Sobre cores e horas escrita por Julia


Capítulo 8
Capítulo 8




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Ellen:

Semana passada, a padaria que costumo encomendar bolos me ligou pedindo a confirmação do pedido para quinta-feira dessa semana, dia do aniversário da Alex; fui grosseira com a moça, gritando com ela que minha filha estava desaparecida e que ela era muito cruel de me ligar para perguntar uma coisa dessas. Desliguei o telefone na cara dela para depois me encher de culpa pela falta de educação.

—Mãe, a moça não tem culpa de nada.

—Não enche Joan. Se está se sentindo culpada ligue você para lá.

—Sim, é isso mesmo que vou fazer. – Arrancou o telefone da minha mão e saiu da sala.

—Mal-educada!

—Eu não saio gritando pelo telefone com as pessoas meus problemas. – Ela disse da cozinha.

Quando ela voltou a sala eu tentei me desculpar, mas ela não estava muito interessada no que eu tinha para falar, toquei no assunto faculdade e ela começou a gritar comigo e é claro que brigamos. Ela saiu batendo a porta e levando as chaves do meu carro. Ela tem abusado da minha boa vontade em emprestar o carro. Mas eu tenho tentado evitar esse tipo de assunto mesmo que inutilmente. Na verdade, ultimamente não lembro de conseguir conversar com Joan sem que isso termine com gritos e discussão, não importa o motivo. Não era tão ruim na adolescência. Ela já foi mais acessível. É quase como se ela não entendesse meu tom de voz normal, é preciso gritar para ela me responder. Provavelmente vai sumir o dia inteiro e voltar a noite. Tenho que começar a manter a chave no bolso. Aproveitei que o telefone estava próximo e comecei a ligar para uma lista de hospitais da cidade e região. Eu não precisava me identificar, eles já me conheciam pelo primeiro nome de tantas vezes que já liguei.

—Oi Ellen, desculpe nada de novo hoje. – Eu não me decepcionava mais porquê eu já ligava esperando um não. No fundo a esperança estava diminuindo, mas eu me agarrava a ela, cada vez mais forte por menor que ela fosse. Desistir seria muito pior.

As temperaturas estavam despencando. A cada previsão do tempo eu me encolhia de agonia. Será que estava aquecida? Busquei uma ONG e me ofereci de voluntaria para distribuir sopa para os mendigos. Talvez achassem que eu estava me doando para a caridade, mas eu estava mais egoísta do que nunca, por que eu alimentava a esperança de encontrá-la perdida por entre aquelas pessoas, quem sabe com amnésia. Na primeira noite que eu passaria fora, Liam me esperou na porta com um sanduíche e chocolate quente nas mãos para que eu comesse durante a madrugada. Não pude deixar de ficar comovida com a preocupação dele.

—Obrigada.

—Você volta muito tarde?

—Acho que sim.

—Papai vai me colocar na cama?

—Acho que vai ser a Joan. – Carl voltava cada vez mais tarde para casa, os motivos eu ignorava, ou pelo menos tentava.

 Ele me abraçou forte, eu retribuí. Respirei fundo para guardar seu cheiro bom comigo. Quase arrependida de deixa-lo mesmo que por algumas horas. O chocolate estava intragável de tanto açúcar. O sanduiche eu doei para um cachorro faminto no caminho. Eu tentava ser simpática com cada uma daquelas pessoas famintas, mas eu não parava de procurar por ela, naquela multidão de pessoas famintas, um rosto familiar. Eu não precisava de fotos para lembrar do rosto dela. Ele ficava impresso na minha mente cada fez mais forte e permanente, como uma tatuagem. O formato do nariz, o contorno do rosto, os olhos cinza-azulados. Quase podia sentir seu perfume.

—Agora deu para fazer caridade. – Carl me disse assim que entrei na sala. Ele não parecia bravo ou triste. Estava sentado na poltrona que eu usava para observar a janela.

—Acha ruim que eu queira ajudar os outros?

—Sabia que eu tive que assinar um papel dizendo estar ciente que Liam não tem feito as tarefas de casa? Você fica em casa o dia todo, o mínimo que poderia fazer é cuidar dele. Do seu filho, cuide da sua família depois vá cuidar da família dos outros.

—Por que está falando assim?

—Por que eu não posso sofrer por 5! Eu preciso de você! Todos nós precisamos. Nós estamos aqui agora e precisamos estar quando ela voltar.

—Eu estou aqui.

—Não. Você não come por que não sabe se ela comeu, não se cuida por que acha que ela está sofrendo. Se colocar em sofrimento como forma de compensação não trará ela mais rápido. Você só está se matando!

—Quer que eu siga como se ela tivesse morrido? Supere o luto e siga adiante? Eu não posso porquê ela não morreu! A não ser que eu veja o corpo dela, para mim ela ainda está viva!

—Eu não disse isso! Quero que você para de agir como se o fato de você estar aqui fizesse com que ela sofresse mais. 

Fiquei parada sem responder olhando para ele.

—Não tem mais nada a dizer? - Ele perguntou.

—Estou exausta.

