A Pele do Espírito escrita por uzubebel


Capítulo 20
Capítulo 19




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Lorena

Fechei meus olhos, sem querer encarar as pedras escuras e o mar agitado lá em baixo, prontos para moerem meus ossos. Se Byakko não viesse, como em todas as outras vezes... Prendi a respiração. Será que ia doer quando eu batesse lá em baixo? E, sem poder morrer, como os outros, eu sentiria dor pra sempre, até que Byakko voltasse? Ou será que eu apagaria, como Dorothea, durante horas, e acordaria depois, totalmente quebrada, e sem poder me mexer? Será que ele voltaria, antes disso...?

Apertei mais os olhos, até sentir as pálpebras arderem.

Se eu morresse, pelo menos Byakko teria que aparecer. Pra me buscar. E buscar os outros. E Dorothea... Levar todos para o Outro lado.

Mas...

Mas, se eu morresse, ia poder falar com ele, e ia conseguir pedir desculpas...?

E se ele nem quiser me ouvir, como eu não quis, quando ele...?

Um estampido alto interrompeu meus pensamentos. Era só o vento passando rápido pelos meus ouvidos, e não ia olhar pra baixo por isso. Não queria olhar para baixo...

Dedos mornos seguraram meu pulso, enquanto a queda me puxava para baixo com uma força ainda maior.

— Lorena, se segura! — A voz de Byakko me tirou do escuro.

Abri os olhos, segurei o braço dele antes que escorregasse de vez, sentindo meu pulso escapar de seu aperto. Byakko estava agarrado ao paredão de pedra com a outra mão, os dedos tão enfiados na rocha que eu nem conseguia ver as pontas de cada um, mas segurando forte o suficiente para parar minha queda com um puxão. O capuz cobria sua cabeça e jogava sombras sobre seu rosto. Seus olhos brilhavam.

Byakko rapidamente me puxou para cima. Como se eu não pesasse nada. Me puxou com uma mão só, até que eu conseguisse subir em suas costas e passar os braços pelo seu pescoço.

Tudo em completo silêncio...

Depois, começou a subir o penhasco. Ele se segurava firmemente ao paredão íngreme, apesar de eu não ver nenhum lugar onde ele pudesse se apoiar. Suas mãos se levantaram, uma de cada vez, e vi as pontas de seus dedos terminarem em garras afiadas e curvas. Ele as enfiou nas pedras com força, abrindo sulcos onde se segurou para subir, como uma criança brincando de desenhar na areia da praia. Sulcos e marcas como as que eu tinha visto no templo, logo depois de ele desaparecer...

Estremeci.

Soltei uma das minhas mãos e a passei rapidamente por baixo do braço dele, voltando a me segurar. Seu pescoço estava mais largo do que eu me lembrava, e eu não queria machucá-lo. Ele também parecia mais alto. A ponta de seu maxilar estava na altura dos meus olhos, mas de onde eu estava não conseguia saber se ele estava com a mandíbula travada ou se seu rosto estava mais saliente mesmo. Me apertei mais contra seu corpo, cruzando os braços e as pernas ao redor dele. Senti seu corpo ondular sob o meu a cada “passo” que ele dava para cima. Cada músculo se alongando e contraindo. Byakko tinha perdido aquele físico magrelo de quem cresceu rápido demais, mas, mesmo assim... Eu estava assustada com como ele me carregava sem fazer esforço nenhum. Como rasgava o paredão com as mãos nuas...

Eu nunca tinha visto ele fazer nada disso antes. Nunca tinha pensado nisso até aquela noite com Isméria... E, sinceramente, não tinha voltado a pensar nisso enquanto ele estivera sumido.

Mas Byakko parecia... diferente.

Quer dizer, tudo estava diferente. Mas eu não sabia o que era. Podia ser problema meu, certo?

Mas uma coisa parecia nostálgica: não importava o quanto tivéssemos ficado longe, ele sempre voltava parecendo ter a mesma idade que eu. Me lembrei da última vez que ele tinha salvado minha vida, depois de um longo tempo afastados. De como eu tinha ficado surpresa em perceber que ele também tinha mudado. E tudo o que eu consegui dizer foi...

— Você... cresceu.

 

***

 

Quando chegou ao topo, Byakko me deu um empurrãozinho para subir. Engatinhei uns três passos para dentro da ilha, só pra me afastar da borda, e caí de bruços, sentindo as pernas e braços trêmulos. Olhei para o lado. Byakko também tinha se içado para cima, e estava deitado no chão, com as mãos cobrindo o rosto. As garras tinham desaparecido, mas ele parecia ofegante, inquieto, murmurando alguma coisa que eu não conseguia entender.

Me sentei e me arrastei um pouco mais pra perto dele. Seus dedos estavam contraídos e a mão sobre a boca “amassava” as palavras que ele repetia sem parar.

— Anda, anda, anda... — Ouvi ele dizer.

Levantei a mão na direção dele.

— Ei... Tá tudo bem? — Perguntei.

Ele afastou os dedos de uma mão, e consegui ver um de seus olhos. Ele estava com a pupila fina como as de um gato, e seu formato me lembrava das pontas de lanças quebradas que o mar jogava na Praia Velha. Como na noite em que ele enfrentara Isméria...

