Sobre cores e horas escrita por Julia


Capítulo 9
Capítulo 9




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Carl:

 Mal eram sete da manhã e eu estava saindo. Ao colocar o pé para fora vejo um carro tocando música alta parado em frente de casa. Joan saiu de dentro cambaleante acenando para o motorista de forma descoordenada. Começou a andar pelo gramado aos tropeços. Eu me limitei a olhar. Ela passou por mim rindo com a maquiagem borrada.

—Isso é hora de chegar? Na hora que eu estou saindo e desse jeito?

—Na próxima eu espero você sair. – Ela perdeu o equilíbrio, caindo no chão e começou a rir, do riso foi para o choro. Justo hoje que eu precisava chegar cedo no trabalho. Minha vontade era de ir embora e deixa-la ali, mas então que tipo de pai eu seria? Deixá-la nesse estado e sair não seria correto, apesar de prático. Lembrei do beijo não dado em Alex e no arrependimento que senti. Ela continuava chorando. Tentei carrega-la, mesmo que de forma desengonçada até dentro de casa. Emanava um forte cheiro de álcool e cigarro, talvez maconha também. Ela era pesada. E eu estava completamente fora de forma. Percebi o quanto ela estava fria.  Também pudera, fazia não mais que 10 graus e ela não vestia nada mais que uma jaqueta fina.

               Depois de conseguir senta-la no sofá aumentei o termostato e fui esquentar água. Ela chorava com as mãos entre o rosto de forma que a única coisa que eu conseguia sentir era tristeza por ela. Quando voltei a sala, trazia nas mãos chá e um pacote de bolacha. Liam estava sentado ao lado dela de pijama com a cabeça encostada em seu ombro.

—Me desculpe Liam por ser um péssimo exemplo para você. Eu queria ser a Alex, mas eu não sou. – E soluçava. – Não seja como eu entendeu?

—Sim.

Ele me dirigiu um olhar confuso.

—Vai ficar tudo bem, vá se arrumar para a escola.

—Coma isso Joan. – Tentei enfiar a bolacha na sua boca.

—Não quero comer. – Ela empurrou minha mão.

—Coma, você precisa de açúcar.

    Ela só balançava a cabeça e chorava.

—Vem cá. – A abracei.

—Pode ir. - Ellen tocou meu ombro e me encarava séria.

—Eu sou uma péssima filha, eu sei. – Choramingava Joan agora abraçada a cintura de Ellen. Ela tentava consolar Joan passando a mão entre seus cabelos.

—Ainda está aí? Não está atrasado? Você está louco para ir. Vá! – Seu tom soava como um desafio. Engoli a seco e fiquei.

—Quer levar ela para o quarto?

—Se não for te atrapalhar. – Falou irônica. Apertei o maxilar. Não era uma boa hora para brigar.

   Carregamos Joan até o banheiro. Ellen começou a despi-la.

—Precisa que eu ajude?

—Vá Carl.

E dessa vez eu fui. Um misto de alivio e culpa. Queria ir e queria ficar.  Mandei mensagem perguntando se estava tudo bem. Ellen não respondeu. Talvez ainda estivesse ocupada cuidando de Joan. Na hora do almoço mandei outra mensagem, “desculpa”. No meio da tarde ainda sem resposta. Ela não estava respondendo porque não queria. Ela vivia colada no celular. Ou então Joan piorou. Liguei para Joan. Ela me atendeu com voz de sono.

—O que foi pai?

—Você está bem?

—Não.

—O que você tem?

—Eu que bebi e você que tem amnésia? Eu tomei um porre pai.

—Achei que... Ok. E sua mãe?

—Acabou de me dar o maior sermão da minha vida sobre não beber. Não preciso de um segundo ok?

—Acho bom que aprenda a lição.

—Posso voltar a dormir agora?

—Sim.

O relógio fazia tique-taque, apesar de irritante era uma distração pensar por que alguém teria um relógio tão ultrapassado em um consultório novo. Ele destoava por completo. A secretária digitava concentrada em frente ao computador. Vez ou outra remexia em algum papel. Não havia uma televisão e revistas velhas não me chamavam a atenção. Pensei em levar todos para jantar fora. Não, eu tenho que fingir estar bravo com Joan. Mas a verdade era que eu estava com inveja. Eu estava louco para tomar um porre daqueles. Talvez eu pudesse inventar uma viagem, me trancar em um quarto de hotel e beber até mijar nas calças. Sorri ao imaginar a ideia de ficar sozinho por um dia inteiro.  Eu poderia comprar uma moto. Uma moto cara. Brilhante. E aí dirigir até um quarto de hotel e ficar lá. Poderia jogar o celular pela janela e observar enquanto ele se espatifava no chão. Poderia fazer isso enquanto alguém estivesse me ligando. Melhor. Poderia atender e então jogar o celular. A pessoa ia achar que sofri um acidente e morri. Então eu ia com a moto pela estrada, enchendo a cara em casa parada. O médico chamou meu nome.

