Jaoam - A Mão do Dragão escrita por MMenezes


Capítulo 10
Capítulo 10 - A Hora Febril




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Um rato aninhava-se nas dobras de sua capa puída, quando despertou com um sobressalto, sentindo-se gelado e enfermo.

Lá fora o amanhecer pintava as ruas de um tom alaranjado, marcando o início de mais um dia de clausura.

Art estava encolhido em um canto, parecendo uma gárgula insone. Fitava Jaoam com debilidade; seu olho azul mais despertado do que o negro.

— Teve um pesadelo? — ele perguntou.

Jaoam suava frio. Sonhara que havia sido enforcado. A falta de ar e o toque da corda ainda estava tão presente...

— Não podem nos manter aqui para sempre — respondeu, temeroso. As dores pelo corpo se tornavam mais suportáveis, mas eram substituídas por uma fome que parecia consumi-lo por dentro.

— O duque gosta de um espetáculo, não gostaria de perder tempo com pouca coisa — retorquiu Art, com uma voz que soava cansada e cavernosa. — Não deve sair do seu berço perfumado apenas para julgar um pobre coitado.

"Chegará o tempo onde a simples menção da verdade será um crime", dizia seu velho pai.

A luz matutina invadia a cela através da fenda na parede, iluminando parcamente aquela imunda escuridão. O odor de fezes e urina ainda lhe embrulhavam o estômago. Os ratos já estavam ficando mais ousados, corajosos, acostumados a sua presença. Poderia acolher um no colo e acariciá-lo como um cachorro.

Seu estômago parecia querer consumi-lo de dentro para fora.

Quando era da idade de onze ou doze aniversários — sua idade ainda lhe era um mistério —, costumava descer a montanha quando Pai Myriel lhe dava um tempo, e às vezes, quando os outros garotos permitiam sua presença, caçava passarinhos com eles e assava-os em fogueiras modestas, do tipo que crianças verdes são capazes de fazer sem ajuda dos mais velhos. A carne era pouca, mas os ossinhos eram facilmente mastigáveis. Aqueles ratos eram mais carnudos do que os tordos e pombos-do-mato ao qual estava habituado. Espantou os pensamentos, não era de carne que precisava. Ainda não cheguei a esse ponto, pensou. Havia um sol nascendo lá fora, era dele que precisava.

Ajoelhou-se ao lado do catre e fez sua oração diária, enquanto ela ainda era possível. Art pigarreou à suas costas; não parecia ter gosto pelos seus hábitos.

— Acha mesmo que há um espectro solene ouvindo suas preces? — ele dissera outro dia.

Quando terminou a oração, ainda sentia-se da mesma maneira. Nenhuma força a mais, nenhuma certeza, nenhuma palavra dita em segredo ao seu espírito. Majestade, não te escuto, não me deixe só nessa hora. Mas o Principiador parecia ter negócios melhores do que ouvi-lo, aparentemente.

Ouviu a porta acima da escada se abrindo, se arrastando no chão como uma pá roendo uma pedra. Uma profusão de passos ecoaram, descendo os degraus de forma irregular. Uma voz grave, impaciente e familiar incitava os novos convidados à pressa, ordenando e rindo. Jaoam sentiu o coração entalado na boca quando viu mais uma vez seu algoz. O fidalgo das suíças vermelhas sorria com a satisfação de uma criança ao acertar um passarinho com uma pedra.

— Trouxe-lhes companhia — ele disse, saboreando as próprias palavras.

Duas figuras igualmente pesarosas desceram as escadas, com as mãos atadas por cordas grossas como serpentes.

Um era um jovem pálido de olhos espantados e cabelos lânguidos. Vestia roupas tão finas e carcomidas que seus ossos eram facilmente discerníveis, dando-lhe o aspecto de um espantalho; feito de vela, ao invés de palha. O desespero exalava por seu olhar, sua boca se abria e se fechava em um ritmo inquieto, nervoso.

Sua acompanhante era uma mulher, uma mulher que Jaoam reconheceu sem dificuldades. Era esbelta, dona de uma tentadora pele de cor oliva. Seus olhos eram profundamente verdes, e poderiam ser encantadores em outros tempos, mas a tristeza os adornara com veias vermelhas como vermes, e olheiras densas como a máscara de um salteador. Seus cabelos estavam sujos e quebradiços, e chorava copiosamente.

Jaoam afastou-se da grade assim que o fidalgote se aproximou.

— É assim que eu gosto de ver — ele disse. — Veja só como fiz bem a você, agora sabe o seu lugar. Vamos, entrem.

O rapaz obedeceu, mas a mulher atirou-se aos pés de seu captor assim que ficou entre o limiar da liberdade e o cárcere.

— Por favor sar, tenho uma menininha, nem um ano ela viveu ainda, só tem a mãe, coitadinha. Se chama Vera, pois nasceu no início desse verão, é tão doce quanto um pêssego, o senhor concordaria se a visse. Deixei ela com uma conhecida, mas ela só tem a mim para criá-la e alimentá-la, não tem nenhuma herança, coitadinha — ela suplicava, derramando-se em lágrimas. — Eu só queria poder enterrar meu filho e meu marido, o senhor entende, não entende? Para que seus corpos retornem à terra, como é devido. Oh meu senhor, o que será de minha adorável Vera sem seu pai e sem sua mãe?

— Deveria ter pensado nisso antes — rugiu o homem. — Entre mulher.

— Mas...

— Entre! O duque saberá o que é melhor pra você.

Assim que ela se arrastou para dentro da cela, a porta se fechou a suas costas. Então o ruivo se foi.

— Você disse que daria certo, você disse, você disse que daria certo — dizia o rapaz.

As atenções da mulher se voltam para suas lágrimas.

— Eles vão me enforcar, com certeza vão me enforcar. Céus, por que fui te escutar? Você me condenou... por causa de alguns trocados... vou morrer por causa de alguns trocados.

A mulher abafava o soluço com as mãos.

— DIGA ALGUMA COISA!

— Se acalme rapaz — disse Jaoam, buscando um tom adequado. — Ela está no mesmo buraco que você.

O rapaz o fitou, seus olhos pareciam duas pedras molhadas. Olhou para os hematomas ainda recentes no rosto dos dois veteranos de celas, e notando talvez algum indício de autoridade, calou-se.

O silêncio reinou na cela pelo tempo que pareceu uma eternidade, sendo interrompido apenas pelo choro contínuo da viúva.

Jaoam achegou-se a ela com cautela e prontidão.

— Minha senhora... — era ainda tão jovem, e bela, e viúva. — Senhorita — colocou a mão boa no ombro dela, de forma acolhedora. — Ficará tudo bem.

Ela pareceu olhá-lo pela primeira vez. As lágrimas lavavam seu rosto. Jaoam notou que havia dois buracos vermelhos na boca, onde antes dois dentes completavam um sorriso.

— Como tem certeza disso? — ela perguntou, com a voz embargada.

— Ele tem fé — inquiriu Art.

Jaoam o ignorou.

— Tenho fé...

— Eu também tenho... tinha — ela buscava controlar a respiração. — Me casei sob a benção do Pai-mor, meu marido e eu trabalhamos por um ano inteiro para pagar por ela. Pagávamos os dízimos com frequência, sem nunca reclamar, e sempre oferecíamos ofertas no Dia do Fogaréu, para começar bem cada ano. Meu filho foi ungido na água da santa força, e minha filha na água da santa sabedoria, pagamos por essas unções sem protestar, como era devido, meu marido e eu. Fizemos tudo conforme nos ensinaram os Pais e Mães, mas no dia do julgamento nenhum, NENHUM, Pai ou Mãe intercedeu falou pela gente. Enforcaram meu marido e meu filho... oh céus, oh céus.