Eu quase conseguia ouvir os rugidos outra vez, mas, ao invés disso, ele simplesmente falou, com a voz um pouco rouca:

— Eu só preciso de um tempo pra me acalmar...

Fechei os meus dedos estendidos e baixei o braço, mas não desviei o olhar.

Byakko deve ter percebido como eu o encarava, porque fechou os olhos e se virou de lado, deitado e encolhido na rocha.

— Me pergunto se você estava tentando morrer... — Ele diz, com a voz um pouco abafada. — De novo.

Ah, pelo menos eu não sou a única pensando no passado...

Talvez as coisas não tivessem mudado tanto assim, afinal.

Senti meu rosto esquentar e o virei também.

— Eu não fiz nada, eu...

Mas, olhando ao redor, não havia ninguém ali além de nós dois. Cruzei os braços. O que eu ia dizer? Que tinha feito um acordo com Isméria e ignorado qualquer traço de sensatez que eu pudesse ter? Que ia... morrer em três meses, provavelmente? Não, Byakko não precisava saber de nada disso. Não agora... E eu não precisava que ele perdesse a cabeça por minha causa. Precisava dele bem aqui, na ilha... Ora, tinha dado minha vida pra trazê-lo de volta, não tinha?

— Foi um acidente... — Completei.

Era o máximo que eu podia dizer, sem mentir e sem alardear demais.

Byakko deu uma risadinha.

— Espero que não tenha deixado nada cair, dessa vez.

Me virei pra ele. O Espírito agora estava deitado de costas outra vez, mas com os braços abertos e a respiração pausada. Seus olhos tinham voltado ao normal, com as pupilas arredondadas de sempre, e ele encarava o céu, deixando suas íris um pouco azuladas. Byakko me encarou, provavelmente esperando alguma resposta engraçadinha, e, quando eu não disse nada, se sentou também.

— Aconteceu alguma coisa...?

Sim, eu não sei se fico feliz ou triste ou com raiva por, de repente, você parecer não ter deixado de fazer perguntas estúpidas.

Porque quem imaginaria que algo aconteceu com alguém que quase acabou de se matar, não é mesmo?

— Sim — descruzei os braços e os sacudi. — É claro que sim!

Cruzei as pernas e bati no chão com o indicador três vezes.

— Desde que você sumiu, essa ilha anda uma bagunça! — Continuei, falando mais alto à cada pausa para respirar. — O festival foi um fracasso, todos fugiram correndo, os seus rugidos assustaram todo mundo, as pessoas apavoradas atacaram seu templo, mas você tinha ido embora sem falar nada. Sabe quem tirou suas aldrabas da porta e salvou Um e Dois de serem queimados? Eu! Aí as pessoas pararam de morrer, Dorothea adoeceu, e eu te chamei todo dia. Todas as noites... Porque...

Engasguei.

Byakko escutou tudo, petrificado, como uma estátua de mármore muito pálida. Então, quando eu parei pra fungar, ele finalmente piscou, e estendeu os braços. Ele segurou minhas mãos que sacudiam muito e batiam uma na outra. Depois, me puxou até ficarmos cara a cara, apertando meus pulsos com firmeza, mas sem machucar. Ele só ficou lá, encarando o fundo dos meus olhos, até eu começar a soluçar.

Deixei minha cabeça cair e se apoiar no ombro dele.

— Eu queria pedir desculpas... — Esfreguei meus olhos na túnica macia dele. — Desde que você sumiu, eu só queria que você voltasse pra poder pedir desculpas...

Seus ombros amoleceram um pouco. Senti minha cabeça oscilar pro lado, ainda apoiada nele. Algo como um tremor levando a tensão embora, mas passou rápido. Logo em seguida, ele finalmente estendeu os braços ao meu redor e me abraçou, meio desajeitado. Ele parecia estar tentando me envolver, sem me tocar, como se tivesse receio. Então, eu retribuí, abraçando-o pela cintura. Senti seu queixo se mexer, abrir e depois fechar, sem dizer nada, e ele finalmente me apertou, com a mesma firmeza e cuidado com que tinha segurado meus pulsos.

— Me desculpe... — Byakko sussurrou. — Sei que não ajuda em nada, mas tem sido impossível estar em mais de um lugar ao mesmo tempo, ultimamente. As coisas não são mais como costumavam ser... Mas eu voltei pra concertar tudo, tá bom? É uma promessa...

E eu acho que nunca o tinha visto falar uma palavra com tanta força como agora. Como se uma promessa pudesse ter um peso enorme... Tanto eu mesma desisti de perguntar porque ele tinha dado tanta ênfase em como tudo tinha mudado.

Talvez porque eu mesmo já tivesse percebido um pouco disso...

Era impressão minha, ou eu nunca tinha sentido a pele de Byakko tão quente como hoje?

— Você vai cuidar de Dorothea...? — Perguntei, sem conseguir evitar.

Ainda apoiada no ombro de Byakko, senti sua cabeça balançar e seu cabelo roçar minha orelha.

— Agora mesmo.

Primeiro eu sorri. Dorothea finalmente poderia parar de se sentir amaldiçoada, condenada a sofrer, por minha culpa. Eu não podia compensar o que ela tinha passado nos últimos meses, mas, pelo menos agora, eu tinha conseguido trazer Byakko de volta. Ela poderia descansar. Estaria livre da dor. Ela poderia...

Poderia morrer...