—Como você está?

—Indo.

—Está se adaptando com o remédio?

—Sim.

—Tem conseguido dormir?

—Dormir nunca foi tão fácil, o difícil é acordar.

—E sua esposa? Conversou para ela vir aqui?

—Ela nem sabe que eu venho aqui.

—Por que não contou a ela?

—Não consigo conversar com ela. Com ninguém na verdade.

—Pensou no que eu disse sobre a terapia?

—Sim, mas ainda não tenho certeza. Tenho medo que seja pior ficar revirando os problemas.

—Pense melhor no assunto. Acho que vai te ajudar, ao contrário do que você pensa.

               Sai de lá portando mais uma receita. Estacionei o carro em frente de casa, mas não entrei. Fiquei sentado no carro olhando a casa. Quantas expectativas colocadas nela. Por que de repente uma casa grande se tornou a minha maior ambição na vida? Já houve tempos em que minha maior ambição era comer a Ellen em cima da bancada da cozinha do nosso minúsculo apartamento. Ela nunca deixou. A bancada era de granito, “muito gelada” ela dizia. Vi Joan pela janela da sala de jantar, segurava uma caneca e assim que notou que eu a observava virou as costas e sumiu. Tomo um susto ao perceber que Liam batia no vidro do carro.

—Oi. – Ele sorria mostrando um dente faltando. – Meu dente caiu papai.

—Que bom. – Forcei um sorriso.

—Por que está parado aí papai?

—Por que o senhor está aqui fora sem casaco me perguntando isso?

—Estava te esperando para a gente brincar.

 Olhei para a janela da sala. A cortina cobria a visão, mas ao ver uma silhueta que poderia ser Ellen, me desestimulou a entrar. Não queria ter que lidar com Joan nem Ellen porque era quase uma certeza que terminaria em briga.

—Vamos fazer melhor. Quer passear?

—Sim!

—Entre.

—Espere, vou pegar meu casaco.

—Não precisa. Não vamos ficar do lado de fora.

—Aonde vamos?

—Onde você quer ir?

—Não sei.

—O que vai ter para jantar?

—Nada eu acho.

—O de sempre então. Está com seu celular?

—Sim.

—Mande uma mensagem para sua mãe que você está comigo.

—Ok.

Liam sintonizou numa estação de rádio e olhava pela janela sem falar nada mesmo depois da notificação de recebimento de mensagem. Me segurei para não perguntar a ele o que Ellen havia respondido.

—Que acha de um hambúrguer?

—Eu gosto. – Sorria animado.

Fomos a um restaurante que dificilmente iríamos em família. Ellen o acharia sujo. Alex não come fast food e Joan, bem, é Joan. Talvez ela gostasse, talvez não. Impossível dizer. Mas Liam, assim como eu, adorava comida ruim e não ficaria me atordoando por causa da minha saúde. Pedimos 4 lanches. Comi três por que ele mal aguentou comer o seu sozinho. Cada mordida era repleta de prazer e satisfação. Liam não viu problema na quantidade de comida que eu pedi, não me alertou sobre maneirar no sal das batatas ou pedir refrigerante light. Eu estava totalmente à vontade. Arrotei na mesa e Liam achou graça e tentou arrotar também. Rimos com a boca cheia. Ele perguntou se podia pedir milkshake, falei que sim, mesmo sabendo que ele não teria estômago para tanto. Ele enrolaria um até dizer que não aguentava mais. Assim eu ganhava tempo.

               Quando chegamos, Ellen estava vendo televisão com Joan, cada uma em um sofá.

—Eu comi um hambúrguer com batata frita sozinho e um milkshake.

—Meio. – O corrigi.

—É, meio milkshake.

—Que bom filho. -Ellen desanimada.

—Oh, não fale em comida Liam por favor. – Joan pedia.

               Subi ao quarto e comecei a assistir um filme. Quase no final, Ellen apareceu no quarto, acendendo luzes e fazendo barulho ao mexer nas coisas.

—O que é isso? – Ela perguntou ao ver a receita do meu calmante esquecida sobre a cômoda.

—Remédio.

—Remédio... Bem que eu desconfiava dessa tranquilidade toda.

—Que tranquilidade Ellen? – Levantei e arranquei o papel da mão dela.

—Tem que estar com a cabeça cheia de química pra agir de maneira tão anormal a tudo isso!

—Ah sim por que gritar no meio da rua pra gente estranha é algo muito normal.

—Foi UMA vez.

—Eu não tenho condições de lidar com isso sozinho!

—Defina ISSO.

—Tudo Ellen. Você, Joan, a casa, Alex! Tudo.

—Ah você não atura mais sua família?

—Não aguento estar sozinho.

