Jaoam - A Mão do Dragão escrita por MMenezes


Capítulo 8
Capítulo 8 - Os Condenados




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Quando chegaram ao ducado de Lodas, a noite já havia caido e os portões se fechado.

Jaoam contemplava o vazio do céu, exaurido pelo esforço em acompanhar o trote do cavalo que o puxava, lutando para não tropeçar e ser arrastado pela estrada. Majestade, tenha piedade, pensava. Estão me tratando como um criminoso.

No instante que viu as espadas ladeando seu pescoço, já se imaginava um homem morto. Poderia tentar dizer duas ou três palavras e com alguma sorte evitar a própria morte. Pedir desculpas pela ofensa ao tão adorado duque e, quem sabe, pagar uma bebida para os fidalgos; mas Jaoam não era o tipo de homem que voltava atrás com suas palavras. E as coisas aconteceram tão rápido. Em um instante calculava o tempo que levaria para chegar a pé até o ducado, no outro amarravam suas mãos a uma corda e um pano a sua boca.

— Repetirá o que disse diante de um julgamento, ai veremos o que acontece — disse um dos seus captores.

A ironia é que estava indo exatamente para onde queria. De carona, puxado como um boi preso às rédeas, mas estou indo para onde queria, o pensamento lhe fazia rir de nervoso. Ninguém dirá que não consigo o que quero.

Um dos fildagotes fez sinal para o guarda na muralha — um muro modesto, menor do que os muros de uma fortificação improvisada. Então, o portão se abriu com um rangido doloroso, permitindo que entrassem.

Sentiu um alívio momentâneo, mas então lembrou-se de que era um prisioneiro. Seus pulsos doíam, quase não sentia os próprios dedos, as cordas lhe haviam mordido a carne de forma a deixá-la vermelha e com gotas de sangue.

Logo quando fora capturado percebeu que não adiantaria se contorcer. Não havia como lutar contra o inevitável.

— Que merda houve com sua mão? — perguntaram.

— Houve uma época que me perguntava isso todos os dias — respondera.

— É um demônio, ou algo muito próximo disso — dissera o ruivo. — Ao menos sabe o seu lugar.

Art havia sido mais resistente, revelando ser dono de uma tenacidade taurina. Rentara resistir, se contorcer, combater o inevitável, mas sem sucesso.

— Não fiz nada — ele protestara.

— É cúmplice e testemunha Art, meu camarada. Tenha o bom senso de vir conosco, estará de volta em um ou dois dias. Talvez com um pedaço a menos, mas já está acostumado.

Resistiu, jogou mesas para o alto, empurrou um dos homens, chutou outro e até clamou ajuda ao estalajadeiro; que fingira nem conhecê-lo. No fim, fora dominado e atado como um animal. As cordas amarradas aos cotovelos — por respeito a suas próteses — lhe deixavam ainda mais desconcertado e sem pose. Mas, ele resistira aos puxões e solavancos da viagem, profundamente esmorecido, mas resistente. Ele tem seu orgulho, observara Jaoam.

O ducado era amplo e estranhamente silencioso. Todo o som que Jaoam ouvia provinha dos cascos dos baios ao pisarem sobre as pedras da rua. E haviam os olhares, uma centena deles. Não os via, mas sentia-se observado de uma maneira condenatória, opressiva.

Ouviu um grito agourento, como o prenúncio da morte. E ele veio seguido de outro, e mais outro. Logo, deu-se conta dos corvos grasnavam, empoleirados nos telhados, árvores, muros, parapeitos, estátuas e cercas. Cem, mil, milhares deles, ecoando um cantochão irritante que fazia seus miolos se remexerem. "Morte. Justiça. Morte. Justiça. Sangue. Lei. Lei. Lei." Diziam as aves, misturados às sombras da noite.

— Calem a boca desgraçados — esbravejou o fidalgo das suíças. — Foi uma péssima ideia ensinar essas aves a falar.

— Foi ideia do lorde, por que não diz isso pra ele? — retorquiu outro.

O primeiro pigarreou.

— Eu deveria é enfiar um deles em seu rabo pra ver se você grasnaria.

— Quietos vocês dois, se não serão vocês no cadafalso amanhã — sussurrou o terceiro. — Vamos só levar esses dois para as celas e terminar com isso.

— Não vai querer aproveitar a presença deles? Pelo menos o não-bardo, faria bem amaciar o couro dele para o julgamento.

— Faça você, prefiro a presença de uma puta.

— Um urso, você quer dizer.

Eles riram de maneira comedida, enquanto arrastavam Jaoam e Art para uma praça parcamente iluminada. Os postes eram como velas cumpridas, emitindo uma luz miserável que cuspia línguas escuras e densas. No centro havia uma rocha esculpida com a forma de uma solene águia. A águia do usurpador, refletiu. Ao seu lado havia outra rocha, martelada mil vezes até ter o formato de uma porta. Jaoam pôde observar que haviam palavras talhadas em sua superfície, mas eram indiscerníveis.