De repente, meu sorriso morreu. Levantei o rosto, encarando o vazio na minha frente.

Eu nem sabia se ela tinha acordado ainda. Tinha saído de casa correndo, sem nem checar o quarto dela, com a ideia maluca de chamar Isméria. Eu não a tinha visto nem lhe dado bom dia... Se Byakko fosse resolver tudo agora, como tinha dito, eu nem conseguiria lhe dizer adeus...

Byakko empurrou meus ombros devagar, até que estivesse me encarando, e perguntou:

— Está tudo bem? — Suas sobrancelhas se abaixaram, dando-lhe um olhar perdido. — Não é o que você queria...?

Pisquei, e depois abaixei o rosto.

— É que... — Mordi minha bochecha. — Eu queria poder me despedir de Dorothea.

Levantei o olhar e o encarei.

— Isso é... possível? Dar um final feliz a alguém?

Ele soltou meus ombros e colocou as mãos no colo, uma segurando a outra. Depois, sorriu.

— Talvez eu precise mesmo resolver umas coisas primeiro — ele revirou os olhos. — Afinal, eu não tinha ideia da bagunça que estava aqui.

Byakko me encarou.

— Não posso deixar isso voltar a acontecer.

Levantei uma sobrancelha.

— Mas...

Ele sacudiu a cabeça e se levantou, me estendendo a mão.

Tá bom, sem perguntas, então...

Peguei sua mão quente.

— Você acha que vai estar pronta até o anoitecer?

Ele me puxou e me ajudou a levantar. Ainda um pouco tonta da subida abrupta, abri a boca. Mas, quando a ficha caiu, eu sorri outra vez.

— Sim!

Apertei a mão dele com minhas duas mãos e a sacudi, como se estivéssemos fechando um acordo.

Ele riu. E fez força no braço para eu parar de sacudir.

— Certo, certo — ele levantou a outra mão e puxou uma folha seca do meu cabelo. — Faça o que tiver de fazer. Fique com Dorothea. Eu volto quando a noite cair, tá bom?

Então, sua mão que eu segurava começou a se desfazer em uma neblina fria, esbranquiçada, que foi levada pelo vento. O mesmo aconteceu com seu braço, seu corpo, seus olhos...

— Eu juro... — Acrescentou, no último segundo.

 E, de repente, até seu sorriso sumiu.

 

***

 

Sai correndo de volta pra casa.

Não sabia porque, já que Byakko tinha me dado o resto do dia para fazer o que eu precisasse. Mas corri mesmo assim. Como se estivesse com medo de não ser tempo o suficiente...

Abri a porta e, ao entrar, acabei pisando sem querer na linha de cinzas e sal na soleira. Me virei, por hábito, já querendo arrumar as proteções desfeitas, até me lembrar de tudo o que tinha acontecido apenas pela manhã. Tanta coisa que parecia até que tinha sido ontem, e não há cinco minutos. As proteções não importavam mais. Byakko estava de volta. E, acima de tudo, Isméria não tinha nenhum motivo pra vir atrás de mim agora. Agora...

Sacudi a cabeça.

Não, eu não ia pensar nisso. Eu precisava pensar em Dorothea.

Me virei para dentro da casa, pulei por cima da mesa da cozinha, e passei voando pelo corredor. Entrei no quarto de Dorothea sem bater e ela, acordada, levou a mão ao peito de susto. Ela engasgou e tossiu, e logo me senti culpada por lhe provocar mais uma crise. Dei um passo em sua direção, mas ela levantou a mão, me mandando ficar ali, que estava tudo bem, não se preocupe. Pelo menos a crise não durou muito e ela, com a respiração ainda meio áspera, me perguntou, entre grandes goles de ar:

— Pelos Espíritos, pra que tanta pressa? — Ela limpou a garganta, ainda meio rouca. — O que aconteceu?

Encarei o chão.

— Não é na... — Me interrompi, de repente.

Dizer que não era nada não ia ajudar. E nem Dorothea acreditaria. Não depois da minha entrada dramática. Além disso, eu queria dar a ela um bom último dia. Um dia normal e feliz. E não tinha nada que deixasse Dorothea mais feliz do que receber visitas. Ela adorava se debruçar sobre o fogão e cozinhar algo especial. E adorava que as pessoas sorrissem quando comessem o que ela tinha preparado. Não era à toa que ela sempre fazia tanta comida nos festivais. Ela não fazia questão da noite ou das tradições, apesar de ser bastante supersticiosa. Não... O que ela mais gostava era de agradar as pessoas com sua comida. Ela só precisava estar lá para ver.

Infelizmente, não havia muitos motivos ultimamente para recebermos visitas, e ela não conseguia mais trabalhar no fogão como antes. Sentar-se à mesa já era cansativo para ela. Mas, pensando bem, nós íamos receber uma visita, mais tarde. Por mais que eu não tivesse certeza se Byakko comia ou não.

— Alguém especial vem nos visitar hoje à noite — expliquei-lhe.

Dorothea sorriu de um jeito que eu não via há semanas, e fez força para erguer o corpo da cama. Segurei-a pela mão e a ajudei a se sentar. Depois, sentei na cama ao seu lado. Ela pôs a mão no meu rosto.

— Ah, eu sabia que você não ia ficar sozinha muito tempo! — Disse.

Levantei uma sobrancelha.

Quê?!

— Ahn?

