Enquanto Seus Lábios Ainda Estão Vermelhos escrita por Moonkiss


Capítulo 1
Perdendo A Minha Religião


Notas iniciais do capítulo

Olá, meus amores! Então, como está escrito no disclaimer, esta história foi postada primeiramente no Spirit Fanfics (há exatos três anos) e atualmente está sendo revisada no site. Aqui postarei os capítulos já editados. Espero que gostem! Enfim, boa leitura!



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Beije enquanto seus lábios ainda estão vermelhos, enquanto ele ainda está em silêncio. [...] Ame enquanto a noite ainda esconde o amanhecer aterrador.

 While Your Lips Are Still Red, Nightwish.

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Capítulo I — Perdendo A Minha Religião

Escrito por @Moonkiss

 

Aquele sou eu no canto, aquele sou eu no centro das atenções, perdendo minha religião, tentando me manter com você. E eu não sei se consigo fazer isso. [...] Eu achei que ouvi você rindo, eu achei que ouvi você cantar, eu acho que pensei ter visto você tentar. Mas aquilo foi apenas um sonho.

Losing My Religion, R.E.M.

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Recuei dois passos ao vê-lo parar de caminhar a poucos metros de distância. Senti um pequeno frio na barriga, imaginando o que faria comigo ao saber que eu estava seguindo-o. Sasuke é imprevisível. Não fazia ideia qual reação ele teria assim que virasse para trás e visse quem era. Meu coração batia numa frequência absurda; tive vontade de correr e abraçá-lo como jamais havia abraçado antes quando olhei a mochila aparentemente pesada em suas costas. Eu não possuía ligação alguma com o seu passado. Não possuía o direito de interferir nas suas escolhas. Estava ciente de que era loucura sair às escondidas numa madrugada fria, quase sem policiamento nas ruas. Mas queria que ele ficasse. E não conseguiria dormir tranquilamente ao pensar que não fizera nada para impedir que fosse embora, apesar de lá no fundo já saber que iria falhar. Sasuke é teimoso demais para me ouvir. Conforme aquela dor espalhava-se por todo o meu peito, eu senti lágrimas cálidas brotarem em mim. Ele continuava imóvel.

— Já é muito tarde. O que tá fazendo andando por aí? — perguntou de repente, sua voz mais áspera do que nunca. Me recuperando do susto, engoli seco e o respondi num tom quase inaudível:

— Este é o único caminho para sair da cidade.

— Sakura, vai dormir.

No mesmo instante pôs-se a andar novamente, indo em direção ao final da praça. O corpo ereto e cheio de altivez. Sempre achei lindo seu jeito de caminhar. Via graça no modo como erguia levemente o queixo bem desenhado, o olhar fixo e indecifrável, as mãos enfiadas nos bolsos do jeans, seus passos demonstrando segurança. Adorava admirar aquela simples ação. Porém, não naquele momento. Meus lábios tremeram com a indiferença dele, por mais que eu estivesse acostumada com seu silêncio. Sasuke é calado o bastante para me fazer enlouquecer. Era horrível não ter um conhecimento geral sobre sua vida: não escutar seus desabafos, não saber quais são seus filmes ou músicas favoritas, não ver o que se passava dentro de sua alma. Uma lágrima então não resistiu em escapar.

— Por que, Sasuke? — balbuciei, o olhando — Por que você nunca me fala nada? Por que você fica sempre calado? Por que você não compartilha nada comigo?

— E por que é que eu tenho que te dizer alguma coisa? — ele esbravejou, por pouco não cortando minha fala. E parou mais uma vez, sem virar — Não se meta nos meus assuntos. Não é da sua conta.

— Eu sei que você me odeia... desde o início você não conseguia me suportar, você se lembra? Quando nos formamos na quarta série e o nosso time mesmo assim nunca se separou? Eu, você e o Naruto... nós ficamos sozinhos pela primeira vez aqui mesmo neste lugar... você ficou com raiva de mim naquele dia...

Quase permiti que um sorriso fraco aparecesse ao lembrar-me daquilo. Vi de relance o banco mais próximo de nós, onde estávamos sentados naquela tarde ensolarada. E eu, desajeitada como de hábito, investia ridiculamente nas minhas tentativas falíveis de nos aproximarmos. Foi então que Sasuke disse que o irritava. Talvez eu devesse ter me importado e nunca mais ter olhado na cara dele. No entanto, não foi esse o caso. Ele relutou por alguns segundos e afirmou firmemente:

— Eu não me lembro disso.

— Ah, é claro... isso aconteceu há tanto tempo, não é? Mas foi o dia em que tudo começou... foi o nosso começo. Você, eu e Naruto. — comprimi os lábios, tentando ao menos não soar uma voz embargada. Criei coragem de novo — Eu sei sobre a sua família, Sasuke, eu sei. Mas buscar vingança... isso não trará felicidade a ninguém... ninguém mesmo. Nem a você e nem a mim.

— É como eu pensei. Eu sou diferente de vocês. Escolhi um caminho que vocês não podem seguir. Eu sei que nós três nunca nos separamos. Durante algum tempo pensei que poderia pegar aquela estrada... mas finalmente eu me decidi pela minha vingança. — vociferou de repente, abaixando a cabeça. Senti uma estranha determinação vinda dele — Este é o objetivo da minha vida. Eu nunca vou ser como você ou o Naruto.

Eu sabia que Sasuke estava trilhando por um caminho sem volta. Sabia que estava prestes a cometer o maior erro de sua vida. Sabia bem que jamais o teria, que eu havia me iludido por tanto tempo. Por um minuto praguejei contra mim mesma por não ter seguido os conselhos de todos. Estava sofrendo aquilo por consequência dos meus atos. Se tivesse ouvido minha mãe e meus amigos, que diziam tanto para eu esquecê-lo e esperar por alguém que retribuísse meus sentimentos, logicamente não estaria aqui. Mas eu o amava e ninguém compreendia isso. E acabei perdendo o controle, a essa altura com o rosto molhado e as pálpebras inferiores em carne viva.

