A Pele do Espírito escrita por uzubebel


Capítulo 17
Capítulo 16




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Byakko

 

Algo roçou meus dedos e depois meu rosto. Parecia um pedaço de tecido frio e acetinado, passando por cima de mim. Mas... Por que eu não conseguia ver nada? Estava tudo tão escuro... Ainda estava de noite? Meus poderes tinham sumido outra vez e eu estava cego, como quando tinha chegado? Foi quando o toque do tecido jogou meu cabelo por cima das minhas pálpebras que percebi que estava de olhos fechados. Tentei abri-los, mas me arrependi. As pálpebras pareciam coladas, pesadas, e, quando consegui, o mundo estava fora de foco. Minha cabeça parecia girar, e doía.

Grunhi, levando a mão até a cabeça. Foi quando senti o cheiro da poeira grudada nos meus dedos, e percebi que minha pele e roupas estavam tão empoeiradas quanto o resto do chão abandonado d’A Torre. O chão... Por que eu estava caído no chão?

Uma dor persistente me alfinetava a nuca. Movi os dedos para trás e senti galhos secos e espinhos me espetarem. Levantei-me e encarei o ninho de mirra, na altura dos meus olhos, onde minha cabeça estivera apoiada. Sentado no chão, virei o rosto para os arcos que se abriam para o céu, e o sol quase me cegou.

Não... Não podia ser dia. Eu me lembrava de estar falando com Foh, estava anoitecendo... Estava escuro.

Porque eu não me lembrava do que tinha acontecido? Era como se doze horas da minha memória tivessem desaparecido.

Ah, a ironia..., resmunguei. Lorena estaria...

Espera...

O rubi!

Tateei o chão ao meu lado freneticamente, em busca da trouxa ensanguentada que tinha levado até ali. Foi quando senti algo palpitar no meu colo, cada vez mais rápido, e encarei a pedra bem ali, ainda embrulhada, debaixo do meu nariz.

— Finalmente você acordou.

Levantei a cabeça. Foh estava sentada no seu ninho, me encarando com a sobrancelha arqueada. A ponta da cauda longa de sua roupa estava pendura nos galhos secos e roçava meu ombro. Pelo menos agora eu sabia o que tinha me acordado.

Acordado...

Cobri minha cabeça com as mãos, encolhendo meu corpo em direção ao chão.

— Não... Isso não é possível.

Eu não durmo.

Levantei o rosto e encarei Foh.

— Espíritos não dormem — repeti para ela, em voz alta.

O canto da boca de Foh se ergueu. Eu não tinha certeza de que ela estava rindo, com o resto de seu rosto ainda tão sério e os resquícios sangue seco abaixo de seus olhos.

— Você me ouviu dizer que estava dormindo?

Balancei a cabeça devagar.

Ela cruzou os braços.

— Você apagou — ela disse.

Pisquei.

— O que isso significa?

Ela revirou os olhos e se levantou.

— Significa que você desmaiou. Perdeu a consciência — explicou.

— Não... — Comecei a dizer.

A Fênix estreitou os olhos, pulou para fora do ninho e se debruçou sobre mim, com as sobrancelhas franzidas.

— Você veio aqui para ouvir o que eu sei ou para grasnar o que acha que sabe?

Inclinei-me para trás, tentando evitar seu olhar furioso. Engoli em seco.

— Eu vim pedir a sua ajuda... — Respondi.

Ela assentiu.

— Ótimo.

Foh pegou algo no chão, ao lado dela e do ninho, e estendeu pra mim. Era uma vasilha de barro velha, trincada nas bordas e cheia de água até o topo.

— Beba — ela mandou.

— Mas...

Ela levantou a sobrancelha.

Abaixei a cabeça e peguei a cumbuca de barro.

