Jaoam - A Mão do Dragão escrita por MMenezes


Capítulo 6
Capítulo 6 - O Entroncamento




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Pisar em espinhos seria uma missão mais prazerosa do que marchar para o leste. Jaoam estava dolorido e cansado, e tudo que queria era uma cama macia onde repousar. E comida, queria muito comer algo quente que enchesse sua barriga. Suas refeições nos últimos dias eram miseráveis e sem graça. Sua barriga ronronava irritada. Estava vivendo em um constante jejum, tentando se convencer piamente de que seu espírito estava se fortalecendo.

Mais cedo naquele dia havia cruzado caminho com um carroceiro e seu filho. O sol fazia a terra rachar e seus olhos se crisparem.

— Boa viagem meu amigo, pode me dizer se estou perto de algum lugar?

Quem respondeu, com prontidão, foi o garoto.

— Tem uma estalagem pra aquele lado, no meio da bifurcação.

O pai o censurou logo em seguida. "Não fale com vagabundos" rugira com o filho.

Jaoam achou por bem nem agradecer ao garoto. Ao menos tenho um par de botas, pensou, avaliando os andrajos puídos do homem, que calçava chinelos à moda das Terras Agrestes, uma sola de madeira amarrada por tiras de couro que se enrolavam nas suas panturrilhas.

Quando as mulas apressaram o trote, tomando distância, Jaoam acenou para o garoto, que acenou de volta.

— Os pais não merecem os filhos que têm.

A estrada cercada por pesarosos pinheiros enferrujados pelo fim do verão, terminava em uma bifurcação guardada por um edifício de dois andares, construído em pedras e argamassa. Haviam três cavalos amarrados do lado de fora, e acima da porta, um letreiro dizia: "Descanso do Rei."

De qual rei? Perguntou-se.

Mal se via, ou ouvia, alguma presença lá dentro, mas a porta estava aberta de forma convidativa, então não teve receios em entrar. Apenas hoje, pensou, um homem não pode viver só de martírios.

Quando colocou o primeiro pé para além da soleira, se sentiu como o intruso em um velório.

O lugar certamente já tivera dias melhores. Por exceção de uma mesa com três fidalgotes, o balconista e um serviçal — que limpava as mesas em um ritmo claudicante —, o amplo salão encontrava-se às moscas.

— Não te darei esmolas — disse o balconista, de antemão.

— Ótimo, não era o que eu estava procurando.

O balconista fitou-o dos pés à cabeça com um olhar severo.

— Então o que quer?

Jaoam já estava acostumado àqueles tipos.

— Uma boa comida, algo para beber e talvez uma cama macia. E um banho, se possível.

Há dias sentia-se desconfortável dentro das próprias vestes.

— Nada é de graça — grunhiu o balconista.

— Tenho dinheiro.

— Mostre.

Jaoam lhe mostrou uma de suas últimas moedas de prata.

— Oras, já é um começo, seja bem-vindo. Art irá atendê-lo, sente-se onde quiser.

Não faltavam opções.

Jaoam ignorou a falsa hospitalidade, estava faminto e cansado demais para dar atenção às grosserias de um bronco. Escolheu um lugar próximo à lareira, por mais que ela não estivesse acesa, algo no quadro acima do console lhe chamava a atenção.

Era uma águia de ouro planando acima de um mar de ratos que rastejavam pelas planícies. Um séquito de corvos, corujas, falcões e outras aves a seguia de longe, formando um cortejo que mais lembrava uma nuvem negra. Não havia sol, o esplendor da águia iluminava todo o mundo.

O símbolo da águia representava a linhagem de falsos reis e rainhas oportunistas que se aproveitaram do período pós-Patronos para se proclamarem suseranos. A influência daquela dinastia já estava enraizada naquela terra como as profundas raízes de um cedro apodrecido.

— O que deseja meu... senhor?

