo. Passei o dedo pela lâmina, testando o fio, e suspirei. Ele tinha terminado e saído sem falar comigo...

A sacola que ele jogara do lado de fora continuava lá, caída ao lado da porta. Eu sabia o que tinha lá dentro: uma oferta, como a de todos os outros garotos que vinham me cortejando. Uma que, apesar de ele ser meu amigo, eu não podia aceitar. E eu nem sabia explicar porquê... Talvez fosse só toda essa situação caótica com Dorothea, a correria...

Tirei o machado de cima da mesa, o levei para fora e, quando voltei, fechei a porta atrás de mim. Olhei a cozinha ao redor, pensando no que ainda precisava fazer hoje. Encarei a panela de sopa em cima do fogão e cheguei à conclusão de que não estava com nenhuma vontade de comer. Era um absurdo eu desperdiçar minha porção de caldo nas atuais circunstâncias, mas eu simplesmente não conseguia... Coloquei a tampa na panela e lacrei-a com cera de abelha, para conservar, torcendo para que a sopa ainda permanecesse boa pela manhã. Antigamente, eu acreditaria que a cera de abelha impediria Espíritos ruins de entrarem e azedarem a comida. Hoje, eu já não acreditava na maioria das superstições, mesmo que eu achasse que a cera funcionava, mas não que a comida azedasse por causa de Espíritos travessos. Se eu desse sorte, ela duraria até a noite seguinte, selada e morna.

Ouvi a tosse de Dorothea começar como todas as noites: baixa, seca, lenta. Fechei as janelas da cozinha, conferi o sal e as cinzas nos batentes, e fui para o meu quarto. Damon me seguiu e pulou na cama assim que entrou. Um e Dois estavam na mesma mesa em que tinham acordado esta manhã, e onde sempre passavam a noite – e às vezes o dia também. Desde que Dorothea adoecera, eu mal tinha que me preocupar em escondê-los mais. Só precisava ficar atenta às visitas e aos bisbilhoteiros da vila, que costumavam espiar pelas janelas quando passavam. Nenhum dos dois falou quando eu entrei, e isso era algo realmente extraordinário. Digo, algo calar a boca deles. Mas eles sabiam que horas eram... Eles também estavam ouvindo.

A tosse baixa, seca e lenta começou a se transformar numa tosse áspera, úmida, trêmula, com intervalos cada vez menores, enquanto ouvíamos.

Me abaixei e levantei a tábua do assoalho, tateando no escuro até encontrar o amuleto de Byakko. Puxei-o para cima, enrolando seu cordão nos dedos, coloquei a madeira de volta no lugar e me sentei na cama, de joelhos encolhidos.

Oi, Byakko...

Um e Dois se encolheram depois de uma tossida alta e angustiante de Dorothea.

Eu não sei onde você tá, e não sei se ainda consegue me ouvir, Byakko, porque você nunca aparece...

Dorothea tossia, vez após outra, até quase não conseguirmos distinguir os intervalos mais.

Eu acho que você me escuta, mas que não vem Byakko, e eu entendo... Eu juro que entendo...

As tosses se tornaram crises agudas e ininterruptas que duravam segundos, sem que eu conseguisse ouvir Dorothea respirar.

E eu não estou chamando por minha causa, estou chamando por causa de Dorothea, Byakko...

As tosses se tornaram engasgos altos.

Eu não quero que venha aqui e escute minhas desculpas, se não quiser, só quero que ajude Dorothea, Byakko, porque ela não aguenta mais...

Ouvi ela engasgar, vez após a outra, até ficar sem ar, conseguindo imaginar, nitidamente, o que acontecia em seu quarto. O que eu já tinha visto várias noites seguidas.

E eu não aguento mais ver ela assim...

Ela engasgou uma última vez, com a garganta chiando, e tudo ficou em silêncio. E eu sabia que, lá no quarto, ela tinha parado de respirar. Que parecia morta.

Por favor, Byakko.

Pelo menos ela não sentiria dor durante a noite...

Por favor...

Mas eu sabia que tudo voltaria a se repetir quando ela acordasse pela manhã, como o menino que tinha se afogado...