Dorothea segurou minhas mãos.

— As ofertas dos rapazes, sua boba. Tenho visto você recusar tudo há meses, só pra provar que consegue cuidar de mim. Mas eu sabia que uma hora ia mudar de ideia.

Ah, não...

Ah, nããããããão!

Ela achava que eu estava falando em casamento.

Maldita ilha e suas tradições de cortejo... Cobri o rosto com a mão. Tudo porque o passo seguinte, caso aceitasse a comida que me traziam, seria cozinha-la para o “rapaz escolhido”. E trazer ele e sua família para comer, junto com a minha família – que era só Dorothea mesmo.

Mas já era tarde demais para desmentir. E pelo menos com essa desculpa eu poderia fazer com Dorothea o que ela mais gostava: cozinhar para alguém.

— Quem é? — Ela perguntou, sem parecer perceber o constrangimento que eu estava sentindo. — É o Ed?

Fiquei vermelha de vez.

— Não!

— Ora, por que não? — Ela levantou as sobrancelhas. — Vocês andam pra cima e pra baixo juntos desde sempre.

Ela pôs a mão no queixo, pensando.

— O Noah, então?

O garoto que tinha roubado Damien de mim quando éramos criança? Não mesmo.

— Absolutamente, não!

Ela suspirou.

— Quem é, então.

Esfreguei os olhos, pensando em como sair dessa.

— É surpresa. Quero que se conheçam hoje, no jantar.

Ela franziu as sobrancelhas, desconfiada.

— Eu conheço todo mundo nesta ilha.

Segurei uma risada.

— Arram... — Respondi.

Me levantei.

— Isso importa?

Dorothea sacudiu a mão.

— Não, não, o que importa é o jantar. O que vai fazer? Já pensou em alguma coisa? Porque tem que ser especial. Já pensou que horror, dizerem que eu não ensinei você direito...

Levantei a sobrancelha. Byakko provavelmente nem sabia o que era cozinhar.

— Nossa, um absurdo, mesmo... — Estendi a mão pra ela. — Então, você vai ajudar ou não?

Dorothea encarou minha mão, depois a porta aberta, e apertou a fronha da cama com os dedos.

— Não, não, de jeito nenhum... Eu não saio da cama há semanas. Só ia te atrapalhar, querida...

Suspirei e me agachei na frente dela, apoiando os braços em seus joelhos magros.

— Mas sou eu quem estou pedindo — inclinei o rosto, olhando bem nos olhos dela. — Eu não quero estragar tudo, por favoooor.

Ela estreitou os olhos.

— Você sabe que isso deixou de funcionar depois dos seus quatorze anos, não sabe?

Pisquei várias vezes.

Dorothea soltou o peso dos ombros e desviou o olhar.

— Querida, eu estou suja e fedida...

Segurei suas mãos.

— Isso a gente resolve, tá bom?

Me levantei, apontei pra ela e corri pela porta.

— Fica aí! — Gritei.

 

***

 

Voltei com um balde de água fresca, panos e esponjas limpas, e ajudei Dorothea a se banhar. Ela reclamou o tempo todo, dizendo que conseguia se limpar sozinha, então deixei ela tomar a frente e só a ajudei quando senti que precisava. Ela vestiu roupas limpas e eu joguei as sujas pela janela, outra vez. Ela me encarou.

— Eu juro que vou lavar tudo assim que puder.

Ela sacudiu a cabeça e resmungou:

— Que feiura... Eu quem não te ensinei isso!

Bufei e joguei a água do balde pela janela, sobre as roupas sujas lá fora.

— Pronto, tá de molho — pus a mão na cintura e soltei o balde vazio no chão. — Anda, a gente precisa começar a fazer o jantar. E já passou de meio-dia.

Ela assentiu, apesar de ainda estar com a cara fechada, e se segurou em meu braço para se levantar. Passei o braço por seus ombros ossudos e a puxei pra cima, devagar, segurando-a enquanto ela tentava se equilibrar sobre suas próprias pernas trêmulas. Dorothea ficou de pé e passou o braço pelo meu pescoço, se segurando. Desci minha mão e a segurei pela cintura, apoiando seu peso contra o meu corpo. Então, ela deu um passinho curto, e eu a acompanhei. Depois outro, mais um, e de novo... Até atravessarmos o corredor e chegarmos à cozinha. Sua respiração estava pesada e fanha, ficando cada vez mais rouca. Sinal de que uma crise estava a caminho. Carreguei ela pelos três passos que faltavam e a sentei numa cadeira, de frente para a mesa, onde ela pôde recuperar o fôlego. A tosse veio forte. Como ela mesma tinha dito, fazia semanas desde que ela não se levantava nem andava para lugar nenhum. É claro que o exercício seria pesado pra ela... Fui até a moringa, servi um copo de água e lhe dei. Ela bebeu, devagar, limpando a garganta. Depois, com as mãos trêmulas, deixou o copo sobre a mesa.

— Eu estou bem, não se preocupe... — Respondeu, finalmente.

Ela olha ao redor, para a cozinha arrumada, e levanta as sobrancelhas.

— Está tudo bem mais limpo do que eu imaginava...

É..., obrigada, Mab.