O empregado jogava sobre Jaoam uma sombra tão densa quanto a sombra de um bastião, mas de resto não possuía nenhuma imponência. Era uma figura lamentável, vestida de trapos rasgados nos joelhos e nos cotovelos. Os cabelos escuros mostravam alguma tentativa de arranjo, mas se rebelavam como se tivessem passado por uma tempestade. A barba falhava aqui e ali, por causa de cicatrizes rosadas que salpicam seu queixo. Os olhos profundamente encravados nas órbitas, brilhavam em cores distintas. Um era negro como uma lasca de carvão, o outro azul e molhado. A carranca revelava lábios murchos e franzidos, e um nariz em forma de gancho que já devia ter se quebrado algumas vezes. Tinha a postura de um pinheiro decaído; ombros sem força, costas arqueadas e nenhuma estimativa de voltar a ficar sobre as próprias raízes. Mas o mais doloroso de se ver naquela figura pesarosa, eram as mãos. Rígidas, com dedos estáticos e laqueados. Mãos da mesma cor do assoalho onde todos pisavam.

Mãos de madeira, concluiu.

— Senhor... o que vai querer? — seu tom era de um animal cansado e assustado.

Ao menos foi me dado uma mão boa, e a outra não é de todo inútil, pensou. Esse coitado é mais desgraçado do que eu.

— O que tem para comer?

— Há um pernil que acaba de sair do forno, preparado com verduras, alho e mel. Também temos vinho e leite fresco.

— E quanto me custará tudo isso?

O serviçal até então cabisbaixo, ergueu os olhos e fitou-o como se avalia-se os valores que ele carregava.

— Doze reais de cobre, senhor.

Não me sobrará muita coisa, pensou.

— Traga-me tudo, porção dupla.

— Como deseja, senhor. Tem que pagar adiantado. Normas da casa.

Jaoam não quis discutir, levou a mão ao bolso, pegou uma moeda de prata e colocou sobre a mesa.

— Acho que será o suficiente.

— Paga sua fome e ainda sobra. Irá querer também um quarto?

Jaoam balançou a cabeça. No começo poderia ser uma boa ideia, merecia algum conforto afinal, mas às vezes as escolhas de um homem podem tomar um fôlego quimérico diante de uma nova hipótese.

— A refeição me basta.

O serviçal esticou o braço como um jardineiro estica um rastelo, e então arrastou a moeda até a borda da mesa, onde a empurrou para dentro do bolso do avental. Fez um malabarismo para tirar dali algum troco, e após um instante devolveu-lhe meia dúzia de moedas de cobre, deixando uma cair por entre os dedos de madeira.

Rapidamente ele se agachou para pegá-la.

— Me perdoe.

— Não é preciso. O que houve com suas mãos?

O empregado franziu o cenho. Jaoam idiota, você mesmo nunca gostou de falar da sua.

— Não precisa responder — disse, cauteloso. — Todos temos nossos espinhos e nossos fantasmas.

— A sua... senhor... nasceu com ela?

Jaoam assentiu.

— Está comigo desde que me entendo por gente.

— Tem sorte, as minhas me foram arrancadas por um cutelo. Isso aqui — ergueu as mãos de madeira — não pode ser chamado de mão, é um estigma agourento.

— Sei como é.

— Talvez saiba — olhou sobre os ombros, vendo o estalajadeiro que o fitava com um olhar perscrutador. — Volto logo com sua comida.

Jaoam aguardou observando a mesa do outro lado do salão, onde uma tríade de fidalgotes mantinham uma acalorada conversa a respeito de mulheres, enquanto jogavam um jogo de cartas e tabuleiros. Vestiam gibão de veludo, calças escuras e botas de solado grosso. Traziam no peito o símbolo de um sol com uma expressão inanimada, atravessado por uma espada de cima para baixo. O sol era o símbolo do Principiador, era tão sacro quanto a santareira. Todos morreriam um dia, mas o sol permaneceria, iluminando toda a terra, servindo de diligência para aquele que reinava sobre Elvorem.

