Jaoam - A Mão do Dragão escrita por MMenezes


Capítulo 7
Capítulo 7 - A Língua de Aço




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Jaoam cortou um pedaço do pernil e o serviu.

— Não é agradável ver um homem como eu comendo — disse Art.

— Sei bem como é — respondeu, deixando de lado os talheres e comendo com a mão.

Art arrastou o prato para junto do peito com um gesto amplo como um abraço. Então usou uma das mãos para arrastar o pedaço de carne para a palma da outra; com uma perícia inesperada. Levou as mãos à boca e arrancou um pedaço.

Depois outro, outro e mais outro.

— Há bastante ainda, não precisa ter pressa — disse-lhe.

Bastou dizer-lhe essas palavras para o estalajadeiro — que havia desaparecido de vista — retornasse. Ele arregalou os olhos como se tivesse visto o sol cair do céu.

— O que está fazendo seu desgraçado? — disse, bufando em sua direção. — Agora deu de se sentar com os fregueses? — desferiu em Art golpes do pano que trazia no ombro, até fazê-lo se levantar. — Desculpe-me meu senhor, esse dai têm vezes que se acha um senhorzinho.

Do outro lado do salão, os figurões que cantarolavam canções obscenas voltaram suas atenções para eles.

— Eu que o convidei a se sentar — respondeu Jaoam. — Não há problemas. É sempre bom uma boa companhia.

O estalajadeiro pareceu perdido.

— Uma boa companhia? Este daqui? — riu guturalmente. — Seria melhor confiar na companhia de um porco. Não vê as mãos? Um ladrão, e dos ruins, por se deixar ser pego. Não precisa ter pena dele meu senhor, ele tem sorte por eu ter lhe dado um emprego e um teto onde dormir. Não é mesmo Art?

Art assentiu, encolhido como um enorme javali acossado por caçadores.

— Ainda assim, quero ele comigo. Não fará mal, não há muito o que se fazer. Pelo que vejo, as mãos dele não farão tanta falta. Juro que o tomarei apenas pelo tempo que durar essa refeição.

— Isso pode tomar bastante tempo — disse o estalajadeiro. — Tem muito serviço a ser feito que não se pode ser visto. Não se preocupe com a barriga desse daqui meu senhor, se é isso que o preocupa, ele tem essa cara esfaimada mas é alimentado todo dia, antes e depois do trabalho. É muito bem cuidado, não é mesmo Art?

Art assentiu.

Até mesmo eu comia mais vezes quando vivia com Pai Myriel.

— Caro estalajadeiro, minha comida está esfriando, deixe nosso Art aqui me acompanhar. Não lhe custará nada e ainda poupará que lhe dê o jantar, veja, tenho muito aqui só para mim.

O dono do negócio olhou de Jaoam para Art, e desse para a mesa servida, calculando com seus botões uma solução para aquela querela.

— Ainda tem o custo do dia de trabalho dele, está querendo alugá-lo por uma refeição, e isso me tira um par de mãos do serviço, mesmo que sejam de pau ainda fazem alguma coisa — disse ele, com um sugestivo sorriso amarelo.

— Qual o valor do dia de trabalho dele?

— Um real de prata.

— UM REAL DE PRATA?

Até Art parecera surpreso.

— É um homem fluente quando quer falar. Sabe até ler, seria um bom Sabedor, se não tivesse caido de mãos em um cutelo, não é mesmo Art?

"Quanto custa uma alma?" Lembrou-se de uma pergunta seu pai lhe certa vez. "Todo o ouro do mundo e mais um pouco."

Jaoam viu quanto lhe restava no bolso. Das cem moedas de prata que Dona Mercy lhe dera, restavam sete moedas brilhantes e mais um punhado de moedas bronzeadas. Isso me deixará com muito pouco, e por que estou fazendo isso afinal?

— Aqui, ele é meu até amanhã nesse mesmo horário — respondeu.

O estalajadeiro aceitou a moeda com uma expressão exultante de quem fizera um excelente negócio. Deu dois tapas de leve no ombro caido do disputado, e disse:

— Ele é todo seu, até amanhã, nesse mesmo horário. Quem diria que alguém um dia veria algum valor em você em Art?

Então retornou para o balcão.

— Não deveria ter feito isso, senhor, foi um mal negócio. Eu não valo muito, quem dirá uma prata inteira.

— Uma alma não tem preço meu amigo. Vamos, sente-se e coma à vontade — disse, continuando sua refeição. Estava um pouco tostada demais, mas para um homem humilde como ele, ao qual nunca foi dado muito luxo, estava adequado. Comeu com gosto, saboreando cada mordida.— De onde é Art? — perguntou, rompendo o meio silêncio.

Art comia com sofreguidão, como um cachorro de rua que enfim recebe algo para comer.

— Vai comer os próprios dedos desse jeito — sentiu-se idiota pelo comentário. — Digo, pode ter calma, está livre.

Art respirou fundo, seu olho azul era úmido e calmo como um lago.

— Desculpe, é um hábito. Já tive modos melhores à mesa, mas isso foi quase em outra vida, uma vida que quase não me lembro mais — ele limpou a boca na manga do blusão carcomido. — Foi gentil comigo senh... Jaoam. Não precisava, mas foi. Não pedi para ter pena de mim, não tenho como pagar.

Jaoam deu de ombros.

— Não quero nada. Sua companhia me basta — respondeu. — Quer mais um pedaço? — não esperou resposta.

Ajeitou um garfo entre os dedos deformados e com a mão direita usou uma faca para fatiar um pedaço generoso. Repousou-o no prato de Art e dividiu-o em duas pedaços fáceis dele comer.

— Por que faz isso?

Porque é o certo, foi seu primeiro pensamento, mas pensou melhor. Olhar para aquele homem desafortunado era como se ver em um espelho. Como dizia Pai Myriel: "O bem que faço ao outro faço a mim mesmo."

— Só o Principiador para te responder.

Ele o fitou desconfiado, os olhos de cores diferentes parecendo duas flechas prestes a serem disparadas.

— Então é isso, é um vigário — disse, franzindo os lábios e devolvendo a carne ao prato.

— Receio que não.

— Nada tem a ver com a Casa Alva?

— Está me vendo uma toga branca?

Art deixou de lado um pouco da desconfiança, mas só um pouco.

— Quem sabe, os Guerreiros do Cilício ainda vagam por ai, vestindo qualquer coisa, trabalhando como mercenários, trovadores, pedintes...

— Pareço tão velho assim?

— Acho que não — retorquiu Art, tomando um gole do vinho. — Seus cabelos ainda estão bastante pretos pra ser um rebelde santo. Precisaria de pelo menos um quarto de século a mais sobre as orelhas pra isso.

— E uma mão a mais — sugeriu Jaoam.

— É, acho que sim. É um beato caridoso, mas prefiro não ouvir suas pregações sobre iluminação, suplício e renúncia. São coisas que nunca me foram úteis.

— Acha que eu tentei comprá-lo para te converter?

— Não é o que as pessoas de fé fazem? Nos dão um pão com uma mão e nos batizam com a outra. Nenhuma caridade é gratuita. A religião daqueles que tem ouro é a opulência, mas a dos miseráveis é a crença nas fantasias de gente velha. Sei que sou um miserável, mas sabendo disso posso ambicionar ser outra coisa, sem nunca esquecer quem sou. Assim não me entrego a esse ópio que algum maluco nomeou de fé.

Jaoam sorriu. O rafeiro tem suas presas, pensou, embascado com a eloquência do homem à sua frente.

— Isso que é falar, deveria estar guardando isso ai dentro faz tempo — cortou para si um outro pedaço de carne, e mordiscou uma cebola. Estourou na sua boca com um ploft, estava quente e adocicada. Então tomou um longo gole de leite. — Mas já te disse que não quero nada de você. Se quiser, coma e vá aproveitar seu dia de folga. É um presente, de um maneta para o outro.

Art abaixou a cabeça, aparentemente envergonhado.

— Não quis ser rude.

— Foi sincero, não rude. Por que me parece que todos odeiam a Casa Alva? Não é o primeiro a fazer cara feia a menção dela.

Art retrucou:

— Não é de Elvorem? Bom, de onde mais poderia ser? Claramente não nasceu em Qirarr, um qirarriano é reconhecível à uma milha de distância. Deixa eu responder sua pergunta com outra pergunta. Por que ninguém é louco de entrar em uma cova por vontade própria?

Jaoam não sabia responder.

— Porque sabe que não é uma boa ideia. Aquela gente de branco é tão altruísta quanto um abutre, com a mesma mão que te ungem, te açoitam.

Pai Myriel lhe contava histórias sobre a falta de estima das pessoas na santa ordem, mas ouvir aquelas palavras, daquela forma, era doloroso. O mundo precisa recuperar a confiança na Casa Alva, pensou.