Virei as costas e subi para o banheiro em silencio. Tomei um banho morno, quase frio. Ao sair do banheiro o encontro sentado na cama, as pernas esticadas, braços cruzados olhando o vazio. Apenas meu abajur estava ligado. Parecia que ele estava envolto em uma penumbra assustadora. Me acomodei na cama e olhei para ele por um instante. Estava com os olhos vermelhos. Virei de lado, me cobri e apaguei a luz. No instante que fechei os olhos senti suas mãos em cima de mim. Vinham percorrendo meu quadril, envolvendo minha barriga e por fim me puxando para perto. Sua mão subiu meu corpo até chegar aos meus seios e começou a me beijar. Parei de relutar. Me virei e o beijei de volta. Foi nossa primeira transa após meses. Foi fria, quase mecânica. Após ouvi-lo gemer tentei empurra-lo para o lado, mas senti seu corpo pesar sobre mim, me abraçando. Retribui mesmo quase sufocada e comecei a chorar. Ele levantou e buscou água. Mas não me ofereceu. Bebeu tudo de uma vez.

—Desculpe. – Sua voz estava engasgada e falha.

—Tudo bem. -Não sabia pelo que exatamente ele se desculpava, supus ser várias coisas, menos pela água.

—Eu não aguento mais. -Sentou na poltrona em frente a cama.

—O que?

—Queria só saber se ela está bem. Ouvir a voz... Nem que fosse preciso vender essa casa, meu rim, qualquer coisa. Nem que fosse um recado... Bagunçou os cabelos com as duas mãos lentamente.

—Eu não tenho mais psicológico para falar disso.

—Mas eu não sei o que fazer. – Sua voz saiu como um sussurro.

Peguei em sua mão e acariciei-a. Passamos um tempo assim até ouvir passos pesados no corredor. A porta abriu e a luz do corredor invadiu o quarto junto com Joan:

—ACHARAM A ALEX! Ai meu Deus...- Ela virou de costas rapidamente ao nos ver. – Desculpe...

—Como você sabe? – Puxei o lençol.

—Ligaram de um hospital, disseram que a descrição bate. Precisamos ir para lá... estão nos esperando. - Joan falava de costas para nós.

—Saia! – Carl disse enquanto tentava vestir as calças o mais rápido possível. – Vá ficar com Liam.

Ao chegarmos ao hospital falamos com a recepcionista, ela nos mandou esperar. Me deparei com um espelho e pude ver meu estado lastimável. Olheiras, o cabelo embaraçado. Carl não estava melhor. A barba por fazer e os cabelos em pé. Percebi que estavam muito esbranquiçados, muito mais do que a última vez que havia reparado. Busquei minha bolsa, mas não estava comigo. Apertei firmemente a jaqueta até os nós dos dedos ficarem brancos. Ele andava de um lado para o outro, mexendo no cabelo e no rosto. Eu sentia minha respiração ficar ofegante.

—Ela está desacordada.

—Mas é ela?

—Não temos certeza, não tinha documentos... Mas a descrição bate. Querem vê-la?

Eu não conseguia falar nada, só balancei a cabeça ansiosa. Carl foi na frente. E a cada passo que dávamos eu diminuía a velocidade. Um misto de medo de não ser ela e a esperança de ser, faziam com que eu travasse.  As cortinas do box se abriram e a decepção tomou conta de mim.

—Não é ela...

Alex:

Eu sei quando é hora de beber água e comer. Eu percebo a vibração do chão. Os passos em minha direção. Esse é um momento ambíguo. Feliz por poder satisfazer uma necessidade e angustiada com o que vem depois. A interação com eles é mínima, mas me faz sentir humana de novo. Ando apegada a esse tipo de migalha existencial. Senti meu pulso, antes livre, ser preso a corrente de novo. Era um ritual, senti o copo encostar meus lábios.  Eu não tento mais gritar quando minha boca está livre, eu sempre acabo com fome, sede ou com um tapa na cara. As vezes os três juntos.

Seja lá o que estiver ao meu redor não posso ouvir. Não é como se eu estivesse surda. Eu escuto minha respiração. Escuto tanto que passei a acha-la irritante. Tentei respirar de um modo menos barulhento. Não consegui. As vezes prendo a respiração só para ter silêncio de verdade. Mas ainda escuto meu coração bater. Recentemente comecei a achar que escuto a movimentação dos meus órgãos também, mas acho que não passa de alucinação. Escutei vozes elas têm sido frequentes, mas eu tenho quase certeza que são invenção da minha cabeça, porque parecem dos meus pais, como se eles conversassem comigo. Talvez eu esteja pirando. Algo tocou minha mão. Com a movimentação limitada, levei a boca com certa dificuldade, sem esperar que fosse outra coisa diferente de pão. As vezes tinha recheio, mas na maioria das vezes não. As vezes estava duro, as vezes não havia pão. Eu comia o mais devagar possível. Fazia durar ao máximo, mas nunca conseguia por muito tempo, era uma fome descontrolada. Eu precisava de vitaminas. Eles não podiam me manter assim por tanto tempo.


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