As Joias do Carrasco escrita por Jupiter vas Normandy


Capítulo 7
Recuperando as forças.


Notas iniciais do capítulo

Uou, menos de um mês e já atualizando? Pois é, milagre de férias!
Eu queria agradecer a quem ainda está lendo a história, mesmo depois do hiato surpresa de quase um ano. Principalmente ao Eu Voltei e a Juls, muito obrigada, gente. Os comentários de vocês me encheram de alegria :)
Eu mudei uma coisa ou outra na história, durante esse tempo. Vou informando as mudanças à medida que se tornarem importante. Nesse cap, eles mencionam cinco grandes famílias, não apenas quatro como antes. As grandes famílias de Aurora e seus membros que já apareceram são: Rower (Edward e Alessa), Magni (Tiberius e Catarina), Lafayette (Rowena e Evan), Montgomery (Lucius) e Vauxhall (o antigo Pretor, que ordenou a execução dos pais de Tiberius). Todas deveriam ter o mesmo prestígio, mas os Magni estavam em decadência pelos motivos do capítulo 3, e os Montgomery também não sã tãaao respeitados pelas outras quatro, mas isso veremos no futuro.
Boa Leitura ♥



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— Isso é tão estranho... — Astra murmurou para Tony, quando os Magni estavam na cozinha e não podiam ouvi-los. Tony não respondeu, mas concordava em parte. Sentar-se à mesa de uma das cinco grandes famílias para um almoço, como se fossem amigos, não era algo comum, principalmente para pessoas da Cidade Baixa. Ainda mais quando lembravam que os Magni não possuíam empregados, então toda a refeição havia sido preparada e servida pelo casal.

A mesa retangular era pequena, visivelmente os Magni não recebiam muitas pessoas, nem mesmo entre os outros de sua "casta". Tiberius e Catarina estavam um ao lado do outro, Tony estava em frente à Tiberius e Astra sentava-se ao seu lado. O clima de estranhamento se estendeu durante a refeição, quando comeram em completo silêncio, apenas os sons dos talheres preenchiam o ambiente. Mesmo que os Magni os tivessem convidado, eles esperavam que Tony dissesse o que tinha para dizer. Vendo que todos já estavam acabando a refeição, Tony finalmente decidiu começar.

— Eu vi alguém na floresta ontem.

Tiberius ergueu os olhos para Tony, sua expressão contida não demonstrava qualquer surpresa ou curiosidade. Já Catarina, parecia mais atenta às suas palavras, assim como Astra, que não esperou Tony continuar.

— Andarilhos? — perguntou ela.

— Eu acredito que não. Ela era... diferente... dos outros que já vimos.

— Ela? — Catarina falou. — Diferente como?

— Eu realmente acho que ela é... do outro lado.

Agora sim, havia conquistado o interesse de Tiberius, que deixou de lado os talheres sobre o prato inacabado, e limpou o rosto com um guardanapo de pano. Permaneceu calado, como era seu comum, mantendo a postura fria e elegante que tanto o caracterizava entre os demais na Cidadela.

— Calisto deveria estar aqui... — Astra murmurou, percebendo o rumo que a conversa tomaria.

— Nós a convidamos — garantiu Catarina, mas apesar da sinceridade em sua voz, Astra notou, quando chegou à ala reservada aos Magni, que a mesa já estava posta e haviam apenas quatro lugares. Talvez realmente a tivessem convidado, mas já esperavam que ela não aparecesse. — Eu pensei que no Desconhecido só havia monstros.

— Talvez seja também um monstro. — Tiberius se pronunciou pela primeira vez, sugerindo calmamente que não criassem imagens irreais ou improváveis sobre nada que venha do Desconhecido. — Como ela era?

— Parecia completamente humana, mas os cabelos e olhos não eram de cores naturais. Só isso.

— Mas como você tem certeza que não era uma andarilha? — Astra insistiu.

— Eu não tenho como ter certeza, mas eu senti alguma coisa. Era como estar de frente para uma das criaturas, só que ela não era assustadora. Era tipo uma aura ou sei lá... E ela nos ajudou ontem, me mostrou como derrotar aquele monstro, ou seja, ela sabia contra o que estávamos lutando. Enfim. Eu estou contando porque acho que é possível nos encontrarmos novamente no futuro. Achei que deviam estar cientes.

— Mais alguém sabe?

— Esse é o outro motivo pelo qual eu quis falar com vocês. Devemos contar para a general? — Tony não era muito inclinado a mentiras e omissões, mas mesmo ele reconhecia que essa situação era delicada. A Cidade Aurora já tinha muitas desconfianças contra os andarilhos, que ainda assim eram humanos, como iriam ver uma visitante da hostil dimensão que quase destruiu a Terra que conheciam? Ele não era ingênuo de confiar naquela mulher, mas ela havia lhe ajudado, e talvez conhecesse as criaturas que combateriam no futuro. Se havia chance dela não ser uma ameaça, era melhor torná-la uma aliada.

— Acho melhor contarmos... — Astra ainda não estava bem com Alessa, desde a discussão na sala de treinamento, mas não eram só os Portadores que se arriscavam naquelas missões. — A general Rower é responsável pela segurança de um grupo civil quando as cientistas nos acompanham. Mesmo que essa mulher não seja perigosa, Alessa tem que saber o que esperar.

— Mas se Alessa souber, Edward também saberá. — Catarina alertou.

— Não é bem verdade — discordou Tony. — Ela omitiu informações no relatório da primeira missão, para que o Pretor não soubesse que as criaturas do rio quase alcançaram as cientistas. Eu também acho que é melhor que ela saiba disso.

— Nós não vamos contar para a general Rower. — Tiberius falou, como se a decisão coubesse unicamente à ele.

Novamente, ficaram em silêncio por um tempo. Astra e Tony queriam contar para a general sobre a mulher do Desconhecido, os Magni discordavam. Astra suspirou, com uma paciência incomum.

— Certo, então temos um empate... É por isso que deveríamos ter esperado Calisto...

— Não. — Tiberius a interrompeu, com um tom de seriedade. — Nós não vamos contar para a general.

Então Tony e Astra perceberam que não estavam em uma votação. E não gostaram nem um pouco disso.

— Sr. Magni, se ela for perigosa...

— Não é apenas pela segurança das cientistas, Srta. Rosales, é pela segurança dessa desconhecida também.

— Por favor, aí vocês já estão exagerando... — Astra revirou os olhos.

— Quando os militares ainda faziam buscas nas tribos nômades pela Joia do Espírito, a maioria das missões não chegava ao conhecimento público. — Catarina começou, explicando seu ponto. — Alguns anos atrás, Alessa soube de uma tribo hostil aos outros grupos, fossem eles outros andarilhos ou cidadãos mesmo. Eles atacavam principalmente nas estradas. Alessa montou uma excursão de isca e esperou que atacassem. Ela prendeu 19 nômades naquele dia e, em segredo da população, trouxe eles para a Cidadela para interrogá-los. Obviamente, não deu em nada, eles nem conheciam a tal Joia do Espírito. Algumas semanas depois, todos foram mortos.

Astra sentiu gelar as mãos e uma desagradável sensação se instalar em seu peito. Ela sabia que Alessa Rower não era muito amável com o povo de Calisto, mas não imaginava que ela fosse tão... sanguinária. Nunca pensou que ela seria assim. E pensar que, por um breve período, elas se tornaram amigas, quando Astra tentava entrar para o exército.

— Por isso não podemos contar para ela. — Tiberius reforçou. — Se Alessa tiver interesse nessa mulher e ela for pacífica, ela estará em perigo. Se ela for perigosa, Alessa pode tentar uma armadilha similar à de anos antes, e aí as cientistas estarão em risco.

Astra pensou em dizer que Alessa não faria isso com a Dra. Walker ou com Sybeal Skinner, mas não falou nada. Estava percebendo que não conhecia a general tão bem quanto achava. Por fim, Astra e Tony concordaram em manter isso em segredo.

— Também acho que deveríamos omitir isso de Vermont e Calisto. — Tiberius completou, como se fosse um pedido perfeitamente razoável.

— E por qual motivo?

Tony começava a repudiar a palavra "omitir". Era uma palavra leve demais, tornava mentir um ato fácil e limpo.

— De Vermont, porque não acho que o convenceríamos a esconder isso da Calisto.

— Dá para culpá-lo? — Astra defendeu. — Calisto é a única pessoa que fala com ele normalmente... Mas por que esconder isso dela?

— Quando a conhecemos, ela disse que queria nossa ajuda porque tinha "visto uma coisa". Em seguida, ela falou que os portais estavam se abrindo aos montes pela floresta, mas ela nunca disse o que tinha visto.

— Que surpresa... — Catarina comentou. — Ela ainda esconde tantas coisas de nós.

— Eu quero saber o que ela viu. Quero saber se ela sabe dessas pessoas no Desconhecido, e, se souber, qual a intenção dela em não nos contar isso. Então, por enquanto, devemos agir como se não soubéssemos de nada.

Tiberius permanecia impassível. A frieza e naturalidade com a qual ele sugerira tal manipulação era de impressionar. Astra não imaginava o que os outros pensavam, pois não tirou os olhos do Magni. Ela inclinou levemente a cabeça em um olhar descrente enquanto ouvia aquele absurdo. Astra não esperou que ele continuasse sua explicação, apoiou as mãos na mesa, inclinando-se para a frente e murmurou um único e enfático: — Pode esquecer. — Então ela se levantou, pronta para sair daquele palácio.

— Astra, por favor, espere... — Catarina pediu, fazendo-a parar antes de sair da sala de jantar. Astra parou, hesitante, mas logo virou-se para os três.

— Acho que podem estar perdendo o foco, Sr. e Sra. Magni. Nossa luta não é contra Calisto. Ela não é nossa inimiga. Sim, ela escondeu coisas da gente, mas vocês confiariam cegamente em qualquer um dessa cidade, se estivessem no lugar dela? Tratar ela com mais desconfiança só vai aumentar ainda mais a distância entre a gente. Não entendem que é por isso que ela e Vermont conversam tanto? Eles não se veem com desconfiança.

Naquele momento, Tony já se levantava também.

— Eu concordo com a Astra. Não tem porque esconder isso deles.

— Se quiserem manipular Calisto para forjar as provas que precisam para suas conspirações, não contem com a gente.

E os dois se retiraram, enquanto Catarina e Tiberius permaneciam sentados à mesa.

— Não se pode ganhar todas — murmurou o Magni. Mas era uma pena que houvessem compreendido mal suas intenções.

No elevador do Palácio da Fênix, rumo ao térreo, Astra e Tony permaneciam em silêncio. Ele, porque esse era o seu normal. Ela porque ainda revivia as últimas informações, desde as missões hostis de Alessa às sugestões desleais de Tiberius Magni. Decidindo deixar de lado esses pensamentos tormentosos, ela falou, sem encarar Tony.

— Fiquei surpresa com você hoje. Não achei que fosse um cara de discutir em equipe. Você parece mais alguém que toma as decisões sozinho.

— Bom... — Tony pôs as mãos nos bolsos, olhando de lado para Astra. — O assunto dizia respeito à equipe. Mas é verdade que eu quase me arrependi de trazer isso para uma discussão...

— Eu também não gostei nada de como Magni falou, mas pelo menos sabemos sobre a general. Acho que decidimos pelo melhor. Em ambos os casos.

 

~*~

 

Erin Walker registrava uma cópia manuscrita dos resultados de seus testes, pois, embora a eletricidade fosse constante, não dava para confiar que estaria sempre disponível, e era um risco muito tolo confiar apenas nos computadores para salvar qualquer tipo de documento. Ainda mais quando havia tão poucos profissionais da área para resolver qualquer problema. Erin sabia que alguém na Cidadela entendia de informática, mas não o conhecia pessoalmente, e além dele, não ouvira falar de mais ninguém. Aquelas máquinas eram raras e, atualmente, pouco usadas.

A doutora estava sozinha no laboratório químico. Em vez do impecável jaleco branco que usava na enfermaria, agora ela se protegia com um grande avental plástico e luvas grossas e pretas, que cobriam até os cotovelos, e seus cabelos bem presos sob uma touca. Em dias como aquele, a Dra. Walker sentia que não recebia o suficiente pelas funções que desempenhava. Sua dupla formação a colocava como parte dos pesquisadores na área da química e como médica chefe da enfermaria, função que o Dr. Lucius Montgomery assumia em sua ausência. Nos tempos em que viviam, não era plausível esperar especialização dos profissionais como se tinha antigamente. Os médicos atendiam a todas as situações, seja um resfriado, uma fratura ou mesmo a autópsia de um corpo. Apesar de estar escrevendo, não usava seus óculos de grau, mas sim um de proteção, exigido pelas normas do laboratório. Na larga mesa ao centro, estava o cadáver do ahuízotl, a primeira criatura que os Portadores haviam enfrentado. Rower não podia saber que a criatura atacara o campo dos pesquisadores, mas o levaram para a Cidadela um ou dois dias depois do confronto, quando voltaram à floresta para pegar o cadáver.

