Jaoam - A Mão do Dragão escrita por MMenezes


Capítulo 5
Capítulo 5 - Presságios ao vento




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/759475/chapter/5

Despertou com uma trupe de olhares a fitá-lo com curiosidade. Bastante tempo devia ter se passado, pois o dia estava já mais claro, e meia dúzia de crianças que não deviam ter mais do que seus oito e nove anos faziam um meio círculo a sua frente. "Olha a mão dele. É um mendigo? Deve ter ficado assim por tocar essa coisa." Cochichavam elas.

Jaoam envolveu o alaúde na capa e se levantou, fazendo as crianças se dispersarem como um bando de gralhas assustadas.

Instantes depois a Mãe que lhe recebera mais cedo surgiu.

— Que bom que ainda está aqui, é realmente paciente. Pai-mor está aguardando em sua sala. Pode me seguir.

Então a seguiu para mais adentro.

Havia um jardim interno além da primeira porta, como um salão natural, com a grama servindo de carpete e flores-trepadeiras servindo de adornos nas colunas que sustentavam o andar superior. Adjacente ao jardim, diversas salas e quartos compartilhavam paredes. Homens e mulheres com olhares obstinados e reverentes perambulavam de um lado a outro, cada um dedicado ao seu próprio trabalho. Pôde ver de relance, um quarto onde velhos — bastante velhos — jaziam em leitos baixos, e outro onde vários beliches estavam dispostos ombro com ombro.

Subiram por uma escada, chegando ao segundo andar, onde meia dúzia de portas de madeira permaneciam sempre abertas.

— Pode entrar, ele já está te esperando — ela disse, parada junto à uma porta tão comum quanto todas as demais.

Jaoam agradeceu e entrou no recinto.

— Pode se sentar nessa cadeira ai — disse uma cabeça, emoldurada por livