A Lenda de Cristal escrita por Tsu Keehl


Capítulo 45
Capítulo 44


Notas iniciais do capítulo

Olá caro leitor(a).
Antes de começar a ler, gostaria que lesse aqui.

Eu sei que demorei muito para conseguir atualizar aqui a história. Não foi minha intenção e eu ando bem frustrada comigo na parte da escrita por conta de todos os meus projetos literários. Real, está tudo parado e as semanas e meses passando. Mas eu não consigo delimitar uma época em que eu vá conseguir voltar a me focar na escrita e retomar o que está parado...
Mas isso porque minha vida está numa correria desde o início desse ano. Algumas coisas já estão acontecendo e minha rotina de prioridades mudou.Uma das minhas metas desse ano era ser mais produtiva na escrita mas o ano começou ru já não sei sevou conseguir..mas seguirei tentando!

AVISO: um tema mostrado nesse capítulo pode ser um pouco sensível para algumas pessoas. Se você faz algo semelhante, busque ajuda profissional para superar essa fase. Você consegue!

Chega de papo e boa leitura.



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~*~

Ele observou os rastros da destruição conforme amanhecia. Apesar de haver ainda focos de fumaça e caminhos de lava que escorriam por frestas na neve, ainda estava bem frio. Ao menos havia parado de nevar, o que permitiu que a equipe de resgate pudesse agir com mais facilidade.
   Lance observou seu Dragonite afastar alguns destroços de pilastras e blocos pertencentes ao Templo Ancestral agora quase que inteiramente tombado. E ele mesmo estava ali para ajudar a delegar tarefas e buscar por informações acerca do ocorrido.
  Tudo havia acontecido tão rápido que ao chegar no local, a batalha já havia terminado.
E Lance viu. Uma imensa criatura draconiana, branca como a neve a causar, com o bater lento de suas asas, uma onda de ar gélido e morno, tanto pela neve que ainda caía quanto pelo vapor quente que subia da terra devido a lava.
  Lugia voou em silêncio, sumindo em meio a névoa e fumaça da escuridão que se esvanecia aos poucos. E aquele Lugia, o mestre da Elite4 tinha certeza, era muito maior do que deveria.
E Lance se viu acometido pela dúvida: qual caminho seguir? O do templo ou o daquele pokémon?

“Você é o Mestre da Elite4, uma figura pública.”

   Lance então seguiu na direção dos destroços do templo. E já estava ali á horas, ajudando como podia. Além de ser o papel esperado de uma pessoa em sua posição, era algo que precisava fazer e focar-se na importância disso, fazia com que sua mente não se perdesse em pensamentos pessoais sobre acontecimentos recentes que não deveriam ter acontecido.
— Mestre Lance!
   Uma oficial Jenny trajando um casaco de inverno se aproximou.
— Todo o perímetro do local já foi isolado. A equipe de polícia segue tentando controlar o interesse da população, mas com todos tendo acessoá  internet, não vai demorar para que a imprensa chegue até aqui.
— Isso é algo inevitável. – ele suspirou. - Pelo menos garante que as medidas de segurança e controle de informações já estejam feitas antes que cheguem aqui. Entrei em contato com os membros da Elite4 de Sinnoh e pelo menos um deles diz estar a caminho.
— É uma pena que Snowpoint esteja sem líder de ginásio, já que nossa líder está de licença maternidade...
— E como é o estado de Cynthia Shirona?
— Acabei de ser informada que a mestra Cynthia chegou ao hospital em segurança e já foi prontamente atendida. O quadro dela é estável e sem riscos.
   Lance assentiu com a cabeça. Ainda que não gostasse da mestra, se preocupava com ela. Afinal, era uma pessoa e ainda uma figura pública e aliada importante.
— Senhor Lance. – a oficial continuou. – Como o senhor havia me pedido, colhi as informações acerca de número de vítimas até o momento e, apesar de alguns feridos pela cidade devido ao pânico generalizado, não constatamos nenhuma mor...
— Oficial Jenny, senhor Lance! Depressa, achamos uma vítima aqui!
  Lance e a oficial foram até onde um socorrista acenava, há alguns metros de distância. Enquanto um Mamoswine (sob as ordens do socorrista) movia uma pilastra tombada entre destroços de concreto em que outrora pertencera a parede do templo, Lance sentiu um aperto no peito conforme se aproximava, um pensamento fixo em Dômino.
   Haviam tomado direções opostas. Ela era uma agente Rocket. Se Lugia estava do lado da organização, obviamente que ela iria até o local da batalha. Não. Sabia que Dômino era habilidosa e prudente, não se colocaria em risco. Mas acidentes poderiam acontecer.
Ah, não.
 Lance sentiu dor e alívio ao se aproximar e ver.
Entre os escombros, com parte da pesada pilastra esmagando seu corpo, jazia um jovem treinador pokémon. O mesmo que havia visto correndo na direção do templo quando a luta entre os dois grandes pókémon se iniciara. O mesmo garoto impulsivo e de olhar decidido que tinha a confiança ilusória de que seria capaz de enfrentar e capturar Lugia.
  Lance notou de imediato, pelos olhos vítreos e inócuos e a pele esbranquiçada pelo frio, que o garoto estava morto.
  Morto.
  E sua pequena mão ainda segurava com firmeza uma pokébola. Talvez, diante da certeza da morte, o garoto só tivera o pensamento de salvar seu companheiro pokémon.

“Que pelo menos sua morte tenha sido rápida e indolor.”

  Era o que Lance pedia a Ho-Oh para o jovem, ainda que tivesse a noção amarga de que, pelo estado em que foi encontrado, não tivesse sido assim.
O mestre então se ajoelhou ao lado do corpo, notando que o garoto provavelmente era mais jovem do que aparentava. Com delicadeza, fechou os olhos dele com seus dedos e, com cuidado, recolheu a pokébola em sua mão.
— Descanse. – sussurrou, mesmo sabendo que o garoto não tinha como ouvi-lo. – Prometo que seu companheiro ficará bem.
  Deveria tê-lo salvo. Deveria tê-lo impedido naquele momento que o viu. Afinal, nenhum treinador jovem desobedeceria um mestre da Elite4. Aquela era sua função e seu dever.
  Mas não havia feito isso. Havia se deixado levar momentaneamente por seus sentimentos pessoais por aquela mulher. Por aquela criminosa Rocket. Por alguém que o havia enganado e decepcionado.
  Ficara tão impactado e envolvido naquele curto reencontro com Dômino que se deixou levar pela emoção e, tinha de admitir, pelo desejo também. E por causa disso...por causa de tudo isso ele havia parado na rua por segundos cruciais, pensando se deveria seguir na mesma direção que ela. E esses segundos que ponderou o fizeram perder o garoto de vista, o fizeram se confundir em meio a multidão e quando chegou ao templo, a luta havia acabado.
  Cynthia havia tido que lutar sozinha e por pouco não ficara em estado grave.
  Aquele jovem treinador havia morrido.
  Mas o pior de tudo que Lance sentia era que, mesmo que estivesse triste pela morte dele, sentia-se aliviado de não ter sido Dômino a estar morta ali.
  Pelo menos não havia sido ela.
  Céus, tivera medo só de pensar se fosse ela.

~*~


 Eu finalmente morri?
Mas na morte não deveria pensar em nada, não deveria ter consciência. Tudo simplesmente acabaria
.
Eu sempre quis morrer sem saber ou sentir que estivesse morrendo. Sem dor, sem lembranças, sem culpa...que fosse tão rápido que eu sequer percebesse.
Então, se estou aqui pensando sobre isso, é porque ainda não morri.

  Piscou algumas vezes, sentindo o piscar, os lábios abrirem e fecharem, seus olhos começaram a ver. Ver que aquele branco á sua frente não era tão branco assim. Tinha manchas de um branco mais escuro e...lustre simples. Um teto.
 Sentia uma temperatura agradável com sua pele e um forte odor de limpeza.
 Um quarto de hospital.

Sofri um acidente.
Pense. Tenho consciência. Eu vejo. Não estou cega. Isso é muito bom. Não sinto nada em meu nariz. Estou respirando normalmente. Certo.
Pescoço, eu posso mexer, mas...por que não vai o suficiente, o que tem em volta dele? É apertado, quente...meu corpo. Eu preciso mexer o meu corpo. Por que não estou conseguindo? Calma. Respire.


  Gritou. Gritou tão alto e com tanta força que doeu seus próprios ouvidos e garganta. Podia ouvir e podia gritar.
 Mas precisava que seu corpo funcionasse, não poderia estar...não poderia ficar daquele jeito, não antes de se vingar daquela maldita Equipe Rocket que sequestrara ela e fazê-los pagarem por cada horror que poderiam ter feito...
  Estava gritando quando a porta se abriu, por ela entrando um homem asiático de jaleco branco e uma loira gordinha de uniforme verde-claro.
— Mestra Cinthia, acalme-se! Eu sou o doutor Nagata, está tudo bem com a senhorita...
  Cynthia arfou, começando a se acalmar conforme percebia que seu corpo se mexia, que seus braços e pernas estavam ali e todo o seu corpo e sentidos estavam intactos.
— ...me levante.
  Sussurrou antes que o médico falasse mais alguma coisa. E ele prontamente acionou um botão para que a cama em que ela estava erguesse o leito até que a deixasse parcialmente sentada.
  Assim, enquanto o médico, de forma calma e tranquilizadora explicava que, com exceção de alguns machucados e contusões, ela estava bem, Cynthia tratou de se acalmar e vestir novamente a postura que esperavam que a grande mestra pokémon deveria ter.
  Então procurou resgatar e organizar em sua mente os acontecimentos recentes que a levaram ali. E sabia que sentiria raiva e frustração. Só sentia calma agora certamente por conta da medicação que a enfermeira colocava no frasco do soro ligado a seu braço.
— Doutor...obrigada pelos seus cuidados. – falou, calma. – Peço que me traga o prontuário, eu mesma gostaria de saber o meu estado. Mesmo o senhor falando, confesso que acabei de acordar e com a medicação...acho que deixei passar algumas informações.
— Perfeitamente, mestra Cynthia. – ele se curvou sutilmente em respeito.
   Cynthia assentiu. Pequenas vantagens e regalias que sua posição como mestra da Elite4 eram capazes de lhe proporcionar. Todos os civis sempre acatavam as suas ordens e pedidos.
— Ah, mestra Cynthia... – a enfermeira começou, ignorando o olhar do médico para que ela não falasse. – O senhor Lance está lá fora. E ele diz que precisa lhe falar com urgência.
— A mestra deveria descansar. – reiterou o médico. – Gostaria que eu informasse ao senhor Lance que não pode receber visitas no momento pois precisa de repouso?
— ...mande-o entrar.
  Meio a contragosto, o médico assentiu e se retirou junto com a enfermeira.
  Por mais que desejasse ficar sozinha, Cynthia sabia que era necessário discutir certas coisas.
  E assim, foi com um olhar emburrado que viu Lance entrar.
— Chegou rápido. Estava esperando aqui do lado? – ela resmungou. - Assim, até parece que você realmente se importa com minha integridade física.
— Pelo visto, nem mesmo um acidente e quase morte é suficiente para amansar o seu amargor e desconfiança para com as pessoas.
— Eu sei o motivo de você entrar aqui. Então, sem enrolações e antes que o sedativo que me deram faça efeito.
  Cynthia recostou a cabeça no travesseiro, soltando um suspiro dolorido. Por mais que estivesse fora de risco e consciente, seu corpo estava machucado, Já Lance puxou a cadeira que havia ali,a colocou próximo de Cynthia e se sentou, enquanto entregava a ela o prontuário que o médico havia deixado.
— Sobre o que aconteceu, não saiu como eu gostaria e esperava, mas eu agi da forma que deveria e precisava. - Cynthia olhou o papel do prontuário e o manteve em seu colo. - Mas vamos pular a parte que tenho de narrar tudo o que aconteceu lá no templo porque, além de tomar mais tempo do que o do efeito do sedativo, não terá as informações que a Ordem possa precisar. E afinal, quando eu sair daqui, algum jornalista virá me entrevistar e terei que desenvolver um roteiro que agrade ao público exigente por respostas.
  Lance perguntava a si mesmo como ainda se surpreendia com o pragmatismo da mestra de Sinnoh, mas a verdade é que também não tinha muito o que exigir por hora. Se Cynthia queria uma conversa de perguntas e respostas de informações que realmente poderiam ser prioridade, tudo bem. Ele não estava com muita paciência e foco para narrativas mesmo.