Erin esperava descobrir alguma coisa sobre o Desconhecido estudando as criaturas que o habitavam, mas ela não precisou ir muito longe. Logo no começo, os sistemas de segurança ativaram, e Erin precisou permanecer na sala dos fundos, isolada por um material especial, enquanto o sistema de segurança cuidava de diminuir os níveis de radiação que o corpo passou a liberar espontaneamente depois que Erin o abriu. Quando finalmente pôde sair e continuar seu trabalho, descobriu algo curioso enquanto estudava as amostras colhidas da carne. Embora a superfície da pele estivesse completamente contaminada com a radiação, a carne estava limpa. Inicialmente, não fazia sentido. O interior deveria estar completamente intoxicado para que o alarme fosse ativado quando ela começou a autópsia.

— Ao que parece, não houve absorção da radiação... — murmurou para si, enquanto anotava. O dia fora longo, e ela estava bastante cansada, mas terminaria ao menos a análise dos órgãos antes de finalmente deixar o laboratório. — Internamente, a criatura tem uma estrutura similar aos animais da Terra. Os órgãos são robustos, e os ossos, pesados, densos. — Agora, Erin não anotava, apenas ditava para o gravador, enquanto removia os órgãos do ahuízotl um a um e os pesava. — Cérebro: 157 gramas... Um pouco menor que o de um leão, se não me engano. Estômago... Um detalhe não muito interessante sobre o estômago: encontramos restos da refeição da criatura, que parece ter... gostos... bastante específicos. Apenas dedos, globos oculares, línguas e dentes humanos foram encontrados no estômago, ainda não digeridos. Agora o coração... — Erin forçou a rígida musculatura do animal, abrindo passagem para suas mãos removerem o último órgão que restava. Ainda não conseguira dar uma boa olhada antes de retirá-lo, mas ao envolver o órgão em suas mãos percebeu que algo estava diferente. Quando finalmente conseguiu olhar, a surpresa a deixou sem reação. O gravador registrou o silêncio de vários minutos, até que finalmente Erin continuou. — O coração é uma pedra. Possui o tamanho aproximado de uma maçã... Tonalidade azul, como... como... Como um gênero de quartzo ou algo parecido, mas opaco, bruto. Eu não tenho certeza de como conservar isso, quero dizer, é uma pedra. Será danificada se eu só deixar sobre a mesa? É igual às...

Erin se interrompeu. Parou a gravação. Por via das dúvidas, guardou o coração do ahuízotl como achou adequado. Na outra mesa, quase vazia, buscou a caixa metálica em que os Portadores haviam trazido os restos da pedra da cabeça do golem. Erin as analisou superficialmente, curiosa, mas cansada demais para seguir com estudos aprofundados. À priori, eram materiais parecidos, o coração do ahuízotl e a pedra lilás do golem. E ambas pareciam com as Joias criadas do coração do Carrasco.

— Acho que dessa vez preciso da Sybeal...

 

~*~

 

— O que é isso? — Calisto perguntou, pela quarta vez. Lucius Montgomery revirou profundamente os olhos, sem que ela percebesse, pois ele estava de costas. Mas Vermont percebeu e segurou um sorriso divertido vendo Calisto atormentar o pobre médico.

— Um cilindro de oxigênio — respondeu, suspirando, enquanto assinava seu nome no prontuário de um outro paciente.

— E para que serve? — Calisto se inclinou sobre o objeto, tentando decifrar seu objetivo naquela sala. Lucius explicou, sem muito interesse. Logo Calisto mudou o foco de sua atenção para outros curiosos objetos. — E o que é aquilo?

— Você não veio apenas ver como estava o seu amigo?

— Por quê? Não posso ficar aqui? — Ela perguntou, sem parecer ofendida.

— Pode... — O médico respondeu, sem levantar os olhos de uns papéis no balcão de mármore em frente à uma caixa de medicamentos lacrada.

— Não se preocupe, Calisto. — Vermont a tranquilizou. A situação dele já estava sob controle, embora a Dra. Walker tenha o proibido de fazer esforço. — É só que Lucius nunca foi muito paciente.

O Dr. Montgomery dirigiu a Vermont um olhar surpreendentemente frio.