— NÃO FAÇA ISSO, SASUKE, VOCÊ NÃO PRECISA FICAR SOZINHO! Você me disse naquele dia como a solidão pode ser dolorosa. Eu entendo essa dor agora. Eu tenho uma família e amigos... mas se você for embora, Sasuke... para mim será a mesma coisa que estar sozinha.

— Este é um novo começo. Cada um de nós tem um novo caminho para seguir. — falou com convicção, novamente levantando o queixo. Rangendo os dentes, confessei aos gritos:

— SASUKE, EU TE AMO TANTO QUE NEM CONSIGO SUPORTAR! SE VOCÊ FICAR COMIGO, PROMETO QUE NÃO VAI SE ARREPENDER DISSO! Todos os dias vão ser divertidos, eu posso fazer você feliz... eu faço qualquer coisa por você, Sasuke. Então, por favor, tô implorando, não vá embora! Eu te ajudo com sua vingança, eu farei o que for preciso para que ela aconteça, eu juro! — pus a mão sobre o peito, como se aquele gesto fosse amenizar a dor. Meu corpo estremeceu e minha garganta vez ou outra fraquejava — Por favor, fique aqui comigo... e se você não puder... então me leve com você, Sasuke.

Era óbvio que estava falando sem raciocinar. Contudo, quem ocuparia o meu lugar na vida dele? Quem tentaria pôr juízo em sua mente, aceitar e saber lidar com todos seus defeitos? Sasuke precisaria de afeto quando partisse de Konoha. De alguém com quem realmente se importasse com ele. Que o amasse por inteiro, apesar das feridas amargas que o destino lhe causou. Que não se cansasse da sua pior versão. Se pudesse então eu iria para onde quer que Sasuke fosse.

Algumas nuvens esconderam por completo a Lua cheia, permitindo somente a iluminação dos postes da rua. Grande parte das estrelas parecia esgotar-se gradativamente, perdendo seu brilho como se fossem despencar do céu escuro. Por um instante senti que a natureza decidira contribuir de forma irônica para a realidade que estava vivendo, pois era uma noite tão gélida, tão melancólica. Eu não ouvia absolutamente nada, nem sequer as nossas respirações. Até o som dos motores dos poucos carros que circulavam por ali haviam sumido. Foi quando o vi encolher as mãos afundadas nos bolsos da própria bermuda impecavelmente branca e travar o maxilar. Não conseguia distinguir o que estava sentindo — mas este ponto não é nenhuma novidade. Solucei mais um pouco assim que Sasuke moveu a mandíbula para proferir algo, e foram naquelas frações de segundos que uma sensação inexplicável atingiu-me tal qual um choque elétrico.

— Você não mudou nada. Continua irritante. — ponderou, sério, finalmente me observando por cima do ombro esquerdo. Tinha um olhar frígido, talvez o mais frígido que ele já havia me lançado. Ele estava diferente e eu não gostava nada daquilo.

— SASUKE, NÃO ME DEIXE! — bradei com as últimas forças que restaram em mim — SE VOCÊ FOR EMBORA EU VOU GRITAR!

Subitamente Sasuke correu em minha direção, veloz tal como uma flecha sendo arremessada. Dirigiu-se para trás de mim e me calou com a mão direita. Fiquei sem saber como agir, porquanto aquela provavelmente seria a última vez em que pudesse escutar seu fôlego, sentir seus toques e seu peculiar cheiro de hortelã. Estava entrando num transe, até que ele retirou lentamente a palma da mão pálida e quente da minha boca, vendo que eu não faria mais escândalos.

Antes de conhecê-lo, quando ainda era apenas uma criança, sempre me questionava do que se tratava, como era a famosa sensação de ter ʽborboletas no estômagoʼ que tanto os adultos comentavam sobre. Mas logo após o nosso primeiro contato visual, no instante em que eu fingi não estar observando-o em secreto durante os tempos finais do intervalo colegial devido à súbita impressão dele, pude constatar o quanto aquela expressão encaixava-se de um jeito tão sublime. E era este mesmo embaraço o qual me martirizava assim que escutei pela primeira vez naquela noite o suspiro de Sasuke ao pé do meu ouvido. Uma brisa gelada então, de rasgar os poros da pele — visto que trajava somente um vestido vinho simples de malha —, uivou ao longe, esvoaçando uma madeixa e outra dos meus cabelos. Sem mais delongas a última gota lacrimal cedeu.

— Sakura... obrigado por tudo.

Suas palavras, soando circunspectas e inusitadamente gentis, ecoaram ao vento, gerando em mim um misto de esperança e agonia. Instantaneamente senti o sangue fervilhar em minhas veias feito um vulcão prestes a entrar em erupção. Ele realmente iria embora e eu fui inútil, tão inútil. Minhas pernas ficaram trêmulas. Não conseguia mais sustentar o próprio peso, um nó gigante tinha sido criado na minha garganta.

Mesmo que estivesse usando sua força, pude identificar um pouco de delicadeza quando Sasuke pressionou seus dedos em minha jugular. Antes que pudesse impossibilitá-lo de prosseguir com aquela técnica que aprendemos em nossas aulas de artes marciais, vi um breu cobrir tudo ao meu redor. Todas as tonalidades das árvores, da trilha, dos prédios da cidade e do céu fundiam-se num só borrão, como se a paisagem fosse uma simples pintura em tela abstrata. E não havia mais nada.

Acordei entre gritos e choros. Não era a primeira vez que sonhava com a partida dele, mas todas aquelas cenas ainda me aterrorizavam mesmo após anos. Cada sensação, cada fala, cada gesto. Cada detalhe. Meu corpo parecia faiscar enquanto me debatia insanamente na cama, como se estivesse presa a uma cadeira elétrica; a fronha do travesseiro úmida de lágrimas ácidas, a coluna ardente com o impacto contra o colchão, as cordas vocais em brasas. O tilintar da chuva sobre o vidro da janela abafava meus bramidos, dando a impressão de que ninguém jamais me ouviria, como se estivesse sozinha para sempre. A pior parte dessas crises é o fato de que não conseguia parar sem ajuda, mesmo que eu tentasse ter autocontrole. Sentia-me em um filme de horror.

Subitamente escutei passos apressados vindos do corredor e em seguida alguém rodar desesperadamente a maçaneta da fechadura. Ainda estava escuro, mas não o suficiente para não reconhecer a silhueta de minha mãe. Havia empurrado a porta com tanta força que o ranger dela gerou um som estrondoso. Mamãe correu até mim e segurou solidamente meus braços no intuito de fazer com que eu parasse de me contorcer, logo chamando meu nome num tom firme, porém, tranquilo — por mais bizarra que aquela cena fosse ela não se assustou, já que estava acostumada com meus pesadelos diários.

Aquilo funcionava de uma forma inexplicável. Seus olhos fixavam-se nos meus, entoava serenamente o substantivo próprio “Sakura”, parecendo uma melodia de sereia a julgar pelo jeito que afetava meus sentidos, e me presenteava com o mais amável dos abraços quando eu finalmente saía daquele transe infernal. E hoje não foi diferente. Parei de soluçar aos poucos e juntei as pernas ao meu corpo, quase me encolhendo no canto da parede. Mamãe beijou-me a fronte, sentando do meu lado. Não desviou o olhar de mim nem por um segundo, vez ou outra permitindo que sua inquietação transparecesse através dele. Ela por fim deu um longo suspiro depois de encher os pulmões de ar pesado.

— É. Pelo menos não se machucou dessa vez. — murmurou, agora observando brevemente os arranhões cicatrizados em minha clavícula. Ficou horrorizada quando os viu numa noite da semana passada enquanto eu estava no meio de um surto dos mais assustadores.

— Pode voltar a dormir. Estou melhor. — aleguei, fungando e secando as lágrimas contidas na pálpebra inferior do olho direito.

Às vezes culpava a mim mesma por deixá-la tão apreensiva, mas obviamente eu não fazia de propósito. Numa das primeiras vezes em que ocorreram essas bizarrices minha mãe havia ficado tão aterrorizada com tudo aquilo que resolveu chamar um monge budista para tentar afastar um carma negativo que ela supôs me envolver. Sempre tinha a sensação de estar incomodando meus pais com esses problemas e não queria tornar-me um fardo. Já passávamos por situações tensas devido as nossas condições financeiras, uma filha psicótica não agregaria em nada. Por isso preferia omitir o que sentia deles, ainda que doesse e de vez em quando fosse quase impossível.

— Não sei mais o que fazer com você, Sakura. — ela balançou a cabeça, desesperançada — Isso não é normal. Você tem conversado com a psicóloga da escola?

— Mãe, por favor, não venha com essa história de novo! — resmunguei e revirei os olhos. Detesto quando ela me questiona com isso.

— Eu me preocupo com você, filha. Não faço ideia de como te ajudar.

Apenas em imaginar alguém tentando vasculhar cada parte da minha mente e fingir que se importa com a minha saúde mental quando na realidade o pensamento está na própria conta bancária me fazia ficar enojada. Odiava psicólogos, odiava explanar um monólogo sobre minha vida para desconhecidos. Foi por isso que deixei de frequentar a psicóloga do colégio — apesar de já ter recebido uma ou duas cartas advertindo sobre minha ausência nas sessões, as quais eu falsificava a assinatura da mamãe. A doutora Kurenai é legal, contanto que permanecesse longe da minha cabeça.

— Jura que está bem? — mamãe se esticou um pouco para mim, pondo a palma da mão sobre minha testa para checar a temperatura — A dor de cabeça e a náusea já passaram?

— Sim, eu juro. Não se preocupe.

— Se precisar de algo me chame. Vou terminar seu café da manhã. — avisou, abrindo um sorriso forçado que logo retribuí. Levantou-se e saiu, fechando a porta com delicadeza.

   Mentir para ela era cruciante, mas no geral eu não encontrava outras opções. Havia vomitado quase a madrugada inteira, o que melhorou a náusea que sentia no dia anterior. Porém, as dores de cabeça ainda soavam como o bater de um martelo, embora tivesse ingerido remédios feitos para tal problema.

Observei a rua através da janela, empurrando levemente as cortinas de cetim cor-de-rosa. Moro no subúrbio da cidade, então, além da vistosa cerejeira que meu pai plantara para mim no jardim em frente a nossa casa quando eu tinha sete anos, meu quarto possuía uma visão periférica do bairro, composto por estabelecimentos comerciais e educacionais, alguns locais de lazer, uma praça pública e residências de classe média baixa. Entretanto, a paisagem, que costumava ser até agradável, tornara-se quase invisível com a forte chuva que caía desde o início da noite. Nuvens carregadas e acinzentadas pairavam sobre um céu escuro e sem vida, vez ou outra traçando um simples relâmpago ao longe. Fechei as cortinas, pensando seriamente se iria ou não à escola. Com sono não estava, o pesadelo de minutos atrás cuidou do caso.

O relógio de parede em formato floral marcava seis em ponto da manhã. Deslizei então até a beirada da cama e resolvi levantar logo, apesar de estar sem disposição. Aliás, não sinto disposição para fazer algo há muito tempo. Reconhecendo essa questão, meus amigos sempre me ajudam no intuito de tentarem me animar. Digamos que aquilo funcionava sim, mas era uma espécie de felicidade temporária. Ou melhor, uma alegria. A alegria é um estado emocional, é passageira, te preenche por alguns momentos e se esvai. Felicidade não. A felicidade vem do espírito. Infinda. Aborta a raiva, a tristeza, o rancor quando vêm. E traz paz. Eu com toda certeza não tenho algo assim tão pleno.

Ainda um pouco tonta por conta das dores, calcei os chinelos e peguei meu celular ao lado do travesseiro, pondo-o no bolso do short do pijama verde-bebê. Fui até o banheiro lavar o rosto e em seguida desci para a cozinha. Quase tropecei no penúltimo degrau da escada, por sorte segurava no corrimão. Xinguei alto, e xinguei mais ainda mentalmente porque mamãe ouviu. Ela odeia palavrões.

— Para de falar nome feio, Sakura! — me olhou por cima do ombro, como se eu fosse uma delinquente — Só porque você anda com o Naruto não significa que tenha que aderir os modos dele!

Ela havia preparado um tamagoyaki* e o deixara no prato acima da mesa de jantar acompanhado de uma xícara de chá verde para grelhar uma porção de peixe, que por sinal cheirava tão bem ao ponto de fazer minha boca salivar. De repente senti o telefone vibrar e fui ler a mensagem. Era Naruto.

 

 

 

Idiota (visto por último hoje às 06:02)

 

Sakura, bom dia! 06:01

Vai à escola hoje? Não se esqueça que é o primeiro dia de aula, hein! 06:01

Se você for passo aí pra te buscar. 06:01

Até mais tarde!!  =^.^= 06:02

 

 

— Falando no diabo... — resmunguei, digitando para afirmar e agradecer e estranhando o fato de ele ter acordado tão cedo.

Naruto Uzumaki é meu melhor amigo, talvez a única pessoa que me entendia neste mundo e sabia o que eu estava passando. Devido a isso, de todos os meus amigos, ele era quem mais tentava arrancar um sorriso meu. Embora conseguisse cumprir essa tarefa com seu jeito atrapalhado de ser, ainda me sentia sozinha. Eu guardo meus desabafos de vez em quando. Com certeza o garoto enjoava de ouvir tanta reclamação minha, logo não me arrependia.

— Senta, filha, o peixe já está pronto. Quer um misoshiru*? — se aproximou da mesa com um prato recheado de peixe grelhado e o depositou sobre ela junto com um par de hashis, limpando suas mãos no avental logo depois. Puxei a cadeira e me sentei, enfiando o celular de volta no bolso.

— Só isso já está bom, mãe, obrigada.

— Sakura, você tem que se alimentar direito! — ela exclamou, indignada, enquanto retornava ao fogão — Vou encher seu obentô* hoje e quero vê-lo VAZIO quando chegar em casa, não quero saber de ligações da diretoria de novo por você desmaiar no colégio!

Dona Mebuki ainda não tinha superado o episódio do meu desmaio no centro do pátio do colégio durante as semanas de aula anteriores às férias de primavera. Confesso que eu também não, mas por causa da vergonha que passei, visto que grande parte do corpo estudantil presenciou aquele mico. Não foi pior somente porque não fui socorrida por desconhecidos, e sim por Naruto e Shikamaru. Tive vontade de cortar minha garganta ao acordar na enfermaria.

Depois de ter deixado metade do café da manhã para trás, subi para escovar os dentes e tomar banho. Apanhei meu uniforme já passado no armário, o vesti e pus as meias pretas de cano médio. Abri a gaveta da penteadeira branca e peguei minha típica faixa vermelha, amarrei suas pontas por baixo da cabeça, calcei meus sapatos e peguei a mochila, em seguida descendo para aguardar a chegada de Naruto.

Mamãe, mais eficiente do que um robô, já estava fechando a caixa do obentô e papai comia as sobras do meu café da manhã junto com o prato de misoshiru que eu rejeitei enquanto lia seu precioso jornal. Caminhei até a bancada onde ela pusera meu obentô, o analisando através da tampa de plástico transparente.

— Bom dia, papai.

— Ah, bom dia, filha! — respondeu com um meio sorriso ao se virar por um segundo — Está melhor?

— Sim. — menti, sentindo ainda a cabeça latejar. Olhei de soslaio para mamãe, enfadada por ela ter posto tanta comida — Não precisava disso tudo, mãe...

— Precisa sim, você não comeu praticamente nada ainda há pouco! Kizashi, vou preparar o seu agora, quer um pouco de peixe ou frango frito?

— Peixe, querida, por favor. — ele pediu em voz alta, meneando a cabeça em direção à cozinha. Então me observou e abaixou o jornal, austero — Sakura, quero seu obentô sem um farelo de comida quando voltar do colégio, ouviu bem? Ontem você não almoçou e nem jantou.

— Foi isso que eu disse a ela! — mamãe gritou rigidamente ao passo que derramava água quente na panela de arroz ainda cru.

Antes que eu pudesse mover a boca para defender-me, escutamos duas batidas na porta. Andei até a entrada e a destranquei. Um menino de pele bronzeada, olhos azuis e cabelos loiros naturalmente arrepiados me encarava com um ar divertido, provavelmente controlando um sorriso. Com as mãos nos bolsos da calça preta, ele adentrou.

— Eu iria perguntar se está animada para hoje, mas a julgar pela sua cara de quem chupou limão podre... — ele franziu os lábios, sarcástico. Acenou e sorriu para os meus pais — Bom dia, Sr. e Sra. Haruno!

— Bom dia, Naruto! — responderam em uníssono. Mamãe virou-se um instante, ainda sorridente — Como foi a viagem, querido? Parece que você cresceu bastante nessas férias, está tão bonito.

Naruto viajara com seu padrinho, Jiraiya — que, aliás, também era nosso professor —, durante as férias inteiras de primavera para o Brasil. Já havia me passado o relatório completo sobre a viagem enquanto conversávamos por mensagem; praias paradisíacas, mulheres “gostosas de morrer”, culinária incrível, cultura fascinante, pessoas receptivas e etc. Estava feliz por ele, contudo, só tinha um problema: eu fiquei sozinha na maior parte das semanas. Quase todos os nossos amigos também viajaram, o restante decidiu realizar o que pretendiam fazer ao longo do período escolar, mas não podiam por causa da falta de tempo. Então passei somente uma semana com alguns deles e mesmo assim senti muitas saudades de Naruto, principalmente porque tive que comemorar meu aniversário de dezessete anos sem ele no mês passado.

— Obrigado, dona Mebuki, foi fantástica... — ele coçou a própria nuca, encabulado.

Após nos despedirmos, Naruto e eu saímos de casa. Por alguma magia ou qualquer que seja força do universo, a chuva parecia ter finalmente erguido bandeira branca para o Sol; o céu era pincelado com um tênue tom de azul, onde as nuvens pouco a pouco apagavam-se. Haviam algumas poças d’água ao longo do asfalto e pequenas gotas de orvalho despencavam de flores e de folhas das árvores. Senti o cheiro da terra úmida enquanto pisava na grama do quintal com Naruto, me fazendo recordar de quando brincávamos na lama depois de um dia chuvoso. É engraçado e triste ver como as coisas mudam. Principalmente nós mesmos.

— Nossa, amanheceu chovendo e agora o dia tá clareando, que beleza!! — ele se animou, endireitando a bolsa transversal e admirando tudo ao seu redor. Prossegui inerte.

— Uh-hu, vou até saltitar e cantarolar durante o caminho...

— Argh, quanto mau humor! Mas OK, lá nós vamos te animar!

— Escola e animação são duas coisas que não se combinam.

— Sakura, seja mais positiva. — Naruto deu uma pausa na caminhada a fim de me encarar. Sua voz transmitia chateação — Você mesma não dizia que nós somos responsáveis pelo rumo das nossas vidas? Se continuar a encarar as coisas dessa forma elas nunca vão melhorar.

“Já tentei de tudo, mas elas nunca melhoram...”, pensei, sem coragem de retribuir o olhar. Talvez estivesse mordiscando o lábio inferior, porque minha cabeça ainda doía como a colisão entre a Terra e o maior meteoro que já caiu em sua superfície. Talvez, apesar da dor, o pesadelo de hoje houvesse ultrapassado meu subconsciente tal como um raio de luz. Não queria discutir com ele. Não queria contar sobre o sonho que me atormentava quase todas as vezes em que fechava os olhos. Não queria admitir que, lamentavelmente, meu coração se tornara um gigantesco buraco negro desde que Sasuke foi embora há quatro anos — ainda que Naruto já soubesse disso. Não agora.

Eu apertei a alça direita da mochila e continuei a percorrer a calçada. Daqui até nosso colégio, Konoha-shiritsu Koutougakkou*, são só quinze minutos de caminhada; tempo o bastante para não conversarmos abertamente, e isso me aliviava. O ouvi suspirar e acompanhar meus passos. Sei que ele está tentando ajudar, que ele se importa comigo. No entanto, eu não posso refrear esse caos em mim.

Quando atravessamos duas quadras em silêncio total, encontramos Hinata do outro lado da rua, que não nos vira até Naruto começar a acenar e berrar como um louco. Massageei a têmpora esquerda ao ver aquele escândalo, afinal, ainda eram sete horas da manhã.

— EI, HINAAAAAA!

Minha amiga virou-se, assustada, pondo uma mecha do cabelo azulado e absurdamente liso atrás da orelha. As maçãs do rosto ficaram enrubescidas assim que seus olhos se depararam com os de Naruto e, se não estou enganada, o corpo estremeceu minimamente. Aposto que o coração não agiu de forma desigual.

— Bom dia, Sakura! — ela saudou, sorrindo, vindo em nossa direção. Não olhou diretamente para ele — B-Bom dia, Naruto...

— Bom dia! — cumprimentamos juntos, andando de volta. Naruto levantou uma sobrancelha — Cadê o seu primo?

— Neji não vai à escola hoje.

— Sorte a dele. — rumorejei, sentindo os ossos esfarelando-se num desânimo mortal.

Ao longo do trajeto eles conversavam animadamente sobre para qual faculdade estavam planejando ingressar, o que esperavam neste primeiro dia de aula e também sobre as férias — vez ou outra percebia Hinata fazer caretas diante dos comentários pervertidos de Naruto em relação à beleza das mulheres brasileiras. A tímida menina guardava uma paixão secreta por ele desde a infância. Qualquer idiota notava isso, mas a besta humana era o único que não se tocava. Chegava a ser intrigante.

Minutos depois estávamos no portão da escola. A Konoha-shiritsu Koutougakkou era uma instituição pública de grande porte, fundada há cinquenta anos pelo antigo prefeito da cidade Hashirama Senju. Atualmente a direção do colégio está sob comando de sua neta, Tsunade — inclusive também é a médica geral do hospital de Konoha —, que recebeu o cargo devido ao falecimento do diretor anterior Hiruzen Sarutobi.

Depois de passarmos na diretoria a fim de pegarmos nossas listas de aulas, ficamos no cantinho do pátio, esperando o horário exato de entrada. Avistamos então Ino e Tenten fofocarem com algumas garotas do segundo ano. Trocavam risadinhas e cochichos, como se pertencessem ao primário. Naruto, tão escandaloso quanto um macaco, pôs as mãos ao redor da boca e esgoelou-se:

— EI, TIMÃO E PUMBA!!!

Hinata e eu abaixamos nossas cabeças e nos afastamos um pouco, pois ele conseguiu chamar a atenção de praticamente todos no pátio. Inclusive, logicamente, das meninas, que captaram a mensagem e o olharam cheias de ódio. Mas logo retornaram com suas doces expressões assim que nos enxergaram, correndo para nós e ignorando a presença de Naruto. Ino me abraçou e Tenten fez o mesmo com Hinata.

— Bom dia, minhas queridas, que saudades! — gritou Ino, desta vez repetindo o gesto com Hinata. Tenten a trocou por mim.

— Senti tanto a falta de vocês!

— É notável... — rosnei num tom brincalhão, olhando seus braços me envolverem fortemente.

No instante em que elas se soltaram de nós, ambas entreolharam-se com um ar cúmplice e então conseguiram criar minha primeira gargalhada do dia: Ino e Tenten, respectivamente, deram um soco na barriga e no rosto de Naruto, arrancando gemidos altos dele. Encolhendo-se e alisando as regiões machucadas, ele choramingou:

— N-Nossa, recebi as primeiras pancadas da manhã e nem sequer foram da Sakura, será esse um começo?

— Ridículo, eu já falei pra você não fazer piadinhas sobre o meu nome! — Ino repreendeu de mãos na cintura.

Naquele momento enquanto ríamos da cena, o sinal tocou. Alguns deles resolveram dar uma rápida checagem na lista de aulas ao passo que subíamos para o segundo andar, onde ficavam as salas. O corredor estava lotado e devido a esse fato tinham alunos atropelando uns aos outros. Fui empurrada por Kiba Inuzuka, sem ao menos receber um pedido de desculpas. Um total babaca.

— Ai, não, aula de Física logo depois de ter acordado! — reclamou Naruto, lendo o papel e unindo as sobrancelhas — Eu sou de humanas!

— Nem de humanas, nem de exatas, você é de “burradas”. — Tenten zombou, nos fazendo rir escancaradamente e Naruto a xingar através do olhar. Ino, dando mais uma risada sarcástica para ele, falou:

— Ha, ha! Estamos todas juntas na aula de Biologia!

Naruto seguiu até a sala ao lado da nossa e combinamos de nos encontrarmos no intervalo. As garotas e eu escolhemos nossos lugares e sentamos nas respectivas carteiras. Elas conversavam enquanto o professor não aparecera, comentando que a maioria dos nossos amigos não compareceria hoje. Permaneci de cabeça deitada na mesa, numa tentativa de amenizar a enxaqueca, até que ouvi Ino perguntar em voz baixa:

— Vocês já contaram pra ela?

— Não, não queremos falar disso tão cedo para a Sakura. — Hinata respondeu, falando ainda mais baixo que Ino — E tente não tocar no assunto.

O que está acontecendo? O que as minhas amigas escondiam de mim? Isso está muito estranho. O mais inacreditável é que elas têm a audácia de mencionar a tão misteriosa notícia na minha frente, conquanto deduzissem que eu estivesse dormindo.

Foi então que escutei alguns burburinhos anunciando a chegada do educador. Endireitei a postura. Ino sentava-se ao meu lado esquerdo, Tenten a sua frente e Hinata a minha. Subitamente senti uma pontada de irritação para com as meninas. Será que Naruto faz ideia de algo? O professor de Biologia entrou na sala e nos pomos de pé no intuito de realizar uma mesura rudimentar.

Eu estou com tanto sono e com tanta dor que não consegui distinguir precisamente sua fisionomia, a não ser pela cabeleira comprida e grisalha presa a um rabo-de-cavalo desajeitado. Ai, não, Jiraiya... esse velho tarado de novo. Eu gosto dele, porém, Jiraiya se exalta um pouco quando a matéria é Educação Sexual. E diversas vezes o flagramos observando de forma imoral algumas professoras, outras funcionárias da escola, mas principalmente a diretora Tsunade. Não é à toa que também é escritor de uma saga erótica classificada para maiores de idade.

— Bom dia, classe! — clamou, risonho, e pude sentir a alegria em suas palavras. Ele pousou a maleta sobre a mesa e a abriu enquanto nos sentávamos — Queiram me desculpar pelo atraso. Estão animados para o terceiro ano?

Só eu que não fui contaminada pela mágica da estação primaveril?, refleti perante todo aquele entusiasmo que as pessoas transbordavam. A conversa entre Ino e Hinata não saía da minha mente, logo decidi tirar esta história a limpo no intervalo ou em qualquer outra ocasião disponível. Queria descobrir o porquê de tanto segredo, visto que elas jamais esconderiam algo de mim. Supondo que Naruto ou algum dos meninos poderiam ter conhecimento daquilo, afundei numa estratégia para obter o que queria ao passo que fingia ouvir o “blá, blá, blá” do professor para os alunos novos.

Apoiei o queixo sobre o punho direito e bufei moderadamente, verificando o relógio pendurado acima do quadro negro.

Quarenta e cinco minutos de penitência...

 

[...]

O sinal soou e descemos para a aula que eu mais detesto: Educação Física. Simulei desconhecimento sobre o assunto enquanto caminhava com Ino, Hinata e Tenten rumo à quadra.

Não que eu quisesse inventar algum pretexto para não cumprir as atividades, contudo, não estava em condições de correr como uma barata tonta ao redor do campo, já que minha enxaqueca resolveu me condenar por todos os pecados que cometi ao longo da vida. E não posso tomar medicamentos agora, pois consumi em excesso ontem para tentar acabar com essa dor insuportável.

As garotas e a maioria dos alunos foram ao vestiário para trocar de uniforme. Sentei-me na arquibancada e apenas observei os poucos já vestidos adequadamente preparando-se para exercerem as tarefas. Vi Karin Uzumaki, a abominável prima de Naruto, e sua lacaia Tayuya jogando charme para alguns malandros que faziam aquecimento no centro da quadra. Meu estômago embrulhava só em presenciar aquela coisa nojenta.

No mesmo momento em que algumas moças saíam do vestiário, inclusive minhas amigas, o professor Gai Maito apareceu com um sorriso de orelha à orelha e uma prancheta de madeira debaixo do braço. Ele se assentou do outro lado da arquibancada para preencher alguns papéis enquanto aguardava o restante dos alunos aprontarem-se. Ino, Hinata e Tenten correram ao estádio para esticarem os corpos.

Àquela altura todos os jovens já estavam preparados, e vendo isso o professor tocou o apito pendurado em seu pescoço a fim de sinalizar uma organização entre os alunos. Eles atenderam a ordem, então o senhor Maito os cumprimentou com seu costumeiro brilho no olhar:

— Bom dia, jovens! Animados para o primeiro dia de Educação Física?!

Jurei que caso mais alguém se referisse à palavra “animação” ainda hoje eu enfiaria alfinetes nos meus olhos. Escorei a cabeça no colo, mas escutei quando Gai apresentou-se à turma e ordenou sem mais delongas que os estudantes fizessem vinte voltas na quadra. O que elas estão escondendo de mim?

— Srta. Haruno, não vai participar? — ouvi mestre Gai direcionar-se a mim, e levantei o rosto. Ele erguia uma de suas enormes sobrancelhas.

Às vezes nós dizíamos que Rock Lee, um amigo nosso, é o filho perdido dele por serem extraordinariamente iguais, tanto na aparência quanto no espírito: têm o mesmo corte de cabelo, a mesma forma de sorrir e agir e as mesmas sobrancelhas do tamanho de taturanas. É assustadora a semelhança entre ambos.

— Não, senhor. Estou com muita dor de cabeça.

— De novo, Sakura? Você, uma menina de dezessete anos, tão jovem e já sofre com essas dores? Isso é trágico! — queixou-se, recordando que essa enxaqueca não é de hoje. É impressão minha ou ele está implicitamente me chamando de velha?

— Pois é.

— Tudo bem, mas prometa que vai se cuidar!

Assenti ao professor à medida que ele voltava ao meio do campo. Numa tentativa de não pensar sobre o segredo das garotas e não focalizar nas dores, fiquei tão entretida em ver o sofrimento dos alunos que não senti a aproximação de Gaara. Ele esfregou carinhosamente meu couro cabeludo, e mesmo assim pregou-me um susto. Devolvi o sorriso discreto.

