Jaoam - A Mão do Dragão escrita por MMenezes


Capítulo 9
Capítulo 9 - Asas Escuras




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/759475/chapter/9

Sua mão esquerda, deformada e assombrosa, não parava de tremer desde a noite que fora jogado naquela cela imunda. Sentia dores nas costelas, no peito, nas coxas e no rosto, onde seu carrasco mais se divertia em feri-lo.

— Quem é seu senhor? Diga, quem é seu senhor? Esse punho aqui, ou esse? — ele dizia. — Não consegue falar com isso na boca. Agora me diga, quem é seu senhor?

— Aquele que reina do sol.

— Que porra de resposta é essa? — deu-lhe um soco forte como um coice. — Quem é seu senhor?

— O Principiador, o rei de tudo.

Na primeira noite assumira a surra como um dever, uma honra, uma obrigação com sua fé. Fora o maior de seus flagelos.

Quando Heides parecera não se divertir mais com sua tortura, jogou-o na cela mole como saco de aveia. Pensara em sua ingenuidade que nunca mais o veria, que o pior já havia passado. Logo seria chamado à presença de Lorde Lodas e julgado pelo seu hediondo crime de falar a verdade. Não tenho interesse com um pretenso duque que convenceu-se de que é um juiz. Até onde essa sua língua vai levá-lo Jaoam? Perguntava-se. Disseram que seria levado à justiça do duque tão logo chegasse ao ducado, mas percebeu ao fim do primeiro dia, que a justiça às vezes pode vir montada em um jumento claudicante.

Todos os dias, em horários dispersos, o carcereiro lhes trazia um balde com uma água supostamente limpa, e uma tigela de uma fria sopa intragável, feita com restos de alimentos indesejados. Jaoam fazia uso apenas da água, usando-a para matar a sede e umedecer os ferimentos. Os restos de carne e legumes, que encontrava boiando na sua sopa, tentava dar aos corvos que por ventura lhes fizessem uma visita na diminuta janela.

— Deveria comer — dizia Art, indiferente.

— Não comerei essa merda — falar lhe doía severamente.

— Prefere morrer de fome do que ser enforcado?

— Prefiro ficar bem vivo, e longe daqui — respondeu, tentando atrair a atenção de um corvo com um pedaço de osso.

— E como fará isso? — perguntou Art, levando a tigela à boca, ao mesmo tempo que afastava um rato curioso com o pé; eles vinham de buracos nas paredes e da janela, à procura de cantos escuros e seguros, distantes dos corvos lá fora. — O Lorde Lodas não irá perdoá-lo pelo que você disse, e quando eu for chamado como testemunha, não poderei mentir, se não também receberei um colar de corda. Compartilhou de sua mesa comigo uma vez, mas não por isso morrerei por você.

Jaoam desistiu de tentar atrair a atenção dos corvos e jogou o osso para um canto.

— Lamento que tenha sido arrastado para essa fossa — disse, com uma careta de dor. — Não te pedirei nada, nem sua lealdade e nem a sua vida. Quando sairmos daqui te recompensarei por esses dias, de alguma forma.

Art riu.

— A é? Me diga primeiro como saíra vivo daqui, depois me faça promessas.

Jaoam já tinha uma ideia em mente, mas era um golpe de fé.

— A Casa Alva, pedirei que um Pai ou Mãe interceda por nós, digo, por mim.

Art pigarreou, deixando a nojenta sopa de lado.

— Você tem fé demais nessa gente.

Um rato, carnudo e cinzento, escorria por um canto da cela, esticando-se sob um punhado de palha escura. Jaoam aproximou-se como quem não quer nada. Ergueu o pé, sentiu uma dor aguda nas costelas, e voltou a descê-lo contra o roedor, que guinchou sob o peso de sua bota. Art observava a cena com uma expressão de espanto.

Jaoam pegou o rato pela cauda, mole e com um filete de sangue escorrendo pelos cantos da boca. Voltou a subir no catre e levou o rato à pequena abertura na parede, deixando-o ali como uma torta à janela. Sua mão deformada tremia incansavelmente.

A imagem dos corpos apodrecendo na forca o assustavam.

— O medo está te deixando louco — disse Art.

— Não morrerei aqui, não morrerei voando tão baixo — sussurrou, aguardando que algum corvo notasse o banquete que preparara para ele.

Esperou esperançoso, observando cem pés que caminhavam do outro lado, pessoas que fingiam indiferença à praça e ao espetáculo sangrento que fora armado próximo da escultura da águia. Jaoam notou que uma mulher vinha todas as tardes ao pé do cadafalso, com um bebê no colo, clamando ao guarda por algo que Jaoam não conseguia compreender. Seu marido deve ser um dos condenados, concluíra. Com uma só corda fizeram uma viúva e um órfão.

Enfim, um corvo bateu asas de algum lugar e repousou diante de seus olhos, interessado no convidativo rato morto.

— Isso amigo, é todo seu, só precisa pegar — sussurrou.

O corvo saltitou, se aproximando cauteloso e desconfiado. Seus olhos escuros como duas luas negras pareciam brilhar diante do banquete. Ele bicou o rabo do rato, arrancando um pedaço e engolindo-o em seguida. Então bicou a coxa, abrindo uma fissura escarlate. Então bicou, bicou e bicou. "Aves que voam com a morte", lembrou-se das palavras de seu pai. Palavras fantasmas.

Esticou os dedos para tocar a ave, e por estar distraída com sua refeição, não pareceu se importar com o toque da mão deformada de Jaoam. Mão escura, asas escuras, somos parecidos, pensou.

Cochichou algumas palavras, como uma oração. Escolheu-as de forma seletiva, optando por aquelas que mais lhe doía colocar para fora. A ave deixou de lado o rato dilacerado, e fitou-o com olhos que pareciam dois sóis dourados. Então, bateu asas e voou para junto de suas irmãs, deixando o resto do rato para trás.

— Está tentando fazer amizade com os corvos? — Art perguntou, em tom de incredulidade e estranheza. — Eles irão devorar seus olhos assim que tiverem a oportunidade, não é o tipo de ave em que se possa confiar e ter por perto.

Jaoam sentou-se no pobre leito, sentindo as terríveis dores pelo corpo. Encolheu-se como uma criança e sorriu nervoso.

— Não julgue um pássaro pelas asas — fechou os olhos, tentando afastar os pensamentos de dor. — Prefiro um corvo do que mil águias de ouro.

Então adormeceu, intranquilo e febril. Rezando para que o julgamento ocorresse o mais rápido possível, e que seu amigo tivesse entendido suas palavras.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Jaoam - A Mão do Dragão" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.