Shard of Lies escrita por XIII


Capítulo 22
As Sombras




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Oswald Cross fez muita força pra arrebentar aquelas cordas, mas isso também significa que quem o amarrou naquele mastro fez um trabalho muito porco. A maior pergunta é: quem conseguiria amarrá-lo ali sem que ninguém notasse. Tá, isso é pergunta pra outro momento. Desembainhei a Espada de Bruxa e a girei entre os dedos. É uma espada leve, que deveria ser usada apenas em bruxarias. Bem, exorcizar um corpo é uma bruxaria. As pessoas já estavam todas correndo da praça e só eu fiquei, basicamente. Ótimo. É sempre bom enfrentar mortos amaldiçoados por bruxaria pesada logo pela manhã, de ressaca. As cordas finalmente arrebentaram e o que sobrou do mago se espatifou no chão, espalhando um sangue preto e podre e quebrando uns vinte ossos. Meu maior desejo é que isso tenha sido o suficiente. Queria muito poder sair daqui e vomitar, mas infelizmente isso não paga as contas. As pessoas bem que podiam gritar mais baixo. Ou terminar de sair daqui. Tem nenhuma outra bruxa por aqui não? Merda, o morto tá olhando pra mim. E levantando. Ao meu redor, tem um círculo de pessoas que aplicaram muito mal as próprias curiosidades. Ótimo, então é melhor terminar isso rápido.

Ele partiu pra cima de mim com uma velocidade desengonçada. A perna direita quebrou com a queda. Os dois braços quebrados e as costelas infelizmente não me servem de nada. Se ele se aproximar muito, vai me agarrar de qualquer maneira. Mortos, não é não? Deixei minha espada em um ângulo reto entre eu e ele, preparando-me para aparar os golpes. Não é sábio medir forças contra um morto porque, na verdade, eu não o estou enfrentando, e sim quem o está controlando, coisa que eu já vou descobrir, só exorcizar esse babaca. Pelo menos, Oswald Cross não é o melhor lutador do mundo. Bloqueei as duas braçadas que ele tentou me acertar que nem um animal e chutei a cabeça dele duas vezes. Tenta fazer isso de ressaca. Eu sou muito foda. Infelizmente a energia que se concentrou no estômago dele não estava lá muito amigável. Ele se afastou pra vomitar e mirar bem na minha cabeça. Esquivar de uma coisa dessas é fácil, mas é só olhar de relance pra trás pra perceber o quanto isso seria uma péssima ideia. Cortar a garganta dele era uma opção; não, a energia ia explodir e eu iria pelos ares. Eu não quero morrer e voltar com uma cicatriz horrível. Eu posso não ser a mulher mais maravilhosa do mundo, mas não quero ter o rosto desfigurado pra sempre. Já chegou na garganta. Parti pra cima dele e pulei, chutando a nuca dele, forçando-o a olhar pra baixo. Ele tentou se virar, mas enquanto eu caía, segurei-o pela nuca e não o deixei sair do lugar.

Fogo. O desgraçado cuspiu fogo. Que tipo de bruxa brincaria com um troço desses? Todo mundo sabe que essa é a única coisa, a única coisa que bruxa tem medo de verdade. Tem uma bruxa fazendo um morto cuspir fogo. Isso não é coisa que se faça e, principalmente, perigoso demais. Forte demais. Se pelo menos eu tivesse as minhas manoplas, isso seria muito mais fácil de controlar. Mas que merda. Tenho que exorcizar Oswald Cross logo. Agora ele está olhando pra mim com muito mais raiva. Atravessar o coração vai ser difícil, mas decapitar será tão difícil quanto, o risco é até maior do que eu pensava. Dependendo da bruxa, ela simplesmente vai botar força o bastante pra eu não conseguir nenhuma das coisas. Se eu não localizá-la antes mesmo de exorcizar, essa luta vai acabar me matando de verdade.

Não vou disputar força com ele de jeito nenhum. Que bom que ele quebrou uns ossos ao cair. Na verdade, talvez ele tenha sido preso com tanta força que, pra soltar, a bruxa responsável não pudesse proteger os ossos. Nesse caso, peço desculpas ao amarrador. Se não fosse por ele, acho que eu não estaria mais por aqui. Me afastei do corpo e me mantive em posição defensiva mais uma vez. Ele estava se recuperando. Das bruxas que eu conheço, só Delula é forte assim, mas não existe razão pra ela ser a responsável por isso. O que a Primeira Bruxa ganha atacando Baronesa dessa forma? E ela não usaria fogo. Uma bruxa atacando outra com fogo é do mais baixo nível. Ele sacudiu a perna direita. Em perfeito estado. Mas que merda. Pelo menos, eu estou dando esse trabalho pra uma bruxa tão forte quanto Delula. Eu deveria receber um aumento. Ele correu pra cima de mim e eu respondi fazendo o mesmo. Tentou me acertar uma braçada com o lado direito, mas eu deslizei pra baixo dele, me esforçando o máximo que eu pude pra acertar as costas dele. Deu certo! Ou quase. Onde deveria estar espirrando sangue, saiu só uma fumaça preta mixuruca. Uma proteção e das boas. Oswald virou-se e eu senti uma onda de sua magia me empurrando. A bruxaria empregada naquele corpo era quase palpável. Quem quer que fosse, estava ficando cansado e queria acabar com isso logo. E estava conseguindo, porque eu fui arremessada como uma boneca pro canto da plateia. Aquela energia no estômago de novo, só que muito mais forte. Dessa vez, eu estava longe demais e muito fora do equilíbrio, minha cabeça doía demais. Ele cuspiu uma onda de fogo que trataria de acertar a mim e à platéia, que começou a se dispersar, em pânico. Mas que merda.

 

Morrer por fogo é uma tragédia. Nós, bruxas, somos condicionadas à imortalidade. Nossas almas e corpos são sincronizados de uma maneira única. Dessa forma, quando nossos corpos morrem, nossas almas retornam a ele e o recuperam, dependendo, é claro, do ferimento. Assim, num breve momento do retorno da consciência, nós temos a opção de deixar nossas cascas mortais e transmigrar pro próximo mundo. É assim, inclusive, que evitamos a velhice eterna. Delula é única bruxa conhecida que não fez a transmigração depois da velhice, mas ela tem os próprios segredos. A filha dela, Morganna, fez a transmigração quando Alistair Crown ainda era um moleque, mas ela também perdeu o corpo de uma forma terrível. Voltando ao assunto: nosso corpo precisa estar minimamente montável para que possamos recobrar a consciência. Mesmo que nosso cérebro seja esmigalhado, ainda dá pra amontoar os pedaços com uma pá, só pra bruxa poder fazer a transmigração. Não dá pra juntar as cinzas, entende? Já conheci bruxas que foram cremadas propositalmente e, obviamente, essas aí puderam transmigrar corretamente, mas e as bruxas que foram queimadas pelos druidas? E as bruxas mortas nos incêndios em Spellborn? E as bruxas mortas em praças públicas por zumbis amaldiçoados por outras bruxas mal-intencionadas. Bem, esse último grupo eu não conheço, porque o fogo nunca chegou em mim ou nas pessoas ali presentes. Ele estava crepitando a alguns centímetros de mim, sem conseguir avançar. Magia. Olhei ao meu redor, e lá estava ela: uma loiraça, vestida de vermelho, usando a sua força pra salvar a minha vida. Uma coisa dessas faz o seu coração bater mais forte.

 

Eu fiquei alguns instantes contemplando aquela belezura, mas eu tinha trabalho a fazer. Me apoiei na espada para levantar e parti pra cima das chamas, gritando:

— Disperse o fogo! - a vi fazendo um “x” com os braços e os separando com força, fazendo um caminho abrir no fogo. Requer muita coragem andar numa passagem dessas, mas lá fui eu, como a grande heroína da história. Estiquei meu braço e espetei o pescoço de Oswald com a espada. Não foi muito fundo, mas o suficiente pra fazer aquela onda de fogo apagar.

— Você, quem é? - perguntava a loiraça. Ela não exibia qualquer sinal de cansaço, mesmo tento contido um poder como aquele. Era formidável enquanto corria pra cercar o mortol.

— Elena Hartwill, Clã das Bruxas. E você? - eu espero que essa frase não tenha sido maculada pela dor de cabeça, pela tontura ou pelo pânico mortal pelo qual eu acabei de passar. Não queria passar a impressão errada.

— Abigail - ela hesitou por um momento - Crown. Abigail Crown.

— Crown!? De Alistair Crown? - meu rei, essa mulher era uma estrela, uma celebridade. Eu gostaria de só ter tomado um banho. Ela sorriu com certo pesar.

— É, daí mesmo. Olhe ali - eu nem queria, pra falar a verdade, mas olhar pra Abigail não paga as contas. Mas era bom notar que os braços de Oswald Cross estavam se recuperando. Ele estalou os pulsos. Como as costelas estavam protegendo órgãos mortos e Oswald não sentiria dor mesmo, é certo dizer que ele estava completamente recuperado

— Você faz a linha de frente? - ela me perguntou. Eu assenti com a cabeça e dei dois passos na direção do mago morto. Oswald colocou uma das mãos para dentro do paletó, procurando alguma coisa. Retirou a mão sem nada e pareceu ter resmungado alguma coisa. Perturbador. Corri empunhando a espada e Oswald não parecia interessado no exorcismo. Tentei cortá-lo, mas ele ergueu uma barreira que fez minha espada bater no ar e voltar.

— Corte de novo! - Abigail gritou lá atrás e lá fui eu. Dessa vez, surpreendentemente, a minha espada realmente o acertou, fazendo jorrar aquele sangue preto nojento. Oswald olhou para o ferimento e depois olhou para Abigail. Ele mirou o braço nela e eu senti a mesma energia que saía do estômago dele. Atravessei o antebraço dele com a espada e o torci. Abigail correu e pulou por cima de mim para desferir um golpe de magia pura. O braço dele foi rasgado terrivelmente. Ela aproveitou que ele ainda estava atordoado e conjurou um orbe e começou a liberar magia dele continuamente. Corri pelo lado e o cortei novamente. Era irritante não conseguir atravessá-lo de uma vez, mas a magia protetora dele era muito forte. Eu estava apenas bancando o suporte para a Abigail. 

— Onde está o Vincent, Oswald Cross? - ela continuou liberando a magia. Quando eu vi que ele cedeu, por um instante, atravessei a espada no peito dele, mas errei o coração. Droga, eu poderia tê-lo exorcizado ali mesmo. Ele segurou a minha mão.

— Crown, você de novo - ele disse, olhando para Abigail, mas a voz não era a dele. Eu nunca o ouvi falar antes, mas aquela não era a voz dele, eu tenho certeza - Eu senti a sua falta, Crown - e me arremessou mais uma vez, como se eu fosse uma boneca. Sinceramente, eu já estava cheia disso. Ele começou a andar na direção da Abigail e eu não sei aonde minha espada foi parar.

— Oswald Cross, não se engane. Não serei derrotada por você uma segunda vez - os cabelos de Abigail estavam começando a levitar, mas em contrapartida, uma sombra sinistra saía de Oswald. O mesmo poder que eu senti no beco onde Rodge fora assassinado.

— Venha, vamos completar o ritual, Crown - a sombra tinha um buraco que esticava um sorriso sinistro. Ele começou a pressionar Abigail, o orbe que ela segurava tremia no ar. Ela prendia a respiração para manter o controle e, para ser justa, feridas eram abertas no corpo de Oswald, fazendo sair o sangue preto. Era uma luta em pé de igualdade. Mas eu não estava nem aí. Se esse cadáver tinha algo a ver com o assassinato de Rodge, agora isso era uma questão pessoal. Eu sem senti quando o Plano dos Mortos começou a tomar minha visão, porque o corpo de Oswald Cross era tudo o que estava na minha mente. A ausência da minha manopla era uma questão a ser resolvida mais tarde. Saltei contra o cadáver, colocando minha mão nua no meio da cara dele.

— O que você fez com Rodge!? - o poder fluía livremente, para o azar da minha mão. Isso doeria por semanas.

— Ele fugiu dela… ele fugiu dela... - foi a resposta. Os joelhos dele cederam diante do poder do Plano dos Mortos, como se o próprio plano estivesse o chamando. Lá, eu senti o rastro. A corrupção no plano traçava uma linha reta, e eu vi uma bruxa. Era uma bruxa jovem, uma que eu nunca tinha visto. Não vestia nada, a não ser a sombra que cobria o seu corpo. Tinha os cabelos negros como a noite e uma cartola. Ela se levantou ao notar minha presença, saindo de seu trono, também feito de sombras.

— Não deveria ter ido tão longe, Elena Hartwill - e a bruxa me expulsou. Minha visão voltou ao normal enquanto minha conexão com o Plano dos Mortos era fechada. Era difícil manter o equilíbrio. Também era difícil manter a consciência. Minhas pernas falharam enquanto o corpo de Oswald Cross se levantou. Ele me olhou com uma crueldade que não estava presente antes, muito diferente da violência cega.

— Já interferiu demais, Elena - mais uma vez, eu não conseguiria desviar. Dava pra sentir as chamas que sairiam do braço dele, prontas para pulverizar a minha cabeça. Foi quando a minha espada atravessou o peito dele. O braço dele caiu, perdendo as forças. Oswald olhou para trás.

— Isso aqui é só um corpo, querida. Não pense que acabou. E digam para ele que não me provoque assim novamente.

— Dizer pra quem? - Abigail perguntou, sem largar a minha espada.

— Não perceberam? Ele fugiu de mim. E ainda fez isso. Vocês só estão me atrapalhando. - Oswald voltou a fazer força, mas era tarde para ele. Minha espada estava fincada em seu coração. Me levantei, colocando a minha mão em sua testa. Me concentrei e… pronto. O corpo relaxou. Morto, de verdade. 

— Mas de quem é que ele estava falando? - a maga perguntou, com o cenho franzido.

— Ela. Isso aqui não era Oswald Cross. Ela mesma disse que era só um corpo. Era só uma casca pra uma bruxaria forte demais. E eu não sei. Quem é que conseguiria erguer um mastro com o corpo de Oswald Cross sem ser notado?

— Ah. - ela bateu na testa, como se fosse óbvio. Levantou-se, olhando para todas as esquinas e janelas.

— O que foi? - se era uma pista levando ao assassino de Rodge, eu queria saber.

— Quem é que conseguiria fazer qualquer coisa bizarra em Baronesa sem ser notado?

— Eu realmente não sei. - eu só saio de casa pra trabalhar e beber.

— Eu fui muito idiota. Vincent Grinn ainda está aqui!

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E eu não posso dizer que, quando a Abigail finalmente percebeu, eu não tenha rido. Como é que alguém acharia que eu não tinha um plano, hein?


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