A Fênix se levantou, deu um passo em direção ao próprio ninho e se apoiou nos galhos secos, como se os espinhos não a machucassem. Pelo menos agora eles não pareciam mais feri-la, como na noite em que a tinha encontrado. Lembrei de sua pele rasgada e sangrando, e encarei seus braços e pernas através dos buracos que os espinhos tinham deixado em suas roupas. Não havia sequer uma cicatriz. Depois, levei a mão à nuca, onde tinha sentido a planta me espetar enquanto dormia— sacudi a cabeça – mas também não parecia haver nada de errado comigo.

— Quando foi que as mudanças começaram? — Ela perguntou.

Levantei a cabeça.

— O quê?

Ela bufou.

— Quando começou a se sentir diferente?

Desviei o olhar e lembrei de como tinha sentido minha pele formigar quando batera a cabeça na porta do templo; lembrei de como meus dedos tinham estalado quando fechara os punhos, cheio de raiva; da dor que eu sentira no peito quando Lorena me mandou embora; de estar preso nesta forma quase humana, não importava a força que eu fizesse para muda-la; lembrei-me de chorar e de sangrar...

Levei a mão ao rubi no meu colo de forma quase inconsciente, como um instinto. Eu ainda não tinha certeza do que era aquilo, ou do que estava se tornando, mas eu sentia que era importante, e que não podia me afastar da pedra.

— O quê é isso? — Foh perguntou, percebendo a maneira como eu segurara a trouxa, de repente.

Olhei para a Fênix, para o rubi empacotado e, depois, de volta para ela. Só de pensar em entregar a pedra nas mãos de outra pessoa eu já sentia um calafrio... Mas não era isso que ela tinha pedido. Ela só tinha perguntado o que era. Eu que tinha vindo aqui procurá-la... Não fazia sentido esconder isso.

Engoli em seco e coloquei a cumbuca de água de volta no chão, sem beber. Comecei a desatar o nó no alto da trouxa improvisada com lençóis. Sentei com as pernas cruzadas, deixando o rubi se encaixar bem no centro delas, enquanto eu puxava as várias camadas de tecido ensanguentado que o envolviam, e o revelei para Foh. Ela estreitou os olhos, e nada mais. Não se aproximou, não pediu para pegar ou tocar. Nada. Levantei o rubi nas mãos para conferir se havia algo de errado com ele e prendi a respiração. Ele continuava palpitando, com algo se mexendo em seu âmago e emitindo um brilho sutil. Mas, pela primeira vez desde que eu deixara o templo, ele tinha parado de sangrar. Cutuquei sua superfície quente e depois encarei minha mão, só para garantir que não estava enganado. Foh suspirou e eu baixei o rubi de volta para o meu colo e a encarei.

— Você sabe o que é isso...? — Ela perguntou.

Sacudi a cabeça.

— É um coração...?

Ela sorriu, e o som que parecia um engasgo curto sacudiu os braços cruzados sobre o seu peito.

— Não — ela respondeu. — Ainda não.

Foh se virou e voltou a dar um passo para dentro de seu ninho. Ela se sentou e colocou o seu ovo de volta no colo, cuidadosamente, como se tivesse medo de quebrar a casca – apesar de eu ter quase certeza de que o ovo não era apenas dourado, mas feito de ouro puro. Pensei em lhe perguntar o que ela queria dizer com aquilo, mas algo me interrompeu. Era a primeira vez em dias que eu me sentia um pouco mais como... eu mesmo. Meus poderes pareciam estáveis e, incrivelmente, eu começava a acreditar que dormir tinha ajudado nisso. Apesar disso, eu tinha medo de testar até onde esse equilíbrio perduraria. Fechei as mãos que descansavam sobre as minhas pernas cruzadas, ao lado do rubi. Não... Eu não ia tentar nada antes de ter certeza do que estava acontecendo.

Levantei a cabeça de volta para Foh. Eu não me lembrava de ter ouvido falar que as Fênix botavam ovos... Então, estreitando os olhos, eu senti alguma coisa. Uma terceira presença, além de mim e de Foh. Sua energia era fraca, e às vezes oscilava até quase desaparecer – o que, além do meu estado atual, podia explicar porque eu não a tinha sentido antes –, mas eu pude ter certeza de que estava viva, só não estava consciente. E então, quando ouvi um batimento mais fraco que o do rubi ou o do coração da Fênix, eu tive certeza...

