Shard of Lies escrita por XIII


Capítulo 35
Osteofagia




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Passos em um piso de madeira. Essa é a casa da meu bisavô, que esteve na família por mais de um século. Um bastião dos Crown, lar das magias que nos moldaram por quatro gerações. Minha mãe não está em lugar nenhum, e os passos intermináveis se aproximam, um milímetro por infinitésimo de segundo, mas com certeza se aproximando. Quando o homem se aproximou, já não se parecia com ninguém, mas eu já o havia visto. Tinha aquele ar de quem sabia o que estava fazendo.

— Você precisa ser forte agora, Abigail - olhamos para a janela, que eu nem sabia que estava ali. Nossa casa, nossa antiga casa, destruída até as cinzas. Eu e ele pisávamos em ruínas, num piso de madeira que já era carvão. Lá fora, a Primeira Bruxa extraía o meu sangue com uma expressão assustadora, que só eu via. Tinham outras bruxas também: Senhoras Miuzand e Olga, as duas seguravam o choro, enquanto Elena me encarava com uma falsa bravura. As outras bruxas pareciam apenas incomodadas. E raízes começaram a emergir da terra, fora da janela. Raízes escuras que atravessavam as paredes e que tinham um cheiro pútrido, nojento, detestável. Se arrastavam pelos corredores como se fossem garras, fuçando e xeretando. O homem deixou passar um sorriso cansado e puxou suas adagas da [bainha]. Ele cortou e cortou, não deixando que se aproximassem.

— Isso é culpa minha. Mas eu não podia deixar que Alistair vencesse - continuei ouvindo, mas me virei pra enfrentar minha própria parcela de escuridão - Delula te transformará numa delas - era isso, então. As garras enormes que se retorciam tentavam me arrastar pra perto da Bruxa.

— E se eu impedir? - disse, enquanto liberava minha magia sem hesitar, espantando a escuridão. Outro homem surgiu nos corredores, encarando a mim e ao homem que falava comigo.

— Você estaria morta - ele não estava preocupado. Parecia até animado - Acredito que você não queira simplesmente morrer, não me faria esse favor.

— Ora ora, você até que não demorou muito - o homem das adagas estava atento ao outro. Completamente preparado pra atacar, enquanto o outro estava envolvido nas garras, confortável, como se estivesse em casa.

— Sua mãe certamente me atrasou, Abigail. Certamente, a minha neta não era uma maga comum. Onde ela está? - Alistair Crown concentrava a escuridão próxima a ele. Delula já tinha derramado todo o meu sangue, deixando a banheira vermelha. A velha mansão do meu bisavô se desmanchava ainda mais, deixando restar apenas poeira e a velha janela. O céu também dava lugar a outro firmamento enquanto a mansão ia embora. Delula tirava meu corpo despido da banheira. Eu quis até lá, mas não consegui. O homem das adagas se aproximou de mim, sem tirar os olhos de Alistair, sem se despreparar.

— O truque que ela fez com o garoto deu certo mesmo, não é? Você realmente não tem memória de quando ela te fragmentou - enquanto o homem das adagas falava, ele ia ganhando confiança, enquanto Alistair ia ficando mais e mais irritado. 

— O garoto? Está falando do receptáculo da igreja? O que ela criança tem a ver com Aelin Crown?

Eu o reconheci pela gargalhada. Aquele divertimento puro de estar absolutamente no controle da situação. Meu peão, Vincent.

— É realmente impressionante que você não reconheça os traços da sua própria magia, Alistair Crown. Não percebeu o cheiro que a sua incompletude tem? Ela cheira à escuridão, mas não exatamente à sua, não é? Não percebe? Você tá confortável nos dedinhos dela, até agora - Alistair encarou a própria alma. A alma que residia o meu corpo. O homem da mansão - Você foi enganado como um peão, indo pra onde Delula DeWrigg queria. Até que sua netinha descobriu a sua magia, porque ela mesma não era maga. Aelin Crown nunca sentou na cadeira dos magos, Alistair. Você sabe que os talentos dela estavam em outra arcania, mas achou que seria bruxaria, então tratou de reatar seus laços com Delula e deixar a educação de Aelin por conta dela.

 

Eu não entendia o que estava acontecendo. Delula DeWrigg tentava invadir meu corpo e alma. Eu abrigava Alistair Crown em meu corpo, e ele me consumia, segundo a segundo, tentando recuperar seu próprio poder.

E minha mãe não era uma maga. De todas as pessoas, Vincent Grinn tinha uma pista de seu paradeiro. Minha mãe podia estar viva. Aelin Crown estava viva.

— Por que Oswald Cross estava com um pedaço do seu Estilhaço de Mentira, Alistair? E por que ele queria que eu me encontrasse com Oliver Saint? Por que duas coisas que deveriam estar com Aelin Crown estavam com esses dois homens? E principalmente, quem é Ivan Saint, que abrigou sua alma desde a infância?

 

O poder da Consciência de Alistair Crown é o de recuperar os poderes dele. Por isso eu estava sentindo a minha magia fraca, por isso eu não consegui ser útil contra o Vincent no convento. Mas a Consciência não partiu de mim. Ela veio depois que eu ajudei Ivan Saint contra aquela… maldição.