Se não fosse por ela, eu teria só feito comida ontem, alimentado Dorothea, e caído na cama, exausta. Mas, não, Sonho tinha limpado a mesa, varrido o chão e passado um pano em todos os utensílios, enquanto eu cozinhava. A única coisa fora do lugar era a panela do jantar de ontem, que eu tinha deixado em cima do fogão à lenha. Quase me sentia mal por ela ter sumido sem eu ter tido tempo para agradecer. Mas eu teria tempo depois. Quando fosse lhe contar que Byakko estava de volta.

— Ótimo, menos uma coisa com que nos preocupar — Dorothea completou. — Você sabe como os Espíritos detestam uma casa desarrumada.

Levantei uma sobrancelha.

Não, se soubesse, teria chamado Mab antes.

— O que nós vamos cozinhar? — Ela perguntou, quando eu não disse nada.

Foi quando me lembrei do peixe que tinha deixado secando, lá fora, desde ontem à tarde, e que devia ter pegado de volta hoje pela manhã. Bati a mão no meu rosto. Droga...

— E-eu vou olhar — respondi. E corri pra fora.

Pelo menos eu tinha colocado a carne pra secar na sombra de uma árvore, com sal e ervas por cima, então ela não tinha simplesmente tostado no sol durante meu lapso de memória. Além disso, estava no alto de um galho, coberta com uma rede fina de tecido, então nenhum animal tinha mexido também. Respirei aliviada, peguei as postas temperadas e voltei pra dentro.

— Temos peixe — disse para Dorothea. — Eu limpei, cortei e temperei ontem.

A senhora me encarou, com os olhos apertados.

— Você não esqueceu esse peixe no sol, esqueceu? Sabe que a carne de peixe é sensível e resseca muito fácil... Eu te ensinei isso.

Coloquei a vasilha com a carne na mesa, pra ela ver.

— Sim, eu sei... — Revirei os olhos. — Por isso que eu deixei a carne secando na sombra.

Dorothea cruzou os braços, encarando os filés.

— Tá, ainda parece bom... — Ela levantou o olhar pra mim. — É você quem vai cozinhar. O que pretende fazer?

Revirei todas as cestas da cozinha, em busca de outros ingredientes que pudesse usar de acompanhamento. Enquanto isso, Dorothea estava checando o cheiro do meu peixe.

— Você colheu essas ervas frescas na lua cheia?

— Sim.

Larguei os tubérculos que eu carregava em cima da mesa, e voltei a procurar mais coisa. Dorothea apontou pras raízes na mesa.

— E as raízes, colheu na lua nova?

Bufei.

— Sim!

E voltei a vasculhar as cestas. Achei cogumelos, castanhas, e algumas maçãs. Dava pra fazer farofa doce de castanhas com maçã, e fritar o peixe com cogumelos. As raízes eu podia amassar e transformar em purê... Peguei tudo e espalhei na mesa. Dorothea ainda estava encarando um tubérculo em sua mão.

— Tem certeza? Porque elas parecem meio secas.

Tomei a planta dela e devolvi pra mesa.

— Não tem problema, nós vamos cozinhar elas. Vão todas se reidratar rapidinho.

Dorothea riu baixinho.

— O que foi? — Perguntei.

Ela acenou com a mão.

— Não, nada mesmo. Só... Me diga o que pretende fazer.

Puxei uma cadeira ao seu lado e me sentei. Expliquei minha ideia e ela assentiu. Tirei a panela de ontem de cima do fogão e acendi a lenha rapidamente. Coloquei um caldeirão no fundo, no finalzinho do fogão, onde a chama era mais quente, joguei os tubérculos lá dentro e deixei cozinhando. Me sentei novamente e cortei os cogumelos. Dorothea tirava todos os pedaços da tábua de corte com a mão trêmula, e os colocava de lado, numa vasilha separada. Descasquei e cortei as maçãs, e ela colocou tudo em outra vasilha menor. Ela fez comentários o tempo todo, sobre como eu segurava a faca, sobre como temperava as coisas, sobre como deixava todo o suco da maçã escorrer quando a cortava... Mas, toda vez que olhava pra ela, Dorothea estava sorrindo. Ela podia não estar cozinhando, propriamente, mas suas mãos estavam tocando os ingredientes, ela estava fora do quarto, depois de um longo tempo, e não estava simplesmente sozinha, como nos últimos dias... Foi quando percebi que, eu tinha me esforçado tanto pra cuidar dela, da casa, da comida, mas tinha esquecido o mais importante: de lhe fazer companhia...

Eu só podia imaginar como uma pessoa doente, sozinha, num quarto fechado, devia se sentir, o dia todo...

E só podia agradecer que, pelo menos hoje, ela não teria que dormir pensando nisso... Dormir pra sempre...

Terminamos de triturar as castanhas até virar uma farinha crocante, com alguns pedaços maiores e outros menores, e voltei para frente do fogão. Coloquei as castanhas, as maçãs picadas e um pouco de mel numa panela de barro quente e rasa, e mexi até o suco e o mel secarem. Tirei essa panela e a dos tubérculos – já cozidos – de cima do fogão e coloquei tudo em cima da mesa, depois de descartar a água quente. As raízes precisavam esfriar, antes de serem amassadas. Peguei a chapa de ferro de Dorothea, uma herança de família, pelo que ela dizia, e a coloquei sobre a chama para aquecer. Se fosse depender de Koch, essa “panela” nunca existiria; já tinha perdido as contas de quantas vezes ele tinha se oferecido pra derreter ela e fazer outra coisa pois, segundo ele, era um desperdício enorme de metal, tão raro aqui na ilha. Mas Dorothea sempre recusava a oferta e enxotava Koch daqui. A carne sempre ficava melhor passada nela, que nas panelas de argila comuns.

Deixei a chapa no fogo até ouvir a gordura que passei por cima começar a chiar. A luz do sol começava a deixar tudo dentro da casa num tom avermelhado, mas mal reparei. Descasquei as raízes para Dorothea, agora mornas, e ela começou a amassá-las para mim, com um pilão de pedra, botando todo seu foco na tarefa, sorrindo de leve. Nem me importei quando ela mesma temperou e mexeu a mistura, com sal, ervas secas, o resto de leite que havia na casa. Pra falar a verdade, tudo naquele jantar era o que havia na casa para comer. Mas tudo bem... Ela não precisava saber disso.

Coloquei as postas de filé de peixe na chapa fervendo, e elas chiaram na hora, selando a carne instantaneamente. O cheiro dos temperos encheu a cozinha, e vi Dorothea respirar fundo. Ela se apoiou na mesa, com os dedos das mãos cruzados, e murmurou:

— Cheira como a minha comida...

Parei com a mão levantada no ar, à meio caminho de virar o peixe para dourar do outro lado. Dorothea podia não ter sido uma “mãe” severa ou estoica, mas também não era de distribuir elogios. Ela costumava apenas sorrir, acenar, e fazer biscoitos quando queria me parabenizar. E lá estava ela, atrás de mim, sorrindo de leve, encarando a janela que se abria para o crepúsculo, tentando disfarçar seus olhos um pouco úmidos.

Voltei a encarar a comida no fogão, escondendo um sorriso também. Virei a carne rapidamente, porque Dorothea podia não me elogiar muito, mas não hesitaria em me dar uma bronca caso eu queimasse o peixe no último instante. Encarei as postas, tremendo sobre o calor, apoiei o quadril na bancada ao lado do fogão e cocei o nariz.

— Eu aprendi com a melhor...

Dorothea riu. Um pouco frouxa e relaxada, baixinho, como não escutava havia dias.

A cozinha começava a ficar escura, com apenas as chamas do fogão acesso iluminando tudo. Peguei um galho fino de dentro da fornalha e usei seu fogo para acender as lamparinas da casa: três na cozinha, uma no corredor, uma em meu quarto e a última no quarto de Dorothea. Voltei e tirei passei os filés de peixe da chapa quente para uma vasilha fria de barro, interrompendo o cozimento. Coloquei ela na mesa e ajeitei o purê e a farofa de castanhas também, bem no centro do móvel. Peguei três pratos, pão, e deixei a mesa posta para nós e mais um convidado.

Dorothea levantou a sobrancelha, confusa.

— Ele não vai trazer a família? — Ela perguntou.

Sacudi a cabeça.

— Não, seremos só nós.

— Mas...

O som do sino na entrada tocou, anunciando alguém.

Nós duas nos viramos para porta da frente ao mesmo tempo.

— Já chegaram? — Dorothea perguntou.

Sacudi a cabeça, um pouco confusa. Estava tão acostumada a ver Byakko entrando no meu quarto pela janela, que nem tinha pensado em como ele chegaria aqui. Ele poderia muito bem simplesmente aparecer no meio da cozinha, do mesmo jeito que costumava desaparecer: numa lufada de fumaça. Se Dorothea morresse de susto, pelo menos ele estaria aqui, certo? Mas, quando andei até a entrada e abri a porta, era realmente ele do outro lado, tocando com os dedos o símbolo que eu tinha encravado no batente, dois anos atrás.

Ele me encarou, deu de ombros e sorriu.

— Desculpe, tive que usar a porta dessa vez.

Eu ri. Pelo menos eu realmente tinha uma casa à prova da má-educação dos Espíritos, graças à Tâmi.

— Quem é, Lorena? Não vai mandar o convidado entrar? — Dorothea brigou, sentada à mesa. — Você sabe como os Espíritos detestam anfitriões ruins.

Girei os olhos, pensando em como eles nem deviam ligar pra isso, mesmo. Peguei Byakko pela manga da túnica e o puxei para dentro. Dorothea estava com um prato na mão, já servindo o “convidado”, quando levantou a cabeça e encarou Byakko. Vi sua boca se abrir, como a de um peixe, e suas mãos tremerem, deixando o prato escorregar por entre os dados. Ouvi o estalo da argila se quebrando e encarei os cacos, a farofa e o purê que se espalharam pelo chão. Dorothea levou as mãos à boca e se apoiou na cadeira, quase se deitando.

— Você está aqui... — Ela disse, se segurando à mesa com uma mão. — Eu temi que estivesse nos punindo. Seu templo... Eu sinto muito pelo seu templo, Byakko.

Uou...

Congelei. Dorothea tinha acabado de chamar Byakko pelo nome, como se o conhecesse, mas... Como? Ela tinha passado minha infância inteira insistindo para que eu evitasse a Praia Velha, brigando quando eu andava por lá, quando trazia alguma coisa... A vida toda, ela tinha me parecido tão supersticiosa quanto ao templo abandonado como o resto das pessoas na ilha. Mas, então... Por quê?

— Vocês... se conhecem mesmo? — Perguntei.