Não era apenas um ovo, mas um receptáculo com cheiro de magia. E com uma criança recém-nascida enfeitiçada dentro dele.

— Foh... — Chamei.

Ela levantou o rosto e me encarou, em silêncio.

— Quem fez isso? — Perguntei.

Ela olhou do ovo de volta para mim, baixando as sobrancelhas, e respondeu em voz baixa:

— Eu...

“Há quanto tempo você está aqui...?”

“Desde que coloquei minha menina para dormir...”, ela tinha dito na noite anterior.

Uma criança recém-nascida e adormecida há trezentos anos.

— Eu precisava saber que ela estaria segura quando... — Ela complementou e se calou, de repente.

Não perguntei do que ela estava falando. Um pouco daquela expressão que ela tinha na noite anterior, quando a encontrara, tinha voltado. O que quer que ela tivesse feito, não tinha aliviado em nada sua dor... Não era à toa que ela passara os últimos trezentos anos chorando, sem nem perceber o passar do tempo.

E, mesmo assim, o tempo tinha passado, e, qualquer que fosse a magia que ela tinha usado na própria filha, estava começando a afetá-la além do esperado. Eu não sabia se seu batimento tão fraco era por ela ser tão jovem, ou tão velha... Não dava para saber como o tempo a tinha afetado, enquanto ela ficara dormente dentro de um ovo enfeitiçado. Não dava para saber como a própria magia de sua mãe a tinha afetado. Nada do tipo deveria perdurar por tanto tempo...

— E o quê você vai fazer agora...? — Perguntei.

Pela primeira vez, eu vi os dedos se Foh se enrijecerem sobre a casca metálica. Ela franziu as sobrancelhas, olhando para baixo, e quando respondeu, sua voz estava áspera:

— Não importa se se passaram cem, trezentos ou mil anos... O mundo lá fora continua o mesmo, perigoso.

Voltei a sentir a energia da criança oscilar e praticamente desaparecer. Prendi a respiração até sentir seu coração voltar a acelerar, recobrando o ritmo a partir do silêncio que eu tinha aprendido a reconhecer... O silêncio de que todos tinham medo. Mas Foh não era capaz de sentir o que eu sentia.

Sacudi a cabeça.

— Mas você não sai daqui há séculos, como...

Ela levantou a mão, me interrompendo.

— Pare de opinar como se fôssemos amigos, Byakko... Nós não somos — Ela levantou o rosto e me encarou de volta com um olhar vazio, sem expressão. — Foi você quem me procurou.

Só os meus amigos podem me chamar assim...

Aquilo fez o rubi no meu colo pulsar, mais forte, mais rápido, mais dolorido... Uma frase, e senti todo meu recém-adquirido equilíbrio se esvair, deixando-me com frio. Meu poder também voltou a desaparecer, até ou não ser mais capaz de ouvir nem sentir a criança enfeitiçada, como se estivesse aturdido, desorientado, cego outra vez...

Foh se ajeitou em seu ninho. Colocou o ovo de lado e se sentou completamente de frente para mim, ereta, sem mais distrações. Ela pigarreou e ergueu o queixo, me olhando nos olhos.

— E com você — ela começou —, o que foi que aconteceu?

Encarei o teto e respondi, pensando em voz alta:

— Há umas noites atrás, de repente, eu não conseguia mais mudar de forma, não tinha mais o controle dos meus poderes, me sentia diferente. Não... De repente, não — levei as mãos à cabeça, no mesmo ponto em que, fazia pouco tempo, eu tinha batido contra as portas do templo e sentido formigar, e, mais cedo, tinha acordado com os espinhos cutucando a pele.

— Não, aconteceu muito antes — continuei. — Eu que não tinha percebido. Mas alguma coisa mudou, depois...

Levei a mão ao peito vazio, de olhos fechados, e, quando voltei a abri-los, Foh me encarava. Segurei o rubi, sentindo a pulsação que eu mesmo não tinha.