— O que você estava fazendo no Templo Ancestral de madrugada?
— Ainda bem que eu estava lá. – resmungou a mulher. – Primeiro me responda: onde estão os meus pokémon?
— Foram enviados para o Centro Pokémon assim que te resgataram.  Pelo que pude apurar, seu Garchomp está ferido, mas o quadro dele é estável. Os demais estão recebendo os devidos cuidados e aparentemente fora de risco.
  Cynthia sentiu alívio. Seus companheiros pokémon estavam bem.
— Então, o único problema agora é ter que lidar com jornalistas intrometidos e internautas insuportáveis querendo visibilidade em cima das pessoas com credibilidade.
— Não vai perguntar as consequências do que aconteceu? Não está preocupada?
— Se o que aconteceu no templo e arredores tivesse sido uma tragédia, você não estaria aqui falando calmamente comigo.
  Mesmo a contragosto, Lance não tinha como refutar isso. Por sorte ou milagre, a batalha que havia acontecido entre Lugia e Heatran não causara caos e tragédias como o que ocorrera em Sootópolis entre Lugia e Grondon.
  Ainda sobre Sootópolis, levando em conta o que ocorrera agora em Snowpoint, Lance tinha quase certeza de que Lugia estava envolvido com o tsunami que se abatera por Sootópolis antes da luta do mesmo contra Grondon.
— Um ou outro problema se é até esperado que acontecesse. – Cynthia continuou a falar. - O maior problema é justamente a destruição do Templo Ancestral. Até eu perder a consciência, o templo já estava bem destruído e com Heatran tendo saído de dentro dele... – ela suspirou. – Deve ter destruído muita coisa...relíquias de valor inestimável, legados secretos de Sinnoh...
— É com isso que se preocupa? – Lance sentiu uma súbita raiva surgir em si. – Sabia que um treinador pokemon, praticamente uma criança...foi soterrada e morta por causa dos destroços do templo que caíram sobre ela? Isso foi uma tragédia!  Cynhia percebeu a raiva dolorida no tom de voz e na expressão de Lance. Ele parecia emocionado demais com aquilo.
— Mas o que um treinador pokémon iniciante estava fazendo de madrugada naquele local de batalha selvagem?
— Óbvio que ele foi atraído por saber os Pokémon que estavam lá! Ele correu pela rua decidido em direção ao templo em meio de toda a movimentação contrária das pessoas! E você não...
— Eu o quê...?
Azuis ameaçadores sobre verdes enfurecidos.
— Não está sensibilizada...?
— Tá, é um infeliz acidente. Mas o que deve ser feito agora sobre isso não é responsabilidade nossa.
— Mas um garoto inocente morreu!
— Como eu ia saber que tinha alguém ali no meio da luta? Quando tudo começou, eu ordenei que Lucario levasse as duas turistas que estavam ali para um local seguro! E me foquei na batalha e em uma forma de afastar aqueles dois monstros antes que causassem uma avalanche que engolisse a cidade! Não tinha como eu saber que mais alguém ia se meter ali! Esse treinador não era problema meu!
   Lance encarou a mestra. Por um rápido momento, aquele tipo de visão fria e desdenhosa o lembrou Dômino. As duas tinham o mesmo tom dourado dos cabelos.
— Ele...o garoto... quando ele soube da batalha foi correndo para lá e...acabou morto.
  Cynthia observou Lance passar a mão nos cabelos e no rosto, o corpo curvado.
— Parece que você está se deixando afetar demais pelo acontecido com esse moleque, que está me culpando e cobrando que eu deveria tê-lo salvo sendo que eu sequer o vi. Mas e você? Onde você estava, mestre Lance?
  Lance trincou os dentes de raiva diante do olhar inquisidor de Cynthia. Parte do momento ardente com Dômino naquele prédio em construção lhe veio á mente.
— Eu posso estar já sob os efeitos da medicação em meu soro, mas ouvi bem agora há pouco você dizer que viu o moleque na rua e que ele correu em direção á luta. Por que você não o deteve?