 — Desculpe. Por que não está lá? — indagou, se sentando ao meu lado com os cotovelos apoiados sobre os joelhos. Respondi, entediada:

— Enxaqueca. E você?

— Por não querer mesmo. — Gaara riu brevemente e eu também, até exibir uma expressão preocupada — Deveria ter ficado em casa.

— Minha mãe discordaria dessa ideia.

— Deite a cabeça aqui então por enquanto. — ele convidou, inexpressivo, indicando seu ombro direito e ajeitando-se. Não resisti à oferta.

Apesar de sua aparência um tanto grotesca, não é uma pessoa ruim. Gaara, além de ser considerado um dos rapazes mais bonitos do colégio — embora tivesse uma má fama devido ao seu passado —, é também um grande amigo. Em geral reservado quanto aos próprios sentimentos, por vezes não podia omitir seu lado fofo. Gosto de conversar com ele. Não costuma fazer tantas perguntas, mas demonstra preocupação ou interesse o suficiente, e aprecio isso.

— Hmm, cheiro de flores... — disse, soando como se adorasse o aroma, aproximando o nariz dos meus cabelos. Era o meu xampu com essência de flor de cerejeira.

— É que eu tomo banho. — brinquei e ele riu. Nesse instante Ino correu próximo a nós e vi seus olhos, intensos e extasiados, a acompanharem minuciosamente. Abri um sorriso malicioso — Esse cheiro te lembrou alguém?

Gaara, bem como estivesse sendo liberto de um feitiço, arrastou sua visão para mim. Eu ainda sorria, entretanto, só após alguns segundos que entendeu a brincadeira, levando em conta que Ino trabalha na floricultura da própria família nos fins de semana. Ele crispou o cenho e magicamente sua circulação sanguínea fluiu com mais vigor no rosto pálido, dando-lhe uma coloração avermelhada. Achei graça daquilo.

Suspeito que meu amigo ruivo possui uma queda por Ino, visto que mantêm um relacionamento enrolado há algum tempo. Ela pelo menos demonstrava somente uma atração física por Gaara, enquanto ele, segundo as nossas observações, parecia sentir mais do que simples desejos carnais. Eu não me oporia à ideia de vê-los como namorados, muito pelo contrário.

— Ah, para, não fique envergonhado. Sei que você gosta dela.

— Deixe isso só entre nós, sim? — suplicou, um pouco áspero. Ele tornou o olhar para Ino novamente, desta vez triste, suspirando — Não faz sentido se apaixonar por alguém que não repara em você...

Optei pelo silêncio e continuei encostada sobre si, sentindo-me mal por ter tateado sua ferida, principalmente porque eu o compreendo. Isto me faz recordar de quando permiti que minha cabeleira, rósea por natureza, crescesse pela primeira vez aos oito anos de idade. A razão? Descobri que Sasuke preferia meninas de cabelos longos. Até hoje acho aquele ato bem patético, porque, apesar de ter transformado meu visual, ele nunca reparava em mim. Será que sou tão feia assim para ele?, pensava. Havia uma época em que minha autoestima decaiu por causa deste fator. Vendo o que eu estava enfrentando, mamãe dissera que somos todos perfeitos de maneiras diferentes e que não precisava mudar minha aparência apenas por garotos ou por outros motivos tão simplórios.

Havia perdido a mim mesma, tentando encaixar-me no coração de alguém que não aceitava quem eu era. Com aquele pensamento comecei a cantarolar Losing My Religion mentalmente. Nos Estados Unidos, a expressão “perdendo minha religião” — tradução literal da canção americana — significa perder o próprio caráter em prol de algo sem valor, afinal de contas. Acho que ela seria muito bem introduzida no meio daquela história.

— Sei bem como é... — sussurrei, tentando distrair-me com o pessoal finalizando suas voltas. Gaara me olhou de um jeito tão protetor que o imaginei como meu irmão mais velho e retribuiu o sussurro:

— Sakura, você é uma menina linda, meiga e inteligente. Digo isso com todo respeito e não só porque sou seu amigo.

Parecia realmente que ele tinha escutado meus pensamentos. Eu estou grata internamente pelo consolo, no entanto, ainda não pretendia conversar sobre minha vida amorosa. Raciocinei rapidamente com a intenção de mudar o assunto. Foi então que pus os olhos nas minhas amigas, as quais já estavam de prontidão para desempenhar o salto à distância imposto pelo senhor Gai para as meninas. Me senti constrangida por perguntar, mas preciso saber o que se sucede de tão sério.

— Eu ouvi um papo entre Ino e Hinata, que diziam que vocês escondiam algo de mim e não querem contar... faz ideia do que seja? — me desencostei dele, o encarando — Prometo guardar segredo.

Gaara engoliu seco, devolvendo um pequeno espanto no próprio semblante e depois fitou o chão. Tentei imaginar no que estava pensando, se ele teria capacidade de mentir ou não, e com isso tive uma sensação esquisita contornando minhas entranhas. Suas olheiras, fortes e literalmente surreais, aparentavam estar mais pesadas de repente.

— Sakura, eu sei sim, mas não tenho permissão de dizer algo sobre. Naruto me mata se descobrir que te contei. Porém, se quer saber tanto assim, fala com ele.

— Farei isso no intervalo.

— Não será necessário, sua chance está bem ali. — afirmou, apontando a nossa esquerda, mais especificamente para Naruto.

Já usando o uniforme adequado para Educação Física e um headphone pendido no pescoço, ele vinha em nossa direção, mas não parecia ter nos visto, pois acenava para algumas pessoas da outra arquibancada em frente a nossa. Juntei toda coragem que há em mim, preparando-me para o que viria a seguir. Vamos jogar as cartas na mesa agora, amiguinhos.

— GAARA! — Naruto praticamente gritou quando nos avistou — ATÉ QUE ENFIM EU TE ACHEI, PARCEIRO!!

— PARA DE SER ESCANDALOSO, UZUMAKI, A GAROTA ESTÁ COM DOR DE CABEÇA! — respondeu, um tanto irritado, observando o pessoal que estava olhando — E TODOS ESTÃO OLHANDO PARA VOCÊ!