— Tudo mudou depois que ela me mandou embora...

Foh balançou a cabeça devagar, para cima e para baixo.

— E quem é ela?

Encarei a Fênix.

— Uma garota...

Ela esperou, calada, por quase um minuto. Depois, revirou os olhos, como se eu tivesse respondido errado à sua pergunta.

— O quê? — Perguntei.

Tudo o que ela fez foi balançar a cabeça e cruzar os braços.

— E por que você acha que isso está acontecendo?

Abaixei a cabeça, enquanto voltava a arrumar o tecido ao redor do rubi e amarrava suas pontas soltas por cima da pedra, embrulhando-a outra vez. Depois, empurrei ela mais para o meio das minhas pernas, escondendo o embrulho entre as dobras das minhas roupas, como se quisesse tirá-lo do meu próprio campo de visão. Então, estiquei os braços para pegar de volta do chão empoeirado a cumbuca funda e cheia d’água que Foh tinha me oferecido. Eu não tinha bebido nada, e nem sabia por onde começar. Encarei meu próprio reflexo na água, enquanto pensava a respeito... Lembrei daquele espelho no templo, que eu detestava tanto; lembrei dos espelhos d’água no salão, onde eu sempre tinha que me ver quando passava. Eu detestava aquilo... Tudo aquilo que me fizesse encarar minha própria imagem. A imagem que os outros viam quando olhavam para mim.

Eu detestava, juro, até o dia que me vi da maneira como ela me enxergava.

Coloquei a vasilha de água de volta no chão, ao meu lado, com um suspiro. A história toda era um pouco mais longa que isso...

Abaixei a cabeça.

— Você sabe que todos os Espíritos “nascem” — desenhei aspas no ar — com um nome, certo?

Foh assentiu.

Respirei fundo.

— É o nosso nome verdadeiro, o primeiro de todos, um nome que eu abandonei há muito tempo... — Trancei os dedos da mão, apertando palma contra palma, com força. — Esse nome, que todos os Espíritos têm desde o nascimento, é algo poderoso. E carrega uma mensagem. Para alguns, ele fala sobre sua essência, sua função, seu papel, seus poderes. Mas o meu nome profetizou o meu destino.

Levantei o rosto e encarei a Fênix.

— O meu nome significa O Último. Isso quer dizer muitas, muitas coisas, mas, para os outros Espíritos, significava que eu, um dia, poria fim às existências imortais deles também, como fazia com os mortais que eu precisava arrebatar e pastorear um atrás do outro. Significava que eu era letal até para os imortais. Quando eu surgi, Zoroa disse: quando este mundo chegar ao fim, você será o último; aquele que vai apagar a luz. Este é o meu destino...

Ela levantou as sobrancelhas, com os olhos baixos e a cabeça inclinada para o lado.

— Desde que eu sei disso, desde que existo, eu penso o que vai ser de mim depois de tudo. Eu ainda vou existir? Vou ficar no escuro? Vou ficar... Sozinho?

Suspirei.

— Desde sempre, este é o meu maior medo: ficar sozinho — Vi Foh tocar seu ovo, discretamente, e depois voltei a encarar minhas próprias mãos. — É isso que o meu próprio nome significa pra mim. E a ironia é que eu nem precisei esperar o fim do mundo para ficar isolado: eu nunca fiz parte do mundo dos Espíritos, como os outros. Eu fui rejeitado desde o começo. Eles não me queriam por perto. A maioria deles...

Ela cruzou os braços e resmungou.

— Os poderosos Espíritos, tendo que ser lembrados do próprio fim — ela zombou. — Ah, eu imagino o desconforto... Não tão poderosos assim, afinal

Balancei a cabeça.

— E, por outro lado, existiam os mortais... Antes deles não existia fim, não existia último suspiro, nem Morte... Eu não existia. Nós surgimos juntos. Por isso, no começo, eu costumava pensar neles como irmãos. Não é assim que eles chamam aqueles que nascem do mesmo ventre, juntos? Nós éramos irmãos, assim como Yasuko e eu, que tínhamos nascido juntos, praticamente ao mesmo tempo.