Dorothea esfregou os olhos, suspirando, e depois me encarou.

— Sim, querida... Eu... — Ela abaixou a cabeça. — Tem tanta coisa que eu escondi de você...

Dorothea tentou se levantar, apoiando o peso na mesa e na cadeira, fazendo os móveis bambearem. Corri até ela, antes que acabasse caindo, e a segurei pelo braço. Ela desistiu de se levantar sozinha e voltou a se sentar.

— Oh, eu nunca pensei que teria que explicar isso... — Ela encarou Byakko com aqueles olhos semicerrados de quando ia me dar uma bronca. — O que aconteceu com nosso acordo, Byakko?

— Hmm... — Ele deu um passo para trás da porta aberta.

— Argh, certo... Eu devia ter contado. Eu...

Mas Dorothea não conseguiu terminar de falar. A tosse deu sinal antes mesmo de acontecer. Ela levou a mão à garganta, como se sentisse uma coceira ou quisesse tirar algo que a incomodava. Ouvi sua respiração ficar mais difícil, o chiado no final de cada fôlego que ela tomava e, finalmente, ela tossiu. Uma, duas, três vezes, sem parar, até seu corpo começar a se enrolar de tanto esforço...

— Ei, ei, ei, ei... Calma, levanta a cabeça — disse.

Tentei puxá-la pelos ombros e fazê-la olhar para mim, mas ela estava toda tensa, encolhida, e fiquei com medo de machucar Dorothea. Queria ter terminado tudo, com Byakko, antes de uma nova crise começar, mas eu tinha que ter feito drama... Passei o braço de Dorothea pelo meu ombro e fiz força para levantá-la. Mas, sem a ajuda dela, e tendo que lidar com os espasmos da tosse também, estava difícil andar e segurar ela ao mesmo tempo.

— O que você está fazendo? — Byakko perguntou, se aproximando.

Encarei ele.

— Preciso levar ela pra cama. Se a crise continuar aqui, ela vai acabar engasgando...

Byakko assentiu, se abaixou um pouco e passou o outro braço de Dorothea pelos seus ombros. Depois, a aparou pelas pernas e se levantou com ela no colo, tirando seu peso todo de cima de mim. Damon, que estava no corredor, na saída da cozinha, saiu do caminho e se sentou dois passos para o lado. Byakko atravessou o corredor carregando o corpo trêmulo de Dorothea e eu os segui. Desviei dele e entrei no quarto primeiro, para pegar um cobertor limpo na arca ao pé da cama. Quando ele deitou Dorothea na cama, a tosse tinha dado uma trégua, mas ela ainda estava sem fôlego, com a respiração pesada e sem ritmo. Joguei o cobertor sobre ela, antes que a crise voltasse pior, e fechei a janela do quarto.

— E-eu... estou bem... — Dorothea gaguejou com a voz fanha.

Byakko tentou levantar seus ombros e colocar um travesseiro por baixo, mas ela estalou a língua e lhe deu um beliscão.

— Vocês ouviram o que eu disse?!

O Espírito levantou uma sobrancelha.

Dei um tapinha na mão dela, fazendo ela me encarar, e me sentei no chão, ao lado da cama baixa.

— Não faça isso, ele veio te ajudar — bufei. — Se quer ser mal-humorada com alguém, seja comigo.

Segurei a túnica de Byakko pela barra, como se precisasse de algum lugar pra me apoiar, e concluí:

— Ele vai te levar pra onde você precisa ir...

Dorothea abriu a boca, mas ficou muda. Então, caiu deitada em seu travesseiro baixo, e colocou as mãos no peito.

— Ai, meus Espíritos... — Ela baixou as mãos até que cobrissem seus olhos, apertando-os. — Finalmente...

Ouvi ela fungar e vi seu peito sacudir. Ela virou o rosto e me encarou, com os olhos marejados. Levantou a mão e tentou me tocar.

— Oh, eu já estava tão cansada...

Eu peguei sua mão no ar e a apertei.

— Eu sei... — Disse, balançando a cabeça.

Dorothea encarou Byakko e depois eu.

— Mas eu preciso lhe explicar tanta coisa...

Sacudi a cabeça.

Byakko colocou a mão no meu ombro e se agachou ao meu lado, ficando na altura dos olhos de Dorothea.

— Tudo bem — ele disse. — Eu prometi que explicaria tudo pra ela.

Prometeu...?

— Obrigada — a senhora agradeceu, estendendo a outra mão para ele. — Talvez eu estivesse errada em tentar afastá-lo por todos esses anos... Você nunca foi um mal Espírito...

Ele pegou a mão magra e sussurrou contra o dorso dela:

— Talvez sim, talvez não...

Ele me encarou e, como sempre, eu não tinha ideia do que estava pensando. Depois, voltou a se virar para Dorothea.

— Não vai querer sua última refeição antes de partir? Eu posso trazer aqui — ele ofereceu.

Dorothea sacudiu a cabeça com toda a força que tinha.

— Não... Eu não preciso — ela me encarou. — Eu já sei que está delicioso.

Apertei mais sua mão.

Dorothea estendeu os dois braços para mim, pedindo por um abraço. Me contorci, meio desajeitada, para conseguir abraça-la na posição em que estávamos, e retribuí. Parecia que ela me apertava com suas últimas forças....

— Eu te amo, querida... — Ela sussurrou no meu ouvido.