— Por favor, não fale como se fôssemos amigos. — Sua voz era séria e sem a menor hesitação, e ele saiu da enfermaria levando a caixa de medicamentos.

Vermont desfez o sorriso ao ouvir o corte. Lançou para Calisto um olhar brando, fingindo não ter se importado com a aspereza de Lucius, mas Calisto pareceu perceber seu fingimento. Deixando de lado a ávida exploração da enfermaria, ela se sentou na cadeira ao lado do leito onde Vermont estava deitado, mas não disse nada. Inicialmente, Vermont também se manteve em silêncio. Mas ninguém mais naquela cidade o ouviria além de Calisto, que não o olhava com desprezo ou medo.

— Nós éramos inseparáveis. Lucius, Evan e eu. Que vida de merda...

— Evan?

— Sim. Evan Lafayette.

Calisto esperou por mais, mas Vermont se calou. Era muito confuso falar sobre aquilo. Era ainda mais confuso por precisar sempre se lembrar de dizer as coisas certas. Como Vermont havia ficado em silêncio subitamente, talvez Calisto devesse tê-lo deixado em paz, mas em vez disso, tentou continuar a conversa.

— Eu não... Eu não sei de quem você está falando. Quem é Evan Lafayette?

Vermont hesitou, mas outra voz respondeu por ele.

— O homem que ele matou.

Na entrada da enfermaria, o Pretor Rower atraiu os olhares de ambos. Sua postura era séria, imponente para os cidadãos de Aurora, mas não era mais do que outro homem para aqueles que conseguiam enxergar de fora da gaiola social construída pelas grandes famílias. Apenas por existir, como uma sobrevivente das florestas, Calisto pertencia ao segundo grupo. Alheia àquela cultura, não entendia porque tanto trato dos cidadãos para aquela pessoa. Principalmente, Calisto possuía um olhar que preocupava o Pretor. Um olhar que não aceitava julgamentos, e sustentava diretamente os olhares que ele lançava em sua direção. Calisto o olhava como se fossem iguais, e essa ideia era repugnante.

Como se ele, Edward Rower, estivesse no mesmo nível que aquela criatura.

Rower se aproximou do leito, observando o paciente ali internado.

— Estava contando suas aventuras para ela, Vermont? — Sob o olhar acusador do Pretor, Vermont desviou o rosto, as sobrancelhas franzidas e os lábios comprimidos revelavam a tensão que sentia. Calisto não entendeu sua reação. Vermont, que se mostrara tão irreverente quando se conheceram, na prisão, agora parecia emudecido pela figura do Pretor, retraído como um animal encurralado. O Pretor não esperou resposta. — Não se preocupe, não vim atrapalhar sua conversa. Apenas quero saber por que a Joia da Água não foi devolvida à Coleção quando vocês retornaram, como nós concordamos quando você aceitou participar dessas missões.

— Eu não sei... — Vermont conseguiu dizer, ainda sem encará-lo, enquanto tirava o colar com a Joia da Água. A pedra, que antes exibia um brilho leve e azulado, apagou-se quando Rower a pegou. — Eu estava inconsciente quando voltamos. Não percebi que ainda estava com o colar, e, sinceramente, não era a minha prioridade quando acordei.

Vermont passou a Joia para Rower, sob o olhar surpreso de Calisto. Ela se levantou de súbito.

— Não! Não pode entregar a Joia agora. — Com um olhar de descaso, Rower apenas deu as costas para ambos, indo embora com a Joia da Água. Calisto correu e se pôs no caminho do Pretor antes que ele saísse da enfermaria. — Espera, isso é sério...

— Saia da minha frente. Nós concordamos que ele devolveria a Joia sempre que não estivessem em missões.

— Não é sua para ser devolvida! A Joia escolheu ele, não você.

— Calisto... — Vermont repreendeu, em tom de alerta, mas um gemido de dor interrompeu o que iria falar. Instintivamente, Vermont levou a mão até o curativo feito em sua perna.

— Mas não é por isso que não pode tirar dele agora. Ontem ele voltou muito ferido. Erin disse que ele vai levar semanas para se recuperar.

— E?

— Vocês não sabem de nada? As Joias fazem isso mais rápido. O que levaria semanas para ele se curar pode levar apenas alguns dias com a Joia da Água. Não podemos parar as missões por tanto tempo, Pretor. As criaturas que atravessam os portais são cada vez mais perigosas, não podemos parar agora! Por favor, Pretor, devolva a Joia para Vermont... Se não quer deixar ele com a Joia como deveria ser, ao menos enquanto ele está machucado.

