Infravermelho escrita por supercritico


Capítulo 4
A Medida de Segurança (pt.1)




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— Liz - Myranda disse, enquanto esfregava os olhos e levantava - Achei que fosse...
— Quem? - Liz, a sua amiga de cabelos cacheados e olhos verdes, perguntou.
— Ah, nada - Myranda pôs-se de pé, bocejando e levantando os braços em um espreguiço longo. - Esses sonhos são tão reais.
A garota tentou disfarçar o que disse, mas Liz não parecia ter caído naquela.
— Você demorou ontem a noite. Ouvi barulhos lá fora. Você viu o que foi?
— Não, eu não vi nada - mentiu. A noite passada veio a tona em vários flashes, como uma foto borrada ou um espelho embaçado.
— Queria ir lá ter ver, mas não queria sair do quarto. Felícia estava mau humorada quando nos colocou para dormir.
— Ela não notou que eu estava fora?
— Tive que mentir, dizer que estava no banheiro.
— Obrigado - Myranda disse.
— Mas aconteceu alguma coisa, né? - ela conseguiu ver nos olhos de Myranda que algo estava errado. - Você precisa me contar.
— Eu não... - ela hesitou. Não queria contar que tinha saído do orfanato. Mesmo que só tivesse atravessado a rua ela poderia incitar a mente de Liz, que tantas vezes havia planejado em fugir dali. Elas tinham a mesma idade, dezessete anos, e desde sempre estavam juntas, como irmãs. Liz era uma humana intacta, e por um infortúnio acabou indo parar no orfanato. Ela sempre contava para Myranda o quanto queria sair dali, tentar viver na Zona Violeta.
— Poderíamos arranjar um emprego qualquer e morar em um apartamento pequeno - ela sussurrava antes de dormir.
— Sabe o que acontece com quem sai. Acabam vivendo na rua e quando tentam ir para a Zona Violeta acabam presos - Myranda repreendia. - Principalmente Infravermelhos. São os maiores alvos, esqueceu?
E então Liz se calava e elas continuavam ali, sem tentar nada. Apesar disso Myranda sempre ia para o terraço do prédio, sempre teve curiosidade em relação a Zona Violeta. Ela também queria ir para o outro lado, mas repudiava esse desejo, temendo nutrir as esperanças de Liz com algo perigoso. Não podia se arriscar de novo, pelo menos não com Liz ao seu lado.
— Depois eu te conto - Myranda disse, finalmente.
— Tudo bem. Sabe que hoje vamos fazer a tal "excursão", não é?
Oh. A visita ao Centro de Pesquisa. Ela tinha esquecido totalmente.
— Quando vamos sair?
— Em meia hora.
— Ah, droga - ela disse, esfregando o rosto.
— Vai tomar um banho, eu te encontro lá embaixo.
Ela foi para o banheiro e tomou uma ducha. A água fria criava uma leve névoa ao entrar em contato com sua pele e em pouco tempo todo o banheiro parecia uma sauna. Secou-se rapidamente e voltou para o quarto. Myranda correu para o seu armário e procurou roupas adequadas para sair num barco num dia meio nublado. Vestiu a única calça jeans que tinha com uma camiseta de manga longa branca. As roupas que ganhavam vinham da Zona Violeta nas poucas vezes em que o governo se dispunha a leva-las para o outro lado. E, apesar de serem usadas, quase sempre tinham um bom estado. Myranda não entendia porque se desfaziam de roupas tão bonitas e de aparência cara, mas ela não reclamava. Pelo menos as garotas de lá tinham um bom estilo.
Prendeu os cabelos brancos em um rabo de cavalo, deixando a nuca claríssima exposta. Da janela viu que a luz do sol atravessava as nuvens em grandes fachos acinzentados. Era o bastante para a fazer pegar o seu óculos de sol na gaveta da cômoda. Seus olhos ficavam ultra sensíveis se expostos a raios solares muito fortes e mesmo com tão pouco ela ainda se preocupava. Da última vez que saiu sem eles sua cabeça quase explodiu de dor e teve que passar dias na enfermaria, sob o olhar fuzilante da sua supervisora. Pelo menos com eles podia esconder as pupilas vermelhas e os pontos escuros que insistiam em aparecer sob os cílios.
Saiu do quarto e foi para o andar debaixo, onde ficava o refeitório. Estava lotado. Várias crianças de todas as idades estava espalhadas entre mesas e cadeiras, algumas comendo, outras olhando pela janela e outras simplesmente cochilando em um canto. Ela foi direto para o balcão onde entregavam a comida em bandejas. Não olhou para os lados e nem percebeu que Liz estava de volta, pegando uma bandeja cheia.