Você se sente sozinho? E eu me sinto como? Amparada por você que não é! Se a casa ficou um lixo logo depois que a Alex sumiu a culpa não é só minha. Você não colocou a roupa pra lavar, não fez compras. Nada. E me joga na cara que teve que assinar um papel porque Liam não fez as tarefas. Como se você desse alguma atenção a ele quando chega.Isso quando chega a tempo de ver ele acordado. Mas é mais fácil colocar a culpa em mim.

—Eu chego cansado do trabalho. As vezes tenho que cumprir hora extra.

—E quando EU trabalhava? Mesmo tendo que fazer hora extra. Nunca fiquei livre desse compromisso.

—Que compromisso Ellen? Liam mesmo me falou que Alex que o colocava na cama, o ajudava com as coisas. Ele só fala nela, noite e dia, dia e noite: Alex, Alex. Pra mim está muito claro quem estava criando Liam. – Sentei na poltrona de frente pra ela que me olhava em pé.

—Ah se ele tivesse um pai por perto...

—Eu faço o que eu posso.

—Eu vi. Fiquei emocionada com seu empenho hoje de manhã. Pai do ano. – Ela batia palmas. - Ela acha que isso aqui é um hotel, está descontrolada. Não para em casa, não me escuta.

—Mas aí você quer que eu tente resolver a situação brigando com ela bêbada daquele jeito? Você podia ter me contato isso antes.

—Preciso esfregar na sua cara uma coisa tão óbvia? Claro que sim porque você tem seus compromissos importantes para se preocupar. Mais importante do que todo resto.

—Alguém tem que trabalhar por aqui, não acha? As contas não se pagam sozinhas. Agora eu tenho que pagar tudo! E nada foi cortado. Nenhuma economia. Pelo contrario, estamos gastando mais e ganhando menos!

—Como não cortamos nada? Você agora só tem que sustentar dois filhos, já que pra você Alex morreu! Menos roupa, menos luz, menos comida.

—Mais briga, mais cara de coitada... Tá ótimo. Perfeito Ellen.

—EU tenho cara de coitada? Você nunca chega em casa e fica com cara de cachorro sem dono naquela poltrona não é? A cara quase enfiada no meio das bolas, só falta sair lambendo elas, já que agora é o rei da casa, o provedor macho alpha. Como se não tivessem tido inúmeros meses que eu ganhei o dobro que você. – Ela cuspia as palavras em cima de mim com ódio e soberba. Quase podia ver faiscas dos olhos.

               Soltei uma risada.

—Esta rindo do que? Contei alguma piada?

—Dinheiro que nunca vi. Esse dinheiro, cadê? O que eu ganho tem que ser repartido e o que você ganha fica só pra você?

               Ela acenou um não com a cabeça, os olhos arregalados e virou-se, buscando furiosamente entre as gavetas. Puxou uma pasta e jogou em cima de mim. A ponta arranhou as costas de minha mão que sangraram.

—Ei sua doente!

—ABRA!

—O que tem aqui?

—ABRA eu já disse! – Ela bufava de raiva. – Quando comecei a remexer os papeis ela se adiantou e esfregou uma folha na minha cara.

—Aqui seu imbecil, as aplicações que fiz em nome dos nossos filhos que eu TANTO ignoro. Isso sem contar no dinheiro que aplicamos pra faculdade. Dos três! Eu sempre contribui com metade! Mesmo agora. – Tirei a folha do rosto e examinei, antes que pudesse ler até a metade ela apontou com força para outro documento, um seguro de vida.

—Viu? Se a coitada aqui morresse você ainda sairia com uma bolada que a idiota aqui preparou.

—Como se eu não tivesse feito o mesmo!

—Aquela poupança de merda não da pra nada. Você adora gastar, se não fosse EU te frear nos gastos teríamos ido pra rua em 2009.

—Não teríamos ficado tão endividados se não fosse por você e seu estúdio! Você só vive pro seu trabalho! Não pensa no nosso casamento!

—Ah me poupe. – E por fim ela puxou um maço de papeis com partes grifadas e circuladas. E jogou no meu colo.

—Aqui. O projeto da nossa segunda Lua de Mel, estava pesquisando as melhores cidades, hotéis e lugares pra gente antes de TUDO isso acontecer e eu passar o dia com cara de coitada ignorando os filhos que restaram... -Ela se jogou sentada na cama expirando com força pela boca. Depois apagou a luz e se cobriu.

  Permaneci sentado em silêncio encarando o vazio por um tempo, podia ouvir a respiração um pouco ofegante dela. Provavelmente chorava. Joguei a pasta no chão com força e fui ao banheiro. Tomei um banho demorado, remoendo tudo da briga e mais um pouco. Quando voltei o quarto estava escuro e calmo. Deitei no escuro e busquei com a mão ver onde ela estava. Quando encostei nela, apertou minha mão com as unhas e a empurrou. Respirei fundo e me acomodei o mais perto possível da beirada. Ela levantou, saiu e bateu a porta.


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