— Eu também... — respondi.

— Vai ficar tudo bem — Dorothea acrescentou.

Assenti, em silêncio, porque disso eu não tinha certeza... Mas ela ia se sentir melhor, era só no que eu precisava pensar.

Byakko se levantou.

— Você quer ficar? — Ele me perguntou.

Levei um minuto para entender do que ele falava. Ficar aqui, no quarto, vendo enquanto...

Funguei.

— Eu não sei... Vai doer?

Tinha me lembrado das coisas que pensara quando estava lá, caindo do penhasco, com medo de morrer.

Byakko arregalou os olhos.

— Em você? Nem um pouco.

Revirei os olhos.

— Não em mim, nela! — Acenei com a cabeça para Dorothea, e ela e Byakko riram da expressão indignada em meu rosto.

— Eu não sei, Lóris... Eu nunca passei por isso.

Byakko me encarou, com receio de que eu o repreendesse por usar meu apelido outra vez. Mas, ao invés disso, eu corei. Fazia sentido... Byakko nunca tinha estado no outro lado da morte. E provavelmente nunca estaria. Não deveria... O que aconteceria com o mundo de ele sumisse outra vez? Dois anos já tinham sido uma loucura...

— Tudo bem... — Disse, virando meu rosto. — É melhor eu esperar lá fora.

Saí do quarto e fechei a porta atrás de mim, apoiando minhas costas na madeira. Eu achava que não devia bisbilhotar, mas escorreguei até estar sentada no chão e abri uma pequena fresta para olhar. Byakko estava ajeitando Dorothea em sua cama confortavelmente, segurando-a pela nuca para mexer em seu travesseiro estreito. Dorothea tinha parado de chorar, mas ainda tinha os olhos molhados. Ela também não parecia nem um pouco assustada...

Byakko soltou a cabeça de Dorothea e segurou sua mão com a mão dele. Então, com a outra, livre, ele perfurou seu peito com um golpe dos dedos estendidos. Cobri minha boca com as mãos, antes de soltar algum ruído que fosse estragar tudo. Parecia que ele queria lhe arrancar o coração... Dorothea ofegou. Byakko puxou sua mão de volta e não havia nenhuma gota de sangue em seus dedos, nem um coração em sua mão. Ao invés disso, ele segurava um vulto...; primeiro, puxou o braço fino que ele segurava pela mão, depois a cabeça e o tronco, todos indistintos, esbranquiçados e turvos, como a névoa que o acompanhava para todo lado.

Então, quando os pés se separaram, o corpo de Dorothea suspirou uma última vez, e seus olhos perderam o brilho, apesar das lágrimas ao seu redor. O vulto enevoado flutuava acima da cabeça de Byakko, e o que devia ser sua boca formou sílabas e palavras que eu não entendi. Por fim, o Espírito se virou para mim, sabendo que eu observava, e sorriu. Então, desapareceu numa névoa prateada que misturava ele próprio com a névoa que Dorothea se tornara.

E me deixou sozinha.

Fechei a porta.

Encarei a cozinha além do corredor, o chão sujo e os cacos de cerâmica no chão. Me levantei e caminhei até lá, sentindo meu corpo meio entorpecido. Me abaixei para limpar tudo, mas... Parei. Voltei a ficar de pé e encarei a mesa cheia de comida que eu tinha acabado de preparar. Nada daquilo fazia sentido pra mim. Eu mal conseguia sentir o cheiro, por algum motivo. Mesmo que tudo ainda estivesse morno, e fresco... O que eu ia fazer com aquilo tudo?

Eu tinha feito tudo aquilo para Dorothea e, no fim, ela nem tinha conseguido comer antes de partir. No fim, tudo o que ela queria era descansar... Ela não tinha colocado nada na boca. Nem mesmo um pedaço do peixe...

E eu... Eu não tinha a menor fome.

Cruzei os braços. Não... Eu não ia desperdiçar nada daquilo. E não, também não ia comer. Eu tinha feito tudo por ela, pra Dorothea. Foda-se!

Peguei as vasilhas cheias, uma por uma, e levei todas para o cômodo de orações. O altar não era tão grande assim, só cabia um prato de comida, então coloquei as vasilhas no chão, formando um semicírculo ao redor do móvel. Depois, fui á cozinha de novo e voltei com um prato limpo. Servi comida nele até quase derramar das bordas. Praticamente toda a comida que tinha feito, toda empilhada num pratinho só. E coloquei tudo em cima do altar. Abri as gavetas atrás de velas ou incensos. Achei três palitinhos perfumados e peguei o primeiro que vi. Acendi-o na lamparina e coloquei em cima da comida, fincado num filé de peixe, pra deixar bem claro do que a mensagem se tratava. Dorothea era novata, podia se confundir...

Me ajoelhei e apontei a comida:

— Nunca mais diga que minha comida é deliciosa sem provar, tá bem?! — Gritei. — Então... Então, agora que transformei tudo em oferenda, é bom comer. Comer tudo, viu!

Caí deitada no chão onde eu estava. Apertei meus olhos que sentia arder. Funguei e, finalmente, comecei a chorar.

— Se não comer tudo, não vou acreditar no que disse, tá bom...?

Virei para o lado, abracei minhas pernas e continuei ali, encarando a comida e o incenso, sem conseguir parar de chorar...

 


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