“Porque fiquei parado ali pensando se deveria ir atrás dele ou...de Dômino.”

— Vamos parar, essa conversa não levará á nada e tampouco trará a vida daquele garoto de volta!
— Certo. Temos que pensar em como nos pronunciaremos sobre tudo isso perante a opinião pública...
— Como pode pensar na opinião pública quando um garoto...
— Talvez eu pense porque eu sou uma figura pública de extrema notoriedade? Sinceramente, Lance...quando acontece algo envolvendo pokémon, a opinião pública inteira se volta nas figuras de autoridades como nós. E em Sinnoh, eu sou a maior delas. Infelizmente acabei parando no hospital, já sabem que eu estou aqui e terei muita satisfação e explicação para dar á imprensa e autoridades.
— Seus focos de preocupação são bem delimitados, pelo visto. Isso realmente diz muito sobre você, Cynthia.
— Cuidado, Lance. Se começar com fofoquinhas, lembre-se que seu teto é de um vidro bem fino.
— Como consegue ser tão indiferente diante de uma morte?
— Porque eu tenho coisas mais urgentes com as quais me preocupar.
  Lance não aguentava mais ficar ali, no mesmo local que aquela mulher. Se levantou da cadeira, tirando do bolso do casaco uma masterball e a colocando com notável raiva sobre a mesa ao lado do leito.
— Parabéns pelo seu grande prêmio tão “bravamente conquistado”, mestra.
  Furioso, Lance saiu do recinto, batendo a porta com força. Cynthia deu um suspiro exausto e dolorido, tombando a cabeça no travesseiro.

 
“Empático hipócrita. É isso que você é, Lance. Todo sempre cheio de si, bancando o herói certinho que chega a ser forçado. Ainda irá ouvir certas verdades, mas por hoje ainda bem que foi embora...”

   Cynthia sentiu seu corpo pesado.

   “Se a tragédia em forma de avalanche, tempestade e lava não atingiu Snowpoint devido a luta daqueles dois Pokémon, foi graças á mim. Eu que batalhei naquele templo junto de meus pokémon. Eu arrisquei a minha vida, eu quase morri tentando deter aquela briga. Se não fosse por mim, não era uma única morte que Lance estaria se lamentando... Se não fosse por mim, não seria um triste incidente pela morte de um inocente e sim uma tragédia que teria levado dezenas de pessoas, no mínimo...”

 
  Olhou para a masterball e um quase imperceptível sorriso de satisfação passou rapidamente em seus lábios.
 Pelo menos havia tido uma recompensa.
 A mestra sentiu uma forte sonolência e sua mente começou a anuviar. A medicação fazia efeito. Mas ainda havia muitas coisas a se pensar. Todos iriam cobrá-la por explicações, satisfações. Sobre o ocorrido, sobre motivos, sobre o tal moleque e principalmente sobre o que realmente aconteceu no Templo Ancestral. E ainda haviam as perdas inestimáveis de itens do museu, sua recuperação que na certa levaria alguns dias e obviamente que a Ordem iria querer conversar. E falando em conversa...ainda teria os membros da Elite4 de Sinnoh.
   Saco.
  Não podia descansar. Precisava pensar sobre o que deveria ser feito. Se recuperar rapidamente e sair daquele hospital. Preparar o discurso público, as explicações para a cúpula política, averiguar com pesar as perdas do museu, planejar com seus aliados o que deveria ser feito a respeito dos Rockets – por que sim, tinha dedo deles naquilo tudo.  
  Malditos problemas vindos de Johto para prejudicar Sinnoh. Até quando esses Rockets iriam roubar e destruir tudo o que lhe era importante?

  “Preciso acabar com eles, preciso reaver ela, preciso saber o que lhe fizeram...”

   Sua visão embaçou e Cynthia fechou os olhos, mergulhando em um sono de lembranças infantis, de tempos felizes com a sua querida irmãzinha.

~*~


   Ele não entendia porque estava se sentindo tão afetado. Já havia visto tantas dificuldades e tragédias e, principalmente, era um treinador experiente, desde sempre ensinado a controlar suas emoções e não deixar que elas aflorassem em situações e diante de certas pessoas.

“Emoções são complicadas. Na dose certa, o tornam sábio e resiliente; na dose errada o tornam fraco e manipulável.”