Elas sentaram e comeram em silêncio, observando os outros passarem e as crianças correndo. Felícia, a senhora que comandava o local, estava na entrada do refeitório, conversando com um Ultravioleta de expressão séria. Myranda sabia que era um deles, pois a maioria deles usavam terno branco com calças brancas e sapatos brancos. Apenas uma gravata violeta pontuava cor.
Myranda sentiu certo desconforto com a presença do homem. Na verdade, ela sempre sentia isso quando faziam as visitas semanais. Tinham poderes mentais e eram, consequentemente, muito poderosos. Podiam entrar na sua cabeça, controlar os seus sentimentos ou sobrecarregá-los, podiam prever eventos futuros, fazer objetos levitarem ou sumirem com ilusões. Eles podiam exercer controle sobre qualquer ser vivo, ou basicamente, poder para controlar o mundo. E era o que faziam.
— Ele vai estar lá com a gente? - pergunta Myranda, apontando com a colher para o Ultravioleta.
— Provavelmente sim. E lá deve ter muitos mais deles.
— Por que estão nos levando para lá? Eles nos odeiam.
Myranda dizia especialmente os Infravermelhos. Dava para perceber o olhar de nojo quando passavam perto de um, nem mesmo tentavam esconder. Myranda pensou se quando alguém nasce Ultravioleta já vem com uma pré disposição para odiar Infravermelhos. Provavelmente sim.
— Vão nos vacinar, é uma medida que tomaram há alguns meses atrás.
— E desde quando eles se importam com a gente?
— Não querem que doenças se espalhem para a Zona Violeta.
— Ah, claro. Só estão pensando em si mesmos novamente.
— É só isso que sabem fazer - disse Liz, bebendo o suco do copo plástico. - Mas lá tem uma espécie de museu, vamos fazer um passeio por lá também.
Myranda bufou, revirando os olhos.
— Que baboseira - disse.
— Melhor do que ficar todo tempo aqui dentro.
— Parece estar se divertindo muito com isso.
— Na verdade não, detesto agulhas - ela pousou o copo na mesa e sorriu como sempre fazia. - Talvez se imaginarmos que nosso destino é uma ilha paradisíaca fica tudo melhor.
— Você já viu aquela ilha? Parece uma pedra flutuante cheia de lixo.
— Lixo?
— É, despejam tudo o que não precisam no rio.
— Que horror.
— Pois é - Myranda disse, bebendo o último gole do seu suco. O gosto artificial de uva ficou na sua boca por um tempo.
Após terminar de comer, Myranda colocou a bandeja de volta no balcão e voltou para o centro do refeitório, onde filas se formavam e membros que ministravam o orfanato estavam dando um cartão de identificação enorme preso a uma fita.
— Que horrível, vamos ter que usar essas coisas no pescoço - disse Liz, com uma careta. Ela segurou o seu cabelo e o torceu um pouco para diminuir o volume dos cachos.
Elas esperaram na fila até a sua vez. Felícia estava anotando os nomes no cartão e tentava ao máximo não exibir sua expressão azeda, afinal havia um Ultravioleta ali e ela precisava fingir que estava tudo bem. Myranda parou na sua frente e Felícia levantou o olhar para ela.
— Qual o seu nome mesmo querida? - ela perguntou, em sua melhor atuação de boazinha.
— Myranda Castler. Myranda com ípsilon.
— Umhum - murmurou, rabiscando o nome como se estivesse dando um autógrafo. - Pegue.
Myranda pegou o cartão e obrigou a colocar no pescoço, tentando ignorar o quanto aquilo estava ridicularmente grande. Depois, seguiu a fila para o lado de fora, onde um ônibus os esperavam e um mar de crianças e pré-adolescentes já se formava. Ela era uma das mais velhas e era estranho, como se estivesse no lugar errado.
Esperou Liz e juntas subiram no veículo. Myranda pegou o assento ao lado da janela.
— Eu queria ficar ai - murmurou Liz.
— Sinto muito.
— Não importa, da balsa vou ver tudo mesmo.
— Só água e lixo.
— E a cidade. - Ela se inclinou para a janela, observando o rio correr do lado de fora. - Sabe, quando atracarmos lá na ilha vai ser o mais perto que já estivemos da Zona Violeta.
— Verdade - disse Myranda, tentando não voltar aquele assunto novamente. Myranda observou o local onde esteve na noite passada. A cerca do outro lado e a esquina do prédio de onde correu. Tudo parecia menos ameaçador e a lembrança era como um sonho distante e nebuloso.
Quando todos estavam no ônibus as portas se fecharam e o motor fez um ronco. Myranda encarou um estranho ponto no meio da rua. Uma mancha vermelha, quase imperceptível, que seguia em linha em direção á cerca. Era o sangue de Lud, já ressecado pelos ventos gelados. Ela prendeu a respiração e torceu para que ninguém mais olhasse para fora.
Um segundo depois o ônibus entrou em movimento e eles seguiram em direção as docas.


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