Foh anuiu.

Continuei:

— Mas, não... Eu descobri que eles também não me queriam por perto. Tinham medo do fim, da morte, e pensavam coisas terríveis de mim. Me viam como um mostro — dei de ombros.

Encarei de soslaio a vasilha de água ao meu lado, e o meu rosto refletido, outra vez. O único rosto que eu parecia capaz de usar, desde aquela noite...

— Você sabe que os Espíritos não têm uma só forma, né?

Ela levantou uma sobrancelha e assentiu.

— Os Espíritos não têm um corpo físico, na maior parte do tempo, e, mesmo quando vestimos uma “pele falsa” para interagir com os mortais, ela tem a forma com que eles nos interpretam. Nós literalmente somos o que eles pensam de nós. Agora imagine o que eles pensam da morte... O que viam quando olhavam pra mim... Eu só sei que eu nunca me identifiquei completamente com as formas que eu tinha para os humanos. Nunca me reconheci em nenhum dos rostos... Eu nunca fui mal. Nunca fui nada daquilo... E, mesmo assim, era tudo o que eu via quando encarava meu próprio reflexo: o medo deles. Até eu conhecer a Lorena...

Foh pigarreou.

— Mas você já teve um povo antes, não teve? Se eu estiver certa sobre o que é isso — ela apontou para a trouxa escondendo o rubi, — então significa que você tem, ou teve, um templo. E que fez parte de alguma comunidade, como muitos outros Espíritos que também foram acolhidos...

Assenti.

— Não, você está certa. Eu já vivi com um povo, eu tenho um templo, e eu era o guardião da cidade deles, junto do meu irmão. Na Era da Partilha, quando eu vi como os humanos estavam se aproximando dos Espíritos, tornando-os literalmente parte de seu povo, eu pensei que as coisas iam mudar pra mim. Que eles, eventualmente, iriam me aceitar também. Mas não foi exatamente o que aconteceu...

Senti uma dor no peito só de lembrar da cidade, do templo, do mar se levantando e levando tudo embora. Engoli em seco.

— Houve um povo que me aceitou, que me recebeu. Eles me fizeram uma “casa”, um templo, e cumpriram todos os rituais. Eu vivi com eles por muito tempo..., mas não foi o que eu imaginava. Eles não tinham medo de mim, como os outros, o que era mais do que eu podia querer na época.  Eles me idolatravam. Eram respeitosos, mas também eram... distantes. Foi a melhor coisa que me aconteceu, na época, e eu fiquei feliz. Pelo menos, eu não estava mais sozinho. Mas hoje eu sei do que eu sentia falta: eles nunca me trataram como um igual. Nós não levávamos a mesma vida, não seguíamos o mesmo ritmo, eu não fazia parte da rotina da maioria, exceto em datas especiais, quando os astros se alinhavam ou quando nasciam os dias sagrados de seus calendários. Como nos solstícios... Eles me tratavam como uma divindade antes, mas, depois do que aconteceu, as coisas só pioraram. Eles até pararam de me chamar pelo nome... Eu me tornei apenas um mestre para o qual deviam as próprias vidas.

— E o que a tal... Lorena, a garota, fez de diferente? — Foh perguntou, coçando o nariz.

Fechei os olhos, devagar, enquanto puxava o ar, e voltei a abri-los quando expirei.

— Ela foi a primeira pessoa a me ver como eu realmente me sentia, me ver como um igual...

Foh ergueu uma sobrancelha.

— Ela te viu como um humano...?