  O ensinamento de seu avô era rústico, mas correto. Correto para os membros do clã dos dragões de Ecruteak. Um ensinamento importante para o treinador de pokémon, herdeiro do clã Pendragon e Mestre da Elite que ele se tornaria, como de fato se tornou.
 E ter se deixado levar pela emoção e caído na provocação fria e desdenhosa de uma rival perigosa fora um grande erro.
 Sim. Por mais que Cynthia Shirona fosse a mestra de uma Elite4 como ele e que estivessem do mesmo lado nos objetivos da Ordem, ainda assim ela era uma rival. Uma rival perigosa não apenas como treinadora pokémon, mas como – e principalmente – como figura pública e política. Seu patriotismo era algo que a tornavam não confiável em um possível cenário extremo entre Sinnoh e Johto.
  Mas naquele momento de desentendimento com ela, não pensara muito sobre isso. Cynthia era uma pessoa querida por muitos, uma inspiração e alvo de admiração por todos os treinadores pokémon, principalmente os jovens. A própria imprensa tinha uma imagem deificada da mestra sinnohense, diferente da imagem que tinham acerca da Elite4 de outras regiões, principalmente de Johto.
 Porém, ele sabia que Cynthia não era aquela pessoa empática e gentil que mostrava em público. O pouco que vira dela nas entre linhas e também há pouco era uma prova. Ela controlava e mantinha sua máscara muito bem. Mas...até quando?
 Do terraço do hospital, Lance observou os telhados das casas e comércios da cidade. A cidade rodeada por cadeias montanhosas cobertas de neve. O amanhecer nela parecia se seguir sem grandes tumultos, tampouco com a morbidez de tragédia. Não havia fumaça e construções destruídas. Pelo visto, somente o Templo Ancestral realmente fora destruído.
  Por mais que ainda sentisse raiva e tenha aumentado sua antipatia por Cynthia devido a postura e pensamentos delas, tinha de admitir que ela fizera um bom trabalho em proteger a cidade.
  Se aquela batalha tivesse saído do controle, talvez nem ele com seus pokémon dragões seriam capazes de deter a sequência de avalanches.
  Mas mesmo assim, ele deveria ter ido até lá. Deveria ter estado de prontidão. Ajudado, feito seu trabalho. Afinal, era um mestre de Elite. Tinha que cumprir seu papel. Era pra isso que chegara até esse objetivo. Era isso que todos esperavam e cobravam dele.
  E que ele também cobrava de si mesmo.
  Mas ele não havia ido até o local mesmo sabendo do que estava acontecendo. Relutou, pensou e no fim chegou quando a batalha já tinha acabado, Cynthia já havia tombado e o jovem treinador havia morrido.

“ Onde você estava, mestre Lance?”


   Estava em um prédio abandonado, entregue aos seus sentimentos, tomando em seus braços e deixando ser tomado nos braços por aquela mulher.
    Dominique.
  De todas as coisas que ela lhe dissera, que ela dissera que havia lhe confessado, seu nome talvez fosse a única coisa verdadeira que havia contado.
  Haviam se passado anos. Anos que haviam tido aquele relacionamento, anos que não se viam, anos que não sabia - e jurava que nem queria saber – sobre ela. Tinha sido enganado, usado...descobrir aquilo, descobrir sobre ela e como ela não se importava do estrago que fizera a ele foi uma dor e decepção tão grandes... Na época que estiveram juntos, chegou a crer que ela era a corda que surgira em seu poço interior para tirá-lo do fundo.
  Mas a corda se partira e ele continuou no poço de si mesmo.
  E foi difícil se reerguer e sair dali, seguir em frente. A única sorte que teve foi que seu relacionamento amoroso com uma agente Rocket não viera a público, mas temia que isso acontecesse um dia. Se descobrissem, a opinião pública iria massacrá-lo. As pessoas não são piedosas com celebridades relevantes.
  Mas algumas pessoas próximas tiveram conhecimento, chegaram a conhecê-la. E quando a verdade veio á tona, Lance sentiu o peso do julgamento. Havia falhado. Havia decepcionado.
 E havia jurado pra si e para os outros que não nutria mais qualquer sentimento que não raiva por Dominique. Trabalhou seus sentimentos para isso, estava crente há anos que havia superado até porque, não fazia nenhum sentido que ainda gostasse dela.
    Mas ontem a noite descobriu a verdade que recusava a admitir para si.
  Bastou vê-la, sentir seu cheiro, tocar seu corpo, saborear o gosto de seus lábios para tudo o que sentira no passado voltar com a mesma intensidade daquela noite na cabana iluminados pelo fogo da lareira.
  Era um fraco. Sentia vergonha de si mesmo. Como poderia encarar sua família se soubessem que depois de tudo, ele ainda estava apaixonado por Dominique?
  E havia sido por ela, naquele momento na rua, que ele não agira como deveria ter agido. Como deveria agir o mestre da Elite que ele era. E por causa dessa sua atitude falha e sentimental, um jovem havia morrido.
  Lance tirou do bolso do casaco uma pokébola, olhando-a com pesar.

