Um rinoceronte escrita por Lorita de M


Capítulo 5
Os rinocerontes




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Em uma semana, o que antes fora uma praça tinha sido completamente transformado num templo para a nova divindade da cidadela. Cada um contribuíra como pudera, todos assombrados e honrados pelo fato de ter sido a sua cidadela a escolhida para tão majestosa aparição. Pela manhã, adultos, crianças, e idosos passavam no templo para deixar flores – a floricultura de Maria prosperava - ou algo que o Rinoceronte pudesse comer. Onde antes havia a fonte quebrada, foi construída uma bizarra estátua em miniatura do Rinoceronte. No pavilhão da prefeitura, uma das janelas havia sido completamente substituída por um belíssimo mosaico que representava o Rinoceronte. A igrejinha estava sendo bastante frequentada, e às imagens que já havia o sacristão tinha adicionado a de um Rinoceronte pequenino. Pouco a pouco, as pessoas começaram a se esquecer de como era a vida antes da chegada da magnífica criatura. O animal, por sua vez, habitava tranquilamente a praça que se tornara seu lar, comia tranquilamente as comidas que lhe eram oferecidas, sem fazer a menor ideia do que sua presença ali representava para todas aquelas pessoas.

      Com um mês tendo passado depois do fatídico dia da chegada do Rinoceronte, instituiu-se uma celebração oficial do Rinoceronte, uma espécie de baile que havia de acontecer em sua praça-templo. Entardecia e quase todos os cidadãos começavam a se aglomerar por ali, vestidos com suas melhores roupas, alegres. O prefeito, diante do espelho do banheiro de seu gabinete, ajustava a gravata, sorridente. Sua vida não podia estar melhor. Seu secretário o agradava à porta do banheiro, também sorrindo.

      - Grande dia, senhor prefeito. – ele disse.

      - Grande dia. – concordou o prefeito. Os dois desceram juntos as escadarias do prédio da prefeitura e entrando na praça subiram em uma pequena estrutura que havia sido construída para discursos. Todos aplaudiram, animados. O prefeito pigarreou, aprumou os bigodes e começou seu discurso.

      - Meus queridos, meus amados concidadãos. Se estamos aqui hoje, nesse dia iluminado e feliz, é para celebrar não a mim, não a nós, mas a essa majestosa criatura que nos agracia com suas bênçãos, proteção e presença, hoje a um mês: O Rinoceronte!

      Todos aplaudiram. Ele prosseguiu.

      - O que celebramos aqui hoje é um Rinoceronte. É a prosperidade, a grandeza, a união. É tudo o que queremos para a nossa cidadela, é tudo que podemos como cidadela. Estamos unidos aqui porque hoje há um mês a vida de todos nós mudou para melhor. Vamos hoje festejar, brindar, e dançar àquele que representa para nós tudo o que há de esperança, de beleza, de...

      O discurso do prefeito foi interrompido por um enorme estrondo. Todos olharam ao redor, assustados. O prefeito sorriu nervosamente e prosseguiu.

      - Tudo o que há de esperança, de beleza, de...

      Um novo estrondo. A esse ponto, todos já estavam dispersos e procurando a fonte do barulho.

      - O que está acontecendo? – o prefeito sussurrou, irritado, para o secretário.

      - Eu... Eu não tenho certeza, senhor prefeito.

      - Poderia alguém estar tentando sabotar a celebração? Não vejo porque, já que o Rinoceronte só fez melhorar a vida de todos!

      Os estrondos eram agora mais contínuos. Chegavam a assemelhar-se a... A passos. O prefeito subitamente lembrou-se da outra vez que tinha escutado um barulho parecido. Olhou para o Rinoceronte, mas ele estava completamente imóvel e tranquilo, como sempre.

      - Não é possível – murmurou para si mesmo, abrindo caminho por entre a multidão – Não é possível, não é possível, não é possível!

      O secretário procurava acompanhar seus passos, sem entender direito o que o prefeito pretendia e um pouco temeroso de se aproximar do que quer que estivesse gerando aqueles estrondos. Quando mais andavam, mais alto o barulho ficava. Logo o prefeito e seu secretário estavam correndo na direção da Avenida Central. Ficava cada vez mais claro que era de lá que vinha o som.

      - Não pode ser, secretário, não faz sentido – repetia o prefeito, cada vez mais aflito.

      - O que não faz sentido, senhor prefeito? – perguntou o secretário.

