Um rinoceronte escrita por Lorita de M


Capítulo 4
O Rinoceronte




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/762110/chapter/4

Tendo entrevistado todos os cidadãos, o prefeito se encontrava exausto. Ninguém imaginava como o rinoceronte havia parado ali e nenhum suspeito surgira. Ele esfregava o rosto impacientemente em seu gabinete, enquanto observava a tranquilidade do animal, que mal se movia, pela janela. O secretário agradava sentado numa poltrona qualquer tipo de instrução. O silêncio de seu supervisor já se estendera por uns quinze minutos, e ele ficava cada vez mais aflito. Abriu a boca algumas vezes para dizer qualquer coisa, mas nem chegou a falar imaginando que seria repreendido. Olhava do rinoceronte para o prefeito, do prefeito para o rinoceronte, em ciclo. O estado meditativo dos dois foi interrompido quando a porta do escritório foi aberta lentamente. Os dois se voltaram, e viram o baixinho sacristão se esgueirando para dentro do cômodo.

      - O acesso à praça está restrito – resmungou o prefeito, dispensando o recém-chegado com um aceno de mão.

      - Veja bem, eu entrei pela janela dos fundos do edifício. Tecnicamente nem cheguei a pisar na praça – argumentou o sacristão. O prefeito refletiu por alguns instantes.

      - Tem razão, tem razão. Mas e então? Que quer aqui? Não tenho dinheiro para doar para uma reforma na igreja, e não sei se o senhor percebeu mas estamos diante de uma situação bastante problemática com a qual temos que lidar, portanto não tenho tempo para distrações.

      - Estou completamente ciente da situação – o sacristão se aproximou – E na verdade é dela que vim falar com o senhor. Tenho algo que o senhor prefeito vai querer ouvir, com toda a certeza.

      Prefeito e assistente se entreolharam, e voltaram-se para o velho sacristão, interessado. O primeiro fez um sinal para que ele dissesse o que quer que tivesse a dizer. O velho passou a mão pelos cabelos e começou a falar.

      - Imagine o senhor prefeito que enquanto eu limpava a igreja essa manhã eu tive um pressentimento estranho. Uma espécie de brisa passava por entre os bancos, o altar parecia mais iluminado que o normal. Era como se o edifício estivesse anunciando que algo estava por vir, o senhor compreende – prefeito e assistente o encaravam, espantados – Eu como sou um velho tolo não dei muita atenção aos sinais e continuei minha limpeza. Assim que terminei, subi devagar as escadinhas da torre para fazer soar o sino, que já davam quase dez horas...

      - Dez horas foi quando o rinoceronte foi avistado pela primeira vez!

      - ... e enquanto subia as escadas sentia que algo magnífico estava acontecendo. Parecia que tinha mais força para subi-las, tudo parecia mais claro... Foi quando cheguei ao sino, e ele parecia tão mais dourado, mais belo que o normal! O senhor prefeito conhece bem o nosso sino e sabe que não é dos mais sofisticados... Mas mesmo assim, juro ao senhor que me parecia mais bonito que o normal. E quando puxei a corda, o soar do sino uniu-se a um estrondo imenso e glorioso!

      - Os passos do rinoceronte! Os passos do rinoceronte! – o prefeito e o assistente haviam se levantado, os olhos escancarados, e olhavam do sacristão para o sereno rinoceronte parado na praça. O sacristão, que havia subido o tom e esticado os braços para cima, acalmou-se aos poucos e passou mais uma vez a mão nos cabelos.

      - E o que isso quer dizer, sacristão? – perguntou o prefeito.

      - Senhor prefeito – disse, com seriedade, o velho – Eu acredito que a grandiosidade de nosso Senhor se manifestou entre nós.

      - Mas como...

      Prefeito e secretário seguiram com o olhar a mão do sacristão conforme ele a levantava e estendia o indicador, apontando para o rinoceronte do lado de fora.

      - Oh! – disse o secretário.

      - O senhor quer dizer que aquele rinoceronte lá fora, a quem tentamos empurrar e puxar com cordas, a quem tentamos atrair com petiscos como se faz com qualquer vira-lata, é divino? – disse, com esforço, o prefeito.

      - Não apenas divino, senhor prefeito. É o divino.

      O prefeito andou, quase cambaleante, até a janela. Limpou o suor da testa com as mangas da camisa e aprumou os bigodes. Mas é claro! Havia de ser uma aparição milagrosa, e por isso ninguém sabia de onde o tal rinoceronte tinha vindo! Por isso ele surgira tão repentinamente. Ele não deixava de se perguntar, entretanto, por que Deus havia de vir ao mundo como um rinoceronte...? Não importava! Não lhe cabia questionar as escolhas divinas. O que importava era que ele estava ali, em sua cidade, em sua praça! Um arrepio percorreu sua espinha conforme ele pensava na negligência com que tinha tratado a igrejinha e seu sacristão, nas doações para a reforma que negara... E se o rinoceronte, ou antes o Rinoceronte, se enfurecesse? Determinado, abriu a gaveta da escrivaninha e tirou de lá um talão de cheques.

      - O que o senhor está fazendo? – o secretário perguntou, aflito, enquanto observava a quantidade de algarismos com os quais o prefeito preenchia o papel.

      - Tudo vai mudar nessa cidadela a partir de agora. A vinda do Rinoceronte é um sinal para nós, e não iremos ignorá-lo. Já se foram os tempos sombrios, e agora inicia-se a era de ouro desse lugar. Sacristão!

      O velho se aproximou, prontamente. O prefeito estendeu-lhe um cheque.

      - Para a reforma na igrejinha!

      O velho o recebeu. O prefeito estendeu-lhe outro cheque.

      - Para a compra de um novo sino!

      O velho o recebeu. O prefeito estendeu-lhe outro cheque.

      - Para transformar essa praça num templo e monumento à grandiosidade do Rinoceronte, sob a sua supervisão.

      O velho o recebeu. O prefeito estendeu-lhe outro cheque.

      - E por fim, pela compra de oferendas que possamos entregar ao Rinoceronte.

      O velho o recebeu. Enfiou todos os cheques num bolso, agradeceu com uma reverência.

      - A prosperidade há de cair sobre nossa terra – garantiu ao prefeito, saindo da sala aos poucos – E o Rinoceronte nos terá sob sua proteção.

      O secretário, pálido, caíra sentado em sua poltrona, incapaz de dizer uma palavra. O prefeito parecia muito seguro de si, e olhava com reverência para o rinoceronte do lado de fora. O sacristão, por sua vez, voltou caminhando tranquilo para sua igrejinha, feliz por ter finalmente conseguido sua reforma. Ela ficaria linda, limpa e agradável, e ele já conseguia imaginar as pessoas voltando a frequentá-la, dedicando suas orações ao... Rinoceronte.

      - São apenas nomes, no fim das contas – ele riu consigo mesmo.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Um rinoceronte" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.