“ Eu...eu não o vi, tampouco conheci, mas sei que tinha sonhos e toda uma vida pela frente...eu vi o corpo dele... eu entendo a preocupação com perdas de material histórico que haviam no templo ancestral e a cidade não ter sido atingida foi uma tragédia evitada. Mas a morte daquele menino ainda é uma tragédia, algo que não deveria ter acontecido!”

  Apertou a pokébola com força em sua mão. Como ficariam os familiares daquele garoto ao saberem da notícia? E os amigos de jornada que tanto pediram para que ele não fosse até a batalha? E o Pokémon que estava naquela pokébola ao sair, nunca mais veria seu treinador...
 Mas a pessoa que deveria se compadecer por aquilo, não se importava. Os artefatos do museu eram mais importantes para ela. Era assim que não apenas Cynthia, mas outros membros da Elite realmente eram. O que importava eram seus interesses e a imagem pública que precisavam manter.
  Repudiava aqueles posicionamentos, aquelas atitudes. Não eram compatíveis com o que deveriam ser. Por isso ele procurava ser diferente. Queria ser diferente. Precisava ser diferente.
 Por culpa de seus sentimentos, perdeu tempo e não ajudou Cynthia na batalha, não ajudou a proteger a cidade, não ajudou a orientar os cidadãos em pânico. Ainda que a mestra de Sinnoh houvesse conseguido evitar uma tragédia, se ela não tivesse conseguido, ele teria uma parcela de culpa muito maior.
 E se isso ocorresse, todos cairiam sobre ele: as autoridades e o povo sinnohense, os demais membros das elites, sua família, a própria Cynthia, os membros da Ordem, seus fãs e haters, a imprensa, a opinião pública...
  Por mais que tentasse, por mais que fizesse. Ainda não era o suficiente. Estava falhando.
  De forma quase automática, Lance começou a esfregar o punho esquerdo na mureta que circundava o terraço, em uma parte na qual o alambrado da base estava um pouco solto, com pequenas pontas de ferro aparentes.
  Seu pulso ardia e queimava e por mais que fosse doloroso, Lance queria que aquela sensação continuasse. Era melhor sentir uma dor física para que não afundasse mais em pensamentos culposos devido a raiva pela atitude de outras pessoas e atitudes de si mesmo sobre toda aquela avalanche de acontecimentos que rodeavam sua mente em uma espiral tão intensa que chegavam a revolver seu estômago
— Aah...!
  Parou diante de um aumento de dor. Olhou para seu pulso, notando os pequenos arranhões de onde saía um pouco de sangue. Apertou o braço do pulso machucado, franzindo os lábios diante da dor ardida que lhe queimava a pele. Esquecera de recolocar as braçadeiras de couro quando fora ao banheiro para lavar o rosto e controlar a crise de ansiedade que teimava em vir quando chegou do Templo Ancestral.
  Mas percebia que estava em uma crise. Naquela crise que tanto o envergonhava e detestava. Os problemas que ninguém, não mais, poderia saber que ele continuava a ter. Sentiu seus olhos arderem e procurou afastar as lágrimas com os dedos, inspirando profundamente.
  O mestre da elite então pegou uma de suas pokébolas e a lançou, liberando seu principal Dragonite.
   O grande lagarto alaranjado se manteve altivo, pronto para agir a ordem de seu mestre: fosse para uma batalha, fosse para uma tarefa.
— Acalme-se, Vermithor. – Lance falou se aproximando e tocando as costas do pokémon. – Não o trouxe aqui para batalhar ou trabalhar. Apenas...vamos voar.
  Dragonite desfez a pose altiva e combativa, relaxando o corpanzil. Embora fossem raros, ele conseguia sentir e até entender a certo ponto, o que seu estimado treinador sentia. E sabia, tanto pelo cheiro suave de sangue misturado a fragrância de pinheiros, bem como o próprio semblante de seu treinador, que ele não estava bem. E por isso esperou pacientemente que Lance o montasse e decidisse para onde ir.
  Lance observou mais uma vez a cidade de Snowpoint. Ainda que Sinnoh não fosse sua pátria, se preocupava com tudo o que estava acontecendo na região e principalmente com pessoas comuns e inocentes que acabavam passando por dificuldades e tragédias por culpa de algo muito maior e que nada tinha a ver com elas. E Lance era Mestre da Elite4 de Kanto e Johto, um dos treinadores Pokémon mais poderosos e conhecidos do mundo. Precisava fazer alguma coisa, precisava descobrir e resolver os problemas. Era sua função, era isso que todos esperavam que ele fizesse. Era isso que tinha de fazer para talvez se sentir bem consigo mesmo.  

    “É como deveria ser e como devo seguir para tentar compensar minhas próprias falhas e erros. Foi o caminho que escolhi seguir e a pessoa que me tornei. E isso deve ser mantido!”
 
  Seu pulso latejava de dor pelo machucado que auto infligira. E talvez fosse isso ou fosse a causa que o levara a essa dor que o estava deixando irritado.
  Lance viu uma crescente movimentação na entrada do hospital e recuou no terraço para que não o vissem. Polícia, autoridades políticas, membros da elite, curiosos e a imprensa estavam chegando, exigindo explicações e respostas sobre o que havia acontecido no Templo Ancestral.   O ideal era que ele, como mestre, ficasse ali cumprindo seu papel de autoridade.
  Mas Sinnoh não era sua jurisdição. Sinnoh tinha Cynthia Shirona.
  E ela mesma deixava claro o quanto aquela região lhe pertencia, que era ela a mestre da elite de lá, então ELA que lidasse com a porra dos problemas.
 Irritado e decidido, Lance murmurou um “Fly” para seu Dragonite, que prontamente obedeceu, alçando voo com o treinador em suas costas.
 Gostaria de voar para longe, bem longe de toda aquela vida. Havia tido uma chance certa vez, mas não o fez. Lidou com as consequências e realidades dessa escolha, aprendeu a crer que foi o certo.
 Então agora, por mais que pudesse querer, na verdade não podia realmente ir para longe. Não para sempre. Então que pelo menos conseguisse voar para longe só um pouco.

~*~
 


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Notas finais do capítulo

Terminando o capítulo aqui...

Pode não parecer mas esse foi um dos capítulos (senão o que mais) demorei para conseguir escrever e finalizar. Isso porque já havia meses que eu não me focava para produzir nessa história então foi com muita dificuldade, auto pressã oe certo cansaço que terminei de escrever. Espero que tenha ficado minimamente bom.

Acho que muitos esperavam ver a batalha de Lugia e Heatran contra Cynthia, mas eu quis aqui mudar as coisas. O que ocorreu nessa tal batalha será mencionado depois, embora eu ainda não saiba qual recurso narrativo irei usar.
O que quis focar nesse capítulo foi um pouco mais profundamente a índole de Lance e Cynthia. Dois grandes mestres muito diferentes entre si, cada qual com suas máscaras, segredos e opiniões firmes e irredutíveis.
Mas ambos são reféns da sociedade como um todo justamente por serem quem são.

Mas apesar disso, esse capítulo foi mais de Lance. Minha ideia era que no capítulo houvesse uma parte entre Crystal e Alice ou mesmo de Dômino, mas com o limite de palavras que coloco pra não me estender demais e em vista de como o conflito de Lance se desenvolveu, os demais ficarão para um capítulo futuro. E podemos ver que Lance éuma pessoa que precisa de ajuda e também precisa não se cobrar tanto...

Enfim, espero poder voltar a atualizar a história logo!

curiosidade: o nome do Dragonite de Lance, Vermithor é o mesmo nome do dragão do rei Jaeherys Targaryen nas Crônicas de Gelo e Fogo.



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