Pisquei, pensando a respeito. Não, não como um humano. Desde a primeira vez que Lorena tinha colocado os olhos em mim, a aparência que eu tinha para ela seguia um padrão: desde a noite do incêndio, antes de eu retirar suas memórias, e até depois, quando eu entrei no seu quarto, quando ela me encontrou na clareira e quando foi me visitar no templo, cheia de papoulas nos braços... Em todas essas vezes ela nunca me confundiu com um humano. Ela sabia que eu era outra coisa, algo diferente dela, e ela via essa diferença nos meus olhos, no meu cabelo, na minha pele... E, mesmo assim, sempre que ela tinha ficado diante de mim, eu tivera a mesma idade dela, perante seus olhos.

Sacudi a cabeça.

— Não, um humano não... — Respondi, sorrindo discretamente. — Um amigo.

Foh anuiu.

— Entendo... — Ela disse.

A Fênix acariciou seu ovo dourado mais uma vez e se levantou, fechando os dedos em punho, franzindo as sobrancelhas, sem tirar os olhos dele. Com um suspiro, ela se virou para mim, pulou para fora do ninho, pegou a vasilha de água no chão ao meu lado com uma mão e a outra estendeu para mim.

— Venha comigo — Pediu.

Eu peguei sua mão e ela me puxou para cima, me colocando de pé. Estiquei o braço para pegar o rubi antes que ele rolasse pelas minhas pernas e caísse no chão. Depois, passei a alça de pano amarrado toscamente pelo meu pulso, onde ficaria bem amarrado. Foh caminhou na minha frente e deu a volta em seu ninho até chegar a uma escada escondida atrás do amontoado de galhos secos, que eu via pela primeira vez. Então, ela começou a descer os degraus e sumiu.

Cheguei mais perto e encarei aquele recorte no chão: havia uma escada espiralada lá em baixo, colada às paredes da Torre, que parecia não ter fim. E que, eu imaginava, dava lá em baixo, no chão da cidade escondida no meio do deserto, perto daquela porta que tinha sido toscamente bloqueada com tijolos e argila. Respirei fundo e comecei a descer também. Depois de duas curvas da escada, eu encontrei Foh apoiada no corrimão, esperando-me alcança-la. Ela levantou a cabeça quando me viu descendo e voltou a caminhar quando passei, ficando ao meu lado, um degrau após o outro, sem derrubar uma gota da água no recipiente em suas mãos.

— Byakko — ela começou, — você sabe como a magia funciona?

Levantei uma sobrancelha.

— Claro que sei.

Ela levantou a dela, de volta.

— Jura?

— “A magia dita a ordem do mundo” — Repeti o que sempre tinha ouvido Zoroa dizer.

Veja os poderes dos Espíritos, Byakko. Todos temos exatamente os poderes que precisamos para fazer o que deve ser feito. Os Espíritos são os agentes da Ordem neste mundo e a Magia nos dá suporte. É esta a verdade...

— Ah, tá... Claro. — Foh riu baixinho.

Parei no alto de um degrau.

—  O quê?

Ela continuou descendo, sem nem olhar para trás, mas, quando respondeu, vários degraus abaixo, falou alto para que eu entendesse:

— Vou desenhar pra você quando chegarmos lá em baixo!

Bufei e corri para acompanha-la.

Depois disso, descemos o que restava da escada em silêncio.

A torre começou a se alargar, quanto mais perto da base chagávamos, deixando o espaço no centro, entre as voltas da escada, cada vez mais amplo. Talvez até maior que o terraço largo no topo, como um ninho, de onde tínhamos descido. Então, algo começou a emergir do vão. Primeiro, foram alguns galhos pequenos, retorcidos, secos. Depois, galhos mais largos e um tronco, cortados à golpes de lâmina. Ainda estávamos à vários degraus de distância do térreo, e, mesmo assim, o tronco da árvore que estava surgindo era tão largo que precisaria de pelo menos uma dezena de pessoas de mãos dadas para abraça-lo. Mas, o que uma planta tão enorme quanto aquela fazia dentro de uma construção, eu não fazia ideia. Algo assim poderia ter nascido lá dentro? Como fora parar lá? Sua madeira estava claramente seca, morta, quase petrificada pelo tempo. Devia ser uma árvore muito velha agora, e também ter sido muito velha antes de perecer, pelo seu tamanho.