      Foi quando o viram. Imenso, magnífico, gigantesco. O segundo rinoceronte. Embasbacados, não conseguiam nem se mover diante do caminhar tranquilo da criatura, da segunda criatura. Atravessava toda a Avenida Central, andando na direção da praça-templo, e parecia não notar toda aquela gente correndo para os lados e encarando-o estupefata. O secretário olhou do rinoceronte para o prefeito, do prefeito para o rinoceronte, esperando qualquer reação por parte de qualquer um. Mas nada acontecia afora a tranquila caminhada do animal. O prefeito voltou-se para seu secretário lentamente, e disse num tom baixo e rápido:

      - Quero ver o sacristão imediatamente!

      O secretário assentiu e correu sem parar até a igrejinha. O sacristão tranquilamente exercia sua tão típica ocupação, varrer de pouco em pouco cada banco, cada imagem. Ao notar o secretário, sorriu. Até que percebeu a agitação do outro.

      - O que há, senhor secretário? O senhor parece cansado. Deseja um copo d’água, sentar-se um pouco?

      - O senhor prefeito deseja vê-lo imediatamente! Preciso que venha comigo!

      O velho arregalou os olhos, assustado. Apoiou a vassoura numa parede e alisou o cabelo. Sorriu, claramente desconfortável e andou devagar até os fundos da igrejinha.

      - Mas é claro – disse, lentamente – Vou apenas trocar os sapatos para não machucar os pés na caminhada.

      Trocou um pé de cada vez sob o olhar intenso do secretário, passando constantemente a mão no cabelo. O que poderia ser? O prefeito não teria gostado da reforma? Algo acontecera no templo? O velho não conseguia imaginar o que poderia ter feito de errado. Levantou-se e seguiu o secretário. Seguiam pela Avenida Central, e parecia haver bastante movimentação. Ele imaginou que fosse por causa do tal festival que o prefeito queria fazer naquele dia. “Talvez por isso estejam me chamando” pensou consigo mesmo “Talvez não seja nada demais, e ele só queira que eu esteja lá para as celebrações”. Animou-se um pouco depois desse pensamento, mas ainda tinha medo.

      Entretanto, ao chegarem na praça central, sentiu que o sangue lhe fugia do rosto e as pernas enfraqueciam. No centro da praça-templo viu, como esperava, um enorme rinoceronte. Ao lado dele, pisando em algumas casinhas e estabelecimentos já que a praça era muito pequena para dois deles, havia um segundo rinoceronte. O sacristão seguiu em silêncio, subiu os degraus da prefeitura em silêncio, até que chegaram no pavilhão, onde o prefeito já havia chegado e os esperava caminhando de um lado para o outro enquanto enrolava o bigode nos dedos. Deteve-se ao ver o sacristão e caminhou lentamente na sua direção.

      - O senhor faria a gentileza de me explicar – ele disse, e seu tom foi subindo – O que está fazendo um segundo rinoceronte na minha praça!

      O sacristão não respondeu, assustado.

      - Vai dizer o quê? Que é dessa vez um anjo? Um santo? Responda! Ou vai me dizer que é apenas o que é, um maldito rinoceronte! Dois! Dois malditos rinocerontes!

      O sacristão deu um passo para trás e o secretário tentou acalmar o prefeito, que o repeliu.

      - O senhor tem ideia do caos que está instaurado lá embaixo, sacristão? O senhor tem ideia do que as pessoas vão pensar quando imaginarem que não há divindade nenhuma nessa praça, e sim dois rinocerontes que vieram do nada? Tem? Tem alguma ideia?

      - Senhor prefeito, os sinais apontavam...

      - Que sinais? Que raio de sinais? Um vento naquela igrejinha velha? O sol batendo num sino? O senhor tomando um café da manhã reforçado e portanto com uma disposição minimamente maior para subir as escadas? Como tudo isso é estúpido! Como sou estúpido!

      O prefeito caiu sentado na poltrona. O secretário se aproximou temerosamente. O sacristão não ousava tirar os olhos do chão e alisava o cabelo e o rosto com a mão trêmula.

      - O que vou fazer? – perguntou o prefeito ao secretário, como uma criança desorientada.

      - Vamos resolver a situação. – disse o secretário, resoluto – Vamos fazer um pronunciamento, transportar as pessoas que moram nas proximidades da praça, construir um cercado em volta dos dois rinocerontes. E retomar a investigação de onde a deixamos.

      - Já entrevistamos todos!

      - Entrevistaremos mais uma vez! Investigaremos cada canto dessa cidadela, até descobrir de onde vieram esses malditos rinocerontes!

      O prefeito assentiu, sentindo-se derrotado. Lá fora, os dois rinocerontes estavam tranquilamente olhando um para o outro.


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