— A Casa Alva foi uma das colunas que sustentou esse mundo, por mais de mil anos — respondeu.

— Nhe... se você diz! — Art então se voltou totalmente a sua refeição.

E não é verdade?

— Não parece ser dessas terras — disse Jaoam.

— Não pareço? — gordura escorria por sua barba. — Não nasci aqui em Planalvos, mas em Sodorah, se é que isso importa, é coisa de outra vida. Tô aqui nesses domínios há tanto tempo que às vezes é como se tivesse nascido de um desses montes em forma de teta.

Jaoam não conseguiu evitar a risada.

Após um momento, Art se lembrou de devolver a pergunta.

— E você, onde nasceu?

Onde nasci? Gostava de dizer que nascera naquelas bandas onde crescera. Possivelmente os pais eram aldeões que não conseguiam aceitar a ideia de ter um filho deformado, então o soltaram no mato como misericórdia.

— Aqui, um pouco mais para o oeste... bem mais.

— Veio do litoral?

— Quase, cresci em um vilarejo à poucas milhas de um porto.

— Tem mesmo cara de homem do mar. Está muito longe de casa. Está em peregrinação?

— Mais ou menos — retorquiu. — Vou me tornar um Pai da Casa Alva.

Afirmar aquilo lhe dava certo animo.

Art franziu o cenho, mais uma vez, mas não disse nada.

— Pode falar o que tem pra dizer — ordenou.

— Aquela gente não te merece. Seria como um andorinhas no meio de corvos. Brancos, mas ainda assim corvos. Desculpe-me a franqueza.

Aquela comparação o irritou.

— Ela é o abrigo para os perdidos, feridos e necessitados. É uma ordem sagrada com mais de mil anos, que já passou por muita coisa. Você não sabe o que tá falando. Meu próprio pai pertenceu a ela, e era um homem exemplar.

Seu tom parcialmente irado espantou a miserável figura a sua frente para dentro da caverna onde ela se escondia uma hora antes. O olho azul se encolheu por trás de uma madeixa, deixando o olho negro sozinho.

— Me perdoa... senhor. É como disse. Esse aqui que não sabe o que diz — respondeu cabisbaixo.

É como um cão largado, se o alimento ele se satisfaz, se sugiro um pontapé ele se encolhe, pensou.

— Você que deve me perdoar. Cresci apenas ouvindo outras histórias da Casa Alva, mas até onde constatei, seu brilho é mais fosco do que reluzente. Pode me falar tudo que tem pra dizer, não fará mal.

Art permaneceu calado, reflexivo.

— Foi gentil comigo Jaoam, então serei franco contigo, como me pede. Não quero ofendê-lo, mas seu pai já devia ser bastante velho quando te contou essas histórias. Já na época de meu pai as casas brancas já não eram tão altruístas quanto se imagina, e depois que esse rei águia — disse, com um olhar de asco voltado à pintura sobre a lareira — decretou que estava permitido passar as santareiras no fio do machado, aqueles projetos de sacerdotes perderam a indulgência da mesma forma que um animal perde o tesão ao ser capado. Você verá bem isso se for até o ducado.

— Que ducado?

— O ducado de Lodas, fica há algumas milhas daqui, seguindo a estrada para o norte. Não deve levar mais do que três horas de viagem, se tiver pelo menos uma mula manca como montaria.

— Infelizmente só tenho meus pés. Há mesmo uma Casa Alva lá?

— Sim, mas talvez não seja o que você procura.

— Só saberei quando vê-la.

Art fez uma careta, e sussurrou:

— Seria melhor manter distância daquele lugar. Desde que a Guarda da Alvorada sumiu dessas estradas, o Lorde Lodas passou a exercer sua própria justiça. Tem até suas próprias leis, e são rígidas como aço.

Jaoam não mediu o tom da própria voz.

— As únicas leis em que creio são as oito que os Patronos nos deixaram. Meu negócio é com a Casa Alva, não tenho interesse com um pretenso duque que convenceu-se de que é um juiz. Palermas que surrupiam títulos existem desde a época do grande usurpador.

— Fale baixo — inquiriu Art em um sussurro nervoso.

Mas já era tarde.

Subitamente, tudo que Jaoam ouviu foi o silvo agudo de espadas sendo desembainhadas em sincronia.

— Poderia repetir o que disse de nosso Lorde? — perguntou um dos fidalgotes.

Jaoam e sua grande língua, pensava, quase sentindo o gosto do aço.


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