À cada degrau que eu descia, surgiam marcas e desenhos entalhados na madeira; riscos que não pareciam fazer sentido de onde eu estava, nem formar símbolos que eu conhecesse. Pareciam ter marcado a árvore à esmo, quem quer que fosse, criando apenas uma textura confusa de linhas paralelas e cruzadas. Em outras partes, os galhos tinham sido esculpidos, cortados e moldados para crescerem numa determinada maneira, mas nada que fizesse sentido também. Continuei indo em direção às raízes enormes que se erguiam do solo, como pernas fortes dobradas. E foi quando percebi que a árvore, na verdade, tinha troncos gêmeos: um que se tornava dois, bem na base de suas raízes. Ainda assim, muito largos e enormes.

Chegamos ao chão e Foh me guiou até um lugar diante da árvore, de costas para a entrada lacrada. Daquele ponto, pela primeira vez, eu entendi o que tinha sido feito daquela planta: era uma estátua, uma mistura criada pela natureza e pelas mãos humanas. Cada um de seus dois troncos era o corpo largo de duas aves gigantescas, uma com a cabeça levantada, a outra com a cabeça baixa encarando a entrada. Suas pernas, escamas e garras tinham sido esculpidas nas raízes, como se as duas aves tivessem crescido do chão, diante de mim. Ambas tinham quatro asas, duas apoiadas no chão, como patas emplumadas, feitas de galhos largos que tinham mergulhado no chão e criado raízes menores e cipós; e duas estendidas para cima, de galhos largos entrelaçados que acompanhavam a escada em espiral. Os sulcos, riscos e traços que eu tinha visto ao descer não eram mesmo nenhum símbolo, e sim a textura das penas que tinham sido esculpidas na casca esbranquiçada. Seus pescoços eram galhos largos que se bifurcavam em bicos abertos, e que tinham sido também cerrados, lixados e polidos para manter a forma, além dos traços que desenhavam feições e olhos nas criaturas.

O trabalho visivelmente fora feito enquanto a árvore ainda estava viva, porque galhos tinham continuado a brotar das costas das estátuas, e pequenos brotos tinham teimado em aparecer em partes que já tinham sido trabalhadas, deixando as aves com uma aparência “ouriçada” e agressiva em alguns pontos. Além disso, os troncos tinham continuado a crescer para cima, além da forma que tinha sido planejada para eles, o que fazia o conjunto todo fazer sentido se visto do ângulo certo. Mas, como eu vira ao descer a escada, eles também tinham sido cortados, derrubando o que eu imaginava ter sido uma árvore muito, muito alta. Se tinha sido para manter a obra ou por outro motivo, eu não sabia. Mas devia ser essa a razão de a planta ter morrido.

Finalmente, algo mais chamou a atenção: no peito dos pássaros enormes havia um sulco estranho, de formato facetado e cercado por uma linha espiralada, onde algo devia ter ficado encaixado. Pelo formato, algo como uma pedra preciosa lapidada ou polida...

Foh pousou a mão sobre o meu ombro.

— Você está no “templo” mais antigo que existe neste mundo, Byakko — Ela sorriu. — Quando os Espíritos ainda eram cultuados a céu aberto.

Foi então que eu percebi: a árvore não tinha crescido aqui dentro. Não... A Torre tinha sido construída em volta dela, em volta do verdadeiro templo. As estátuas de Feng e Huang.

— É engraçado: quando meus pais se tornaram os primeiros Espíritos “mortais”, os outros Espíritos disseram que eles tinham caído. É como dizem até hoje, nas histórias... Como se tivesse sido uma fatalidade, um tropeço, uma falha... Mas, para mim e para os meus irmãos, eles sempre disseram que tinham descido.

A Fênix me encarou por um longo momento:

— Não foi um erro, foi uma escolha. A magia mostrou isso pra eles.

Ela me soltou, deu um passo para trás e abriu um pouco os braços.

— Não é sobre manter a ordem, não importa quem tenha te dito isso. A magia é sobre quem você é.


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