Por aqui há heresia por todos os lados, pensou.

— Aquilo não é uma mulher, é um urso com menos pelos.

— Gosto de um pouco de ferocidade na cama — brincou um.

— Devia visitar Belas Louras, as mulheres lá são ferozes, mas macias, nos lábios de cima e nos de baixo. São muito diferentes dessa sua puta peluda.

— Seu senso de juízo é pior do que o dos Espadas Cintilantes, eles pelo menos respeitavam alguma lógica. Você não pode comparar a prima dele com as mulheres de Belas Louras, é como comparar uma boceta com o buraco numa árvore.

— E tem comparação melhor?

Eles riram.

— Um conselho meu camarada, qualquer buraco à meia milha é melhor do que um buraco do outro lado do mundo.

— Minas Gilre nem é tão longe, fui para lá quando rapaz. As mulheres de Belas Louras são macias, cheirosas e coradas, valem cada minuto da viagem.

— E custam o próprio peso em prata. É mais barato comprar um kawiki ou enviar um homem para Alto Aço do que dormir com uma puta de Minas Gilre.

— É um dinheiro bem gasto, todo pau merece um buraco decente onde se enfiar às vezes.

— Para o meu um urso é suficiente.

Jaoam escondeu o sorriso por trás da mão, sentindo-se um tolo pro achar graça naquele sarau indecoroso.

O serviçal retornou, enfim, aninhando uma bandeja nos braços como um pai segurando pela primeira vez o filho recém-nascido. Trazia tudo que lhe foi pedido, e o serviu com uma maestria inesperada.

Então se virou, para atender um dos fidalgotes que acenava para ele.

— Art, seu pedaço de sepultura quebrada, se arraste até aqui — bradou um deles.

Jaoam nem tivera tempo de dizer que não bebia vinho, nem de pedir por um prato e um copo a mais.

Quando ele retornou, disse:

— Os senhores da outra mesa notaram seu alaúde, disseram que uma boa música dará um pouco de vida a esse lugar, pagarão bem, disseram.

Pagarão? A ideia lhe parecia terrivelmente agradável. Se eu ao menos tivesse duas mãos boas.

Jaoam soltou o garfo de madeira. Olhou do bardo para o conjunto de fidalgotes e fez que não com a cabeça.

— Não sou um bardo sares. Um instrumento não faz um músico — disse a eles. — Assim como um cavalo não faz um cavaleiro. Receio não poder dar um pouco de vida a esse lugar.

— Que caralho — pigarreou um deles. — Já não se fazem mais bardos como antigamente.

— Nada é mais como antigamente — retrucou outro.

Então esqueceram de Jaoam completamente.

Quando o serviçal virou as costas para deixá-lo comer tranquilo, Jaoam chamou-o mais uma vez.

— Art, é esse seu nome não é? Pode me trazer um copo e um prato a mais?

Por um instante ele o olhou com um olhar questionador, mas assentiu e foi trazer o que lhe foi pedido.

— Aqui, senhor. Como pediu.

— Agora sente-se e me acompanhe. Há muita comida aqui para um homem só, e eu não bebo vinho, a mente sóbria mantém o espírito aceso — disse entregando ao Art o copo em que ele havia servido o vinho. Jaoam serviu a si mesmo um copo de leite.

— Mas... senhor.

— E pare de me chamar de senhor, o único senhor de verdade é aquele que se assenta no sol. Sou Jaoam, um nome tão humilde quanto o homem que o porta.

Jaoam podia ver naqueles olhos de cores desiguais, duas forças travando uma batalha impiedosa. Art coçou a cabeça, olhou para trás para constatar se o estalajadeiro o observava, e, enfim, tomou sua decisão, como se ela fosse uma oferta inconcebível.

Do outro lado do salão, os figurões que cantarolavam canções obscenas voltaram suas atenções para o par de miseráveis que compartilhavam a mesa.


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