A Sombra de Cartola estava na criança, mas aquilo era nada mais, nada menos, que a alma de Alistair Crown. Por quê? Porque a criança teria a alma de Alistair Crown? 

— Você esteve dormente, apenas consumindo as forças da criança, enquanto a cabeça dela era incapaz de suportar a sua Consciência. Delula deve ter feito um trabalho excelente, escondendo o verdadeiro poder dela e separando o seu, apenas para reconquistá-lo em qualquer ponto de sua vida imortal. Você sabe o que ela vem fazendo com a escuridão que vocês acharam juntos?

 

As garras de Delula devastaram o espaço enquanto ela purificava meu corpo, exposto num altar para que todas as bruxas participassem da minha vergonha. Eu não consegui desviar o olhar. Meu corpo ensanguentado enquanto a Primeira Bruxa o preparava com quaisquer sais necessários, enquanto secretamente procurava a minha alma para que se desfizesse dela. Para poder conseguir os poderes de Alistair Crown só pra ela.

— Ela vai pegar você também, Vincent! - nós dois carregávamos peças distintas do Estilhaço de Mentira, afinal. Era perigoso demais ele estar por aqui também.

— Ela ainda não pode - ele saiu da defensiva - porque você não vai deixar. E porque isso aqui é só um fragmento bem pequeno que eu deixei pra trás, quando Miuzand te atacou. Foi mal por aquilo, mas Delula daria a volta em todos nós se eu não fizesse alguma coisa - acho que era um pedido de desculpas sincero, apesar de nosso histórico conturbado. E eu não esperava que ele seria capaz de usar magias.

— Você dominou a Sombra? - fiquei ao lado dele, deixando Alistair desconfortável. 

— Só o suficiente. Só por um tempo - ele ainda tinha aquele sorriso cansado. Meu bisavô emanou uma magia e uma bruxaria singulares.

— Está me dizendo que Delula me traiu? - ele definitivamente estava conturbado - Está me dizendo que eu fui separado dos meus poderes por causa dela?

— Pelo Rei, vocês Crown são lerdos. O Estilhaço de Mentira é uma maldição hereditária criada por Alistair Crown e Delula DeWrigg. Ele assumiu o lugar do seu avô depois que a mago-bruxaria o adoeceu, então Arthur Crown foi alvo do Estilhaço de Mentira.

— Mas eu não tinha finalizado ainda. Eu usei os anos restantes de Arthur Crown para aperfeiçoar a mago-bruxaria, e então… - eu não acredito. Meu bisavô tratando seu filho e sua neta como… eu nem sei. Como matéria-prima. Como um projeto num laboratório. Como lixo pra ser descartado - usei o Estilhaço de Mentira, muito aprimorado, em Aelin Crown. Mas por que eu não estou no corpo de Aelin Crown. Por que eu não lembro dela? Por que eu estou sem meus poderes no corpo de Abigail? - ele falou como se eu nem estivesse ali. Lancei minha magia nele, e o choque entre a minha magia e a que ele usou em resposta gerou uma fricção que atraiu prontamente a atenção de Delula. Vincent estalou a língua. Alistair continuou a falar - Por que eu não consigo me lembrar?!

Delula começou a transferir o sangue dela pro meu corpo. Senti um puxão suave em direção da janela, depois outro, mais forte. Vi uma mulher, muito mais jovem e bela que a Primeira Bruxa, mas na mesma cadeira de rodas. Os cabelos brancos e desgrenhados da Bruxa eram substituídos por longas tranças pretas. Alistair a percebeu também e, em resposta, usou sua magia para impedir que eu fosse puxada.

— Porque junto de Delula, Aelin Crown te passou a perna! Elas duas dividiram o seu estilhaço em duas partes! Porque Aelin Crown teve que sacrificar o próprio filho, Avin Crown, pra proteger a filha preferida de você, Alistair Crown! Porque você subestimou sua própria descendência!

Parei de escutar quando ele disse que a minha mãe teve outro filho.

— Mentiroso! Eu aprimorei a mago-bruxaria! Eu derrubarei Rei Valvarin!

— Seu imbecil! Ela nem fala de você pras bruxas! Você é um plano superado, Alistair Crown! - Vincent avançou nele, enquanto eu ficava ali, absorvendo as informações que eles cuspiam - e mesmo assim… - ele cravou a adaga no peito do mago, sabendo que mesmo isso não o mataria - E mesmo assim eu tenho que salvar um merda como você, pra Delula não te absorver até a última gota, pelo bem dela!

Eu estava sendo puxada, muito mais forte dessa vez. Pela janela, eu via a Bruxa moer ossos com um martelo cerimonial e dar para o meu corpo comer, a minha primeira Osteofagia. Senti minha alma se fixar aos meus ossos, e eu não conseguia parar de sentir que eu estava saindo daquele espaço inconsciente. As garras de Delula não conseguiam perceber Vincent, mesmo quando Alistair gritava pra receber a escuridão. Eu senti como se estivesse me afogando, só que ao contrário. A mansão estava queimada quando eu a deixei, e as janelas, quebradas. Ainda assim, eu ouvi as palavras dele. Engraçado como nós nos despedimos assim, mais uma vez.


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