— Isso... é verdade? — O Pretor parecia cético. Calisto olhou ao redor, procurando uma maneira de demonstrar.

— Se o ferimento for leve, pode ser quase imediato. — Calisto tirou o casaco que usava, deixando sua Joia à mostra no peito, metade encoberta pela blusa que vestia. Pegou um objeto cortante que estava na bancada, usado para remover os lacres do medicamentos ainda fechados. Com cuidado, Calisto fez um corte longo em seu antebraço esquerdo, superficial, mas ainda suficiente para tirar um pouco de sangue. A Joia do Espírito emitiu um brilho fraco e esbranquiçado, e ela esperou alguns segundos antes de o brilho parar; então limpou o sangue com o casaco e ergueu o braço, mostrando que não havia mais corte algum.

— Impressionante... — admitiu o Pretor. Contrariado, deixou a Joia da Água nas mãos de Calisto, que deu um passo ao lado, liberando o caminho. Antes de sair, porém, o Pretor inclinou-se e falou, para que apenas ela ouvisse. — Cuidado em como você fala, Calisto. Não está mais na sua tribozinha. Não seja tão confiante.

Calisto não respondeu, mas não pareceu ameaçada. Apenas observou Edward Rower se retirar tão soturnamente quanto havia aparecido. Calisto voltou para perto da cama e devolveu o colar para Vermont.

— O que você disse da Joia é verdade? Ela ajuda a recuperação? — Calisto assentiu, afirmando.

— Ela também torna a dor mais suportável. E é por causa dela que não precisamos ter medo da radiação. Não deveríamos precisar daquelas roupas de proteção, mas a general insiste.

— Legal...

— Não devia ter aceitado esse acordo. Ninguém deve poder dizer quando você fica com a Joia.

— Mas... isso não estava em discussão. Se eu não aceitasse, ele não teria me perdoado.

— "Perdoado"? — Calisto pareceu curiosa com a palavra que ele escolhera. — Você ainda parece preso. Sai do seu quarto apenas para comer.

— Mas aí é escolha minha.

— Tanto faz, eu não acho que você precise ser perdoado. — A afirmação o pegou de surpresa, e Vermont não respondeu de imediato. Observou, atônito, enquanto Calisto ia até uma pia no balcão de mármore e enchia com a água uma garrafa vazia de álcool etílico.

— O que quer dizer? — Vermont finalmente perguntou, sentindo o peito gelar.

— Eu não acho que você matou ninguém. — Com a garrafa cheia, Calisto fechou a torneira e retornou para a cama. Vermont ainda a encarava com perplexidade. — As Joias têm... personalidade, algo assim. Escolhem pessoas que combinem com essa personalidade. A Água se ajusta às situações. — Calisto ergueu a garrafa, ilustrando sua fala pelo modo como a garrafa dava forma à água. — Eu não acho que você fez isso. Acho que você se ajustou a algo que outra pessoa fez. — Vermont permaneceu calado. Calisto se inclinou no apoio da cama, curiosa. — Mas eu não posso dizer isso com certeza. Você sempre parece sentir tanta dor... Você carrega alguma culpa, e isso me deixa um pouco em dúvida.

— Por que eu faria isso? Assumir algo que não fiz, quando isso poderia me levar à morte?

— Eu não sei. Você deve ter seus motivos.

— Eu matei ele — interrompeu, avidamente, com um olhar que pedia pelo fim da conversa. Reforçou, em seguida: — Eu matei.

— Tudo bem. Não precisa me dizer nada que não queira. — Calisto deixou a garrafa em suas mãos. — Mas, se entendi bem, você nunca teve a oportunidade de aprender a usar sua Joia. Devia começar a praticar. Apenas use e veja o quanto você se cansa. Não é bom que isso seja uma surpresa na hora da luta. Além disso, seus golpes dependem apenas da sua criatividade.

Ela sorriu. Vermont, não.

Deixando-o sozinho, Calisto voltou para seu quarto, sem nem mesmo se preocupar com a discussão que ocorria, no mesmo momento, à mesa dos Magni.


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Notas finais do capítulo

Vamos passar um tempinho sem missões, culpa do Vermont que se machucou. Mas só mais um cap, eu acho.
Espero que tenham gostado e desejo a todos um feliz Ano Novo ♥