O grito irônico de Gaara — que ecoou tal qual o estrondo de uma bomba atômica dentro do meu cérebro — foi o bastante para chamar a atenção de alguns jovens e do professor Gai, que até então supervisionava o desempenho dos alunos, e finalmente notou sua ausência nas atividades. Ele se aproximou e colocou as mãos sobre a cintura. Não está nada feliz a julgar pela cara de quem chupou limão podre, como diz Naruto. Só vi Gaara consertar a postura.

— Sr. Sabaku, como é que é? — interrogou o senhor Maito, bem genioso.

— Irei participar do futebol, professor. — notei uma veia ressaltar sobre a testa de Gaara. Detesta quando o chamam pelo sobrenome, dada a má relação com o pai — E peço perdão pelo grito, não foi proposital.

Ligeiramente convencido, Gai mirou o olhar a Naruto como quem anseia por alguma resposta, porquanto ainda estava sem fazer nada. Este pigarreou e sorriu, tenso.

— Eu também!!

O professor, antes de voltar a lecionar, fez um gesto indicando que estaria de olho em ambos. Discretamente Gaara nos entreolhou, me notificando que daria licença para nós conversarmos. Aproveitando o fato de que Kankurou, seu irmão mais velho, estava na outra arquibancada com os colegas, ele se levantou.

— Vou ali falar com meu irmão. — Gaara parou no meio do caminho, me mostrando um sorriso desajeitado — Ah, perdoe-me pelo grito, Sakura. E melhoras!

Lancei um beijo para ele sinalizando aceitação e agradecimento e tornei a visão para Naruto, que havia sentado ao meu lado e colocado os headphones brancos de forma correta, ouvindo música em volume altíssimo. Com ele movendo animadamente a boca para imitar o canto e de olhos fechados, me aproximei a fim de cutucá-lo enquanto escutava claramente a voz de Axl Rose e os solos de guitarra estourando seus tímpanos. Como ele não fica surdo?!

— Naruto, preciso conversar contigo! — falei em tom alto o bastante para que notasse que eu estava chamando-o. Ele atendeu, sobressalto, pondo aquele troço de novo no pescoço.

— Ah, desculpa, testuda!! Conte tudo, estou a sua disposição!

— Ouvi Ino perguntando à Hinata se vocês já haviam me contado sobre alguma coisa. Ela negou e disse que era melhor não me contarem tão cedo. Quero saber do que se trata.

O alívio que senti ao proferir aquilo pareceu como se eu tivesse largado um grande fardo, mas ainda tenho a sensação de que algo está errado. Diferente de Gaara, Naruto não aparentou espanto. Cabisbaixo, conservou-se calado por alguns segundos, até que olhou novamente para mim, desta vez um pouco desgostoso.

— Não sei se devo te contar sobre isso, é um assunto delicado... nós não sabemos qual será sua reação, Sakura. Eu me preocupo com isso.

— Não fique assim, quero saber o que há de tão ruim. Vocês nunca me esconderam nada. — argumentei, retribuindo o olhar grave. Ele fitou o chão mais uma vez e me respondeu, abafando um suspiro:

— Tem razão. Me encontre no portão no horário de saída que eu te conto.

Assenti, festejando internamente por ter conseguido com tamanha facilidade. Porém, eu fiquei um pouco receosa quanto ao modo como eles reagiram e imaginei o nível de gravidade do problema. Qual seria o tal segredo?

Sentindo falta do apoio de Gaara, deitei a cabeça no ombro de Naruto, que retornou a ouvir Guns ‘n Roses, e passamos a analisar a performance das garotas. Está na vez de Shion, a segunda lacaia de Karin, que exerceu o salto com maestria e recebeu o ilustre sinal positivo do professor Maito. Naruto praticamente babava e batia palmas ao observá-la deslizando sobre a areia.

— QUE COXAS MARAVILHOSAS!!

Estapeei a testa dele, pois vi Hinata olhá-lo com desaprovação.

 

 [...]

Consegui fazer com que Naruto acabasse com o que sobrou do meu obentô — posto que comi somente uma pequena porcentagem da comida — no horário de almoço, assim eu poderia evitar as reclamações da mamãe. Durante o restante do dia tive vontade de ficar na enfermaria por causa das dores de cabeça, entretanto, me sinto desconcertada. A enfermeira já deve estar cansada de ver minha cara por lá.

Após a aula de Matemática com a professora Anko, o sinal da saída tocou. Joguei a mochila nas costas, decidindo não esperar pelas garotas. Ignorei o chamado de Tenten quando ultrapassei a porta da sala e desci as escadas pulando de dois em dois degraus. Cheguei até o portão para aguardar Naruto. Alguns estudantes estavam indo embora e eu tentava enxergá-lo no meio da multidão. Um minuto depois o encontrei e acenei para ele.

 — Oi, amigo.

— Vou te levar em casa, então conto tudo pra você durante o caminho. — avisou enquanto se aproximava. Seu semblante era ríspido, o que me deixou um pouco amedrontada.

Instantaneamente as meninas desceram junto com Gaara, que enlaçava a cintura invejável de Ino com um dos braços e carregava sua bolsa como um cavalheiro. Naruto dispensou o assunto assim que eles chegaram mais perto e ignorei as indagações das garotas sobre não ter respondido Tenten quando saí.

E fomos todos embora. Naruto, como prometera, me acompanhou até a entrada de casa. Seus olhos, melancólicos, fixaram-se em mim por alguns segundos quando paramos no quintal. Você está me dando medo, Naruto.

Uma brisa bagunçou nossos cabelos, até que ele finalmente resolveu quebrar aquele silêncio agonizante, sem emoções no timbre de voz:

— Sasuke voltou para a cidade.


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Notas finais do capítulo

OBS.: *Tamagoyaki = omelete japonesa;
*Misoshiru = sopa de miso;
*Obentô / Bentô = marmita tradicional japonesa;
*Konoha-shiritsu Koutougakkou = Colégio Municipal de Ensino Médio de Konoha.


E então, o que acharam? Aceito críticas construtivas. Desde já agradeço a atenção de todos! Beijos, amores, até a próxima!! ♥



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