Jaoam não entendia. Pai Myriel lhe contara tudo sobre a Casa Alva, tudo sobre a fé. Conhecia os nomes dos doze Patronos originais, aqueles que haviam destronado o terrível déspota há mais de mil anos. Barrit, Araliv, Garel, Tezlael, Raqqar, Leohard, Elzard e Mandriel, Aleanara, Howko, Judaqe e Keseive. Todos lembrados em vitrais em torno da santareira, para que ela fosse iluminada por suas luzes, para que os povos lembrassem daqueles que sangraram por Elvorem. Sabia que a Casa Alva já teve um número preciso de seiscentas e sessenta e seis locações, de Santaguas aos Ermos de Outono, mas que agora seus números não deveriam passar de uma dezena; como constatava amargamente. Suas árvores, tão antigas quanto as estrelas, marcavam o andar das eras. "Eram brancas, outrora" dizia seu pai. "Mas se tornaram vermelhas de tristeza." Aquilo nunca fez sentido para Jaoam. A Casa Alva não possuía portas e fechaduras, para que ninguém fosse impedido de entrar, ou de sair. A Casa Alva ungia as pessoas com a pegajosa seiva da santareira, para que o "sangue da terra" as guardasse. A Casa Alva cuidava dos órfãos, dos velhos, doentes e indesejados. A Casa Alva não gostava de música, porque ela empertigava o coração dos homens e afastava-os dos santos costumes. Mas Pai Myriel tinha um alaúde, e sabia tocá-lo, refletiu. A Casa Alva não se entregava à embriaguez. A Casa Alva habituava-se ao pouco, para que não se tornasse soberba; preferiam jejuns frequentes e almas satisfeitas do que barrigas cheias e almas entorpecidas. A Casa Alva nunca tivera uma figura central se não o Principiador, para que ninguém se achasse o maior entre os maiores. A Casa Alva guardava as oito leis deixadas pelos Patronos, para que o novo mundo não se enveredasse pelas estradas do velho. A Casa Alva rezava no amanhecer quando o Principiador despertava, e às vezes quando a alma pedia. A Casa Alva era renúncia, devoção, sacrifício, caridade e prontidão. A Casa Alva não cobrava por bençãos. A Casa Alva não cobrava dízimos. A Casa Alva não pedia por ofertas para "dia do fogaréu"; fosse lá o que isso fosse. A Casa Alva não ungia crianças em supostas águas da força e da sabedoria. A Casa Alva não deixava viúvas desamparadas.

Essa não era a santa instituição que Jaoam conhecia.

A imagem dos enforcados veio a sua mente como uma assombração, e isso o fez lembrar-se de Pai Myriel, morto em seus braços.

— Por que... por que os enforcaram? — foi tudo que veio aos seus lábios.

— O duque, Lorde Lodas, não suporta o barulho, é uma das suas leis, apenas os animais tem esse luxo, como aquelas aves carniceiras. Iver sabia que não podia fazer barulho sem motivos, nós o ensinamos direitinho, mas crianças às vezes só querem brincar, coisa de criança. Ele havia achado a flauta do pai dele, coisa velha, de quando meu amado Oto era jovem e a justiça ainda cabia aos Espadas Cintilantes. Ai céus... se não fosse aquilo... uma coisa tão boba, tão boba. Quando Oto ficou sabendo que o... Iv... Iver foi preso ele veio tirá-lo, mas então foi preso também, por desobediência, desacato, sei lá. Meu pobre Oto, sempre foi tão direito. Eu só queria enterrá-los, para que tivessem paz, para que tivessem paz. Oh meu deus. Agora serei eu, Lorde Lodas irá me enforcar por roubo, mas minha família me pertence, não podem me culpar por tentar roubar o que é meu. Eles não queriam me deixar enterrá-los, queriam deixá-los aos corvos, como uma lição, e eu só queria que tivessem paz. Até vendi meus dentes, para que tivessem um velório digno, nos ditames da fé. Oh céus. Agora minha pobre Vera será órfã de tudo.

Jaoam percebeu que não encontrava palavras para acalmá-la e confortá-la. Era tudo que mais queria naquele momento, ser abrigo para aquele coração quebrado, para aquela alma infeliz. Mas percebeu que não tinha como ajudá-la, que não levava tanto jeito assim com as palavras.

— Enviaremos uma mensagem para o Grã-lorde dessas terras.

— Lorde Elgarden tem seus próprios dragões para se preocupar — inquiriu Art. — Mesmo que alguma mensagem chegasse à ele, ele não poderia ajudar.

— Temos que ter fé — disse, sem convicção.

— Ter fé em quem? — indagou a mulher.

Jaoam não teve tempo de responder, seus carrascos desciam as escadas, armados com espadas em mãos. Sabia que a hora havia chegado. Enfim o duque de Lodas se mostrara disposto a revelar do que era feita a sua justiça.

Jaoam sentia-se vazio, fraco e febril. Quando o corpo está fraco, o espírito se fortalece, pensava, enquanto o arrastavam para a praça.

Os corvos cortejavam o céu, fazendo sombras sobre a multidão.

Estava preparado para a justiça, fosse ela qual fosse.


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