Foi outra coisa que chamou mais a sua atenção.

À meia luz, parecia uma criatura feita inteiramente de braços, mas conforme se aproximava e seus olhos se acostumavam, o cadafalso ganhava forma, revelando suas vítimas, ainda penduradas pela corda que lhes fazia um apertado anel entorno do pescoço. Jaoam sentiu o gosto da bílis subindo por sua garganta. Os corvos haviam feito buracos nas bochechas dos desventurados e levado embora seus olhos como lembrança, deixando para trás uma máscara com um hediondo sorriso vermelho. As órbitas vazias pareciam vigiá-lo conforme ele cruzava a praça, arrastado pelos seus orgulhosos captores. Era impossível reconhecer as feições dos condenados, quem eles foram, já não eram. Mas, uma criança é sempre uma criança, na vida ou na morte.

Majestade, traga sua justiça dos céus, estes homens condenam crianças, pensava. Se não estivesse amordaçado, teria feito uma oração por aquelas almas e por aqueles que deixaram para trás.

Seus captores os conduziram para um edifício próximo de onde era realizado as condenações. Um prédio de pedras cinzentas e janelas que brilhavam à luz da rua. Um flâmula com o brasão do sol atravessado escorria por uma parede, abaixo do estandarte da águia do rei.

— Eu termino isso, encontro vocês mais tarde — disse o ruivo das suíças, saltando do cavalo e pegando-os pelas cordas.

— Merda Heides, vai mesmo fazer isso? Eles já são uns coitados fodidos.

— Só quero ficar um pouco a sós com esse daqui, trocar uma palavrinha, o que há de mais em uma conversa? — o sorriso amarelo e sarcástico, misturado aos ângulos severos de seu rosto, dava-lhe uma expressão aterradora.

Despediu-se dos dois companheiros e seguiu com Art e Jaoam por um beco mal iluminado, fazendo-os seguir na frente. Segurava as cordas por cima de seus ombros, como um guarda-cão andando com seus cachorros. O beco era apertado e fétido.

Art puxava a fila, cabisbaixo, curvado e perdido em algum lugar nas profundezas além dos seu cabelos emaranhados. Eu não seria capaz, mas Art tem corpo para atirar esse homem contra a parede, pensava, inutilmente. Não posso contar com ele, está mais quebrado do que eu.

Havia uma porta de ferro no fundo do beco. O fidalgo às suas costas assoviou, e de repente uma portinhola se abriu, emoldurando um rosto macilento de olhos fundos e avermelhados. Ao reconhecer o tal Heides, o rosto desapareceu, e então ouviu-se o barulho de chaves.

— Entrem — ordenou o captor, forçando-os pela porta.

Havia uma escada indo para baixo, e um cubículo cavado na parede, onde o guarda aninhava-se em meio às sombras, acompanhado de algumas velas e um jogo de cartas.

Um odor nauseabundo subia as escadas, degrau por degrau, chegando ao seu rosto como o golpe certeiro de um martelo.

— É o cheiro da morte e de toda a merda que a precede — disse o homem às suas costas. — Vocês vão se acostumar.

Chegando lá embaixo, havia um cômodo menor do que um quarto, com uma parede feita de grossas barras de ferro, que dividia a sala em duas partes. Haviam jogado palha no chão para encobrir os dejetos, mas a tentativa só servira para reforçar o eflúvio e deixar o chão com um aspecto pegajoso. Do lado de cá das grades, havia um cômodo vazio e a escada apontando para a liberdade. Do outro lado, uma diminuta janela do tamanho de uma mão, quase imperceptível, se não fosse pela parca luz da praça que tentava iluminar a escuridão do recinto; e haviam os vultos, céleres e imprevisíveis, se arrastando pelo assoalho.

— Ignorem as companhias indesejadas, se eles morderem vocês, morda-os de volta — disse Heides, abrindo a porta da cela. — Entre Art, se for bonzinho logo voltará a limpar suas mesas. Você não, não gostei dessa sua cara presunçosa desde o primeiro momento que te vi. Lorde Lodas não gostaria desse seu semblante. Deveria ser mais como nosso amigo Art. Vem, vamos dar um jeito nisso.

Foi uma longa e dolorosa noite. Jaoam não foi capaz de emitir um único pio. Deixei o alaúde na estalagem, lembrou-se em dado momento. Sentia o gosto de sangue a encher-lhe a boca, e fortes dores pelo corpo. Os sentidos estavam o abandonando.

Antes de fechar os olhos, vislumbrou uma luz estranha em algum lugar na escuridão, mas sem ter certeza se estava delirando, sonhando ou morrendo.

Em algum lugar ali perto, pensou ter ouvido os corvos grasnarem seu nome.


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