Byakko...

Mas era...

Byakko...

Porque, todas as noites...

Byakko...

Eu a ouvia pedir para, pelo amor dos Espíritos, morrer...

Byakko...

Ela só queria morrer...

...

 

***

 

Senti a pele do meu rosto quente, um pouco incômoda, e abri os olhos. Logo me arrependi: o sol estava entrando pela janela e cobrindo a minha cara, e me cegou mesmo através de uma frestinha de nada das pálpebras. Levei as mãos ao rosto para esfregar os olhos, e acabei batendo com algo duro contra a minha sobrancelha. Resmunguei. Sentei-me e acordei de uma vez. Foi quando eu vi que ainda estava segurando o amuleto firmemente na mão, e que por isso tinha me machucado.

Olhei ao redor, procurando...

— Bom dia — disseram Um e Dois.

Mas, não, só nós três estávamos ali. Não era um bom dia...

Abri a mão, deixei o amuleto cair no chão com um baque seco e rolar para debaixo da cama. Cobri o rosto com as mãos livre e me apoiei na parede, sentindo-me cansada demais até para chorar.

— Onde Byakko está? Por que ele não volta?

Vi, pelas frestas entre meus dedos, os irmãos se entreolharem, e depois olharem para o lado, confusos.

— Nós não sabemos.... Você já tentou chama-lo tantas vezes... — Disse Um.

— Ei, e se, na verdade, o pingente não funciona se ele estiver longe demais? Afinal, ele era da sace... — Começou Dois.

Um o repreendeu e calou com um olhar.

— É, não faz sentido mesmo não — se ainda tivesse mãos, Dois com certeza as levantaria, em sinal de rendição.

— Tem que existir outra maneira de trazer ele de volta... — Pensei alto, interrompendo os dois.

Em dois anos com Um e Dois vivendo comigo, eu tinha aprendido mais do que em todo o tempo que Byakko tinha ficado em cima dos dois, segurando suas línguas. Sim, às vezes, eles se lembravam de que precisavam ficar de boca fechada, mas só depois de já terem deixado escapar alguma coisa importante. Eu tinha descoberto, por exemplo, que os dois tinham nascido na cidade fantasma da Praia Velha, antes que ela fosse destruída, mas não tinha conseguido arrancar de nenhum dos dois o motivo de eles terem se tornado parte da decoração do templo. Tinha ouvido os dois falarem sobre a trilha que aparecia nos meus sonhos e o caminho até a montanha, mas eles tinham se negado a responder o que tinha no final do caminho, por mais que eu sonhasse com ele quase todas as noites. E, também, tinha aprendido que eu estava certa em temer Isméria: por algum motivo – que, surpresa, Um e Dois tinham conseguido guardar segredo até hoje –, ela não queria só conversar comigo, queria minha vida. Ou minha morte. E não só isso, eles também tinham conseguido esconder de mim o motivo pelo qual, nas palavras deles, Byakko tinha jurado me proteger. O que explicava porque, mesmo depois de me mandar me afastar, quando éramos crianças, ele ainda tinha me salvado de me afogar, no dia do meu aniversário.

Ele tinha tentado me afastar, mas depois voltara para salvar minha vida.

Oh...

Talvez, só talvez, houvesse outra maneira de trazê-lo de volta...

— Onde você vai?! — Os irmãos perguntaram quando eu joguei as cobertas para o lado e desci da cama num pulo.

Comecei a me despir do pijama correndo, sem ligar para os dois da minha frente, e eles gritaram e fecharam os olhos assim que perceberam o que eu estava fazendo.

— Ai, Espíritos... — Um praguejou pra cima de mim.

— Desculpa, estou com pressa — dei de ombros, vestindo minhas roupas penduradas na cabeceira da cama.

Vasculhei os bolsos e tirei todas as proteções que eu carregava lá dentro: os sachês de ervas aromáticas, as bolsinhas com cinzas e sal, a pedra turquesa que Tâmi tinha me dado... Joguei tudo em cima da cama e, de repente, me senti mais nua do que alguns momentos atrás. Eu tinha passado os últimos anos usando tudo aquilo, todos os dias, para afastar Isméria, e, agora, estava prestes a jogar tudo fora...

Mas era o que eu precisava fazer.

Damon soltou um miado alto, aborrecido.

— Não, você fica aqui — respondi, com a voz firme.

Eu não sabia o que meu gato e Byakko tinham a ver um com o outro, mas, se Damon não tinha trazido o Espírito para cá, depois de tudo o que vinha acontecendo, a última coisa que eu precisava era que ele fosse comigo e me atrapalhasse.

Sim, era esse o tipo de loucura que eu tinha em mente...

— Ei, Lorena, a gente já pode abrir os olhos? — Dois perguntou.

— Estou saindo — Respondi, correndo para a porta.

Os dois me encararam.

— Ei, espera...

— Aonde você vai! — Um perguntou.

Mas eu já tinha saído rasgando pela porta da cozinha.

 

***

 

Fazia dois anos que eu tinha feito de tudo para me proteger de Isméria. E, aparentemente, eu tinha feito tudo direito, porque ela não voltara a aparecer. Nem Byakko. Mas, agora, tudo tinha mudado. Porque eu precisava que ela viesse atrás de mim. Precisava que Isméria atraísse Byakko de volta.

Eu não sabia por onde começar. Não sabia para onde ir, nem se seria ouvida. Então, eu fui para casa. A minha casa. As papoulas haviam coberto completamente todo o lugar há anos e o ar estava carregado com o cheiro das flores, apesar do vento forte que soprava do mar; as ondas batiam contra o penhasco quinze passos adiante e as gotículas salgadas flutuavam até meu rosto. Eu estava prestes a chamar por um Espírito que queria minha alma e não sabia como deveria me portar. Devia ficar de pé, sentada, talvez me ajoelhar? E como deveria chamá-la, em voz alta ou em prece? Eu nunca tivera que pensar nessas coisas quando estava com Byakko...

Sinceramente, eu devia estar praguejando e xingando um Espírito com tendências homicidas como Isméria, mas eu não podia. Não quando eu precisava da ajuda dela.

Decidi ficar em pé mesmo, e sussurrar seu nome. Mas nada aconteceu. Olhei ao redor, só pra me certificar, mas estava mesmo sozinha. Suspirei.

Pigarreei e chamei outra vez, mas agora em voz alta:

— Isméria!

Um vento forte soprou e jogou areia e sal no meu rosto. Levantei os braços para me cobrir e fechei os olhos. Uma sensação gélida percorreu minha nuca e tive certeza de que ela viera.

E que estava atrás de mim.

— Olá — o Espírito disse, quando me virei.

Isméria ainda se parecia com uma mulher adulta, de cabelos longos e negros, rosto alongado e pálido, e sorriso enviesado. Mas, também estava diferente da última vez que a tinha visto. Ela se parecia menos com uma pessoa, do que antes... Mas o motivo disso eu não sabia. Seus olhos estavam ainda mais amarelados, suas pupilas estavam ainda mais retas, seus dentes estavam mais afiados e alongados, e suas mãos estavam cobertas de escamas negras e brilhantes, assim como a linha do seu cabelo. Se, antes, ela estava descamando, dessa vez parecia ter terminado de trocar sua pele.

Instintivamente recuei um passo em direção ao penhasco, e logo me recriminei. Eu quem tinha chamado ela, por que estava com medo?

— Oi — respondi.

Ela inclinou a cabeça e sibilou.

— Por favor, diga-me que não me chamou aqui apenas para exercitar sua etiqueta — seus olhos de serpente não saiam de cima de mim.

— Eu... — Gaguejei, olhando para os lados. — Acho que não...

Isméria chiou, irritada.

— Pare de contorcer seu pescoço como um verme. Se está esperando por Byakko, saiba que ele não virá.

Minhas pernas tremeram e minha boca secou. Eu nem sabia dizer exatamente qual era meu plano. Só tinha acreditado que, se Byakko tinha jurado me proteger de algum perigo, de Isméria, ele apareceria caso ela chegasse perto demais, não? Isso, ou eu tinha entendido tudo errado...

— Eu pensei...

— Ah, querida, não é assim que funciona — ela disse, como se pudesse ler minha mente.

 Isméria me encarava com um exagerado olhar de falsa piedade, e começou a avançar na minha direção.

— Mas, se ver Byakko é o que você realmente deseja, nós podemos negociar... — Ela sibilou.

Recuei à cada passo que o Espírito dava na minha direção. Até o barulho do mar ficar alto demais e eu perceber que tinha andado até a beirada da falésia. Olhei para trás e para baixo. Um passo em falso e...

— Negociar...?

Ela balançou os dedos na frente do rosto.

— Sim, uma pequena barganha... nada demais.

Endireitei o corpo, apesar de estar tão perto de uma queda assustadora.

— E você vai me dizer como trazer Byakko de volta? — Levantei uma sobrancelha. — Ou melhor, você vai trazê-lo pra cá?

— Eu posso fazer isso — Isméria sorriu ainda mais. — Posso trazer Byakko de volta.

Engoli em seco. Mab tinha tentado encontra-lo por todo esse tempo, e não tinha conseguido. Como ela...

— Conheça seus inimigos... — Ela disse, escondendo a boca atrás da mão e levantando uma sobrancelha.

Certo, talvez ela estivesse lendo minha mente...

— E o que você quer?

Ela sorriu, exibindo presas finas e afiadas pela fresta entre seus dedos.

— Sua alma.

Engoli em seco, mesmo que já soubesse que a resposta seria essa. Se Byakko estava no caminho do que queria, ela tinha que ir até a “fonte”, sem intermediários. E era o que Isméria estava tentando fazer.

— Se eu concordar, você traz Byakko de volta? — Repeti.

Ela assentiu.

Eu estava com medo. Mas só conseguia pensar que precisava ajudar Dorothea, que não aguentava mais vê-la sofrendo toda noite, até literalmente morrer de dor, de mal-estar, sem ar... E passar por tudo de novo quando a noite voltava.

— Eu aceito... — disse por fim.

— Excelente! — Isméria comemorou, batendo três palminhas lentas.

— Mas... — interrompi. — Eu quero um tempo. Preciso de um tempo para me despedir de todos...

— Quanto tempo? — Ela apertou os olhos e contraiu os lábios.

— Um ano, talvez...?

— Três meses — ela rebateu prontamente, e percebi que não havia margem para negociação. Eu era a única parte desesperada pelo acordo. Isméria tinha tempo e paciência para conseguir o que queria, eu não...

Suspirei.

— Três meses — concordei.

Isméria sorriu novamente e concluiu:

— Você tem a minha palavra.

Cruzei os braços.

— Agora, cumpra sua parte do acordo. Traga Byakko até aqui.

— Ah, não é nada demais, na verdade — ela se afastou um passo, encarando-me como se estudasse uma pintura. — Perfeito.

Depois, voltou ao seu lugar, na minha frente, e segurou meus ombros nus com suas mãos frias e escamosas. Suas unhas longas roçaram minha pele. Um arrepio sacudiu meu corpo.

— A questão é, — ela continuou — que Byakko não é capaz de sentir quando eu me aproximo de você. Não, não. Ele não é capaz de sentir o perigo nem qualquer bobagem de sexto sentido que você ou outros humanos possam acreditar que existe. De fato, o que ele sente é quando você está prestes a..., como é mesmo a palavra?

Isméria sorriu...

— Ah, sim, — E me empurrou — morrer!

Eu tropecei para trás muito lentamente, dei dois passos para trás, tentando me reequilibrar, até que, no terceiro, não senti mais o chão sob os meus pés. Foi quando a verdade me atingiu: eu estava caindo do penhasco e iria morrer. Estiquei o braço, tentando me segurar em alguma coisa, mas só vi o rosto de Isméria através dos meus dedos, se distanciando, e gritei.

— É sempre um prazer negociar com corações desesperados — ela disse, enquanto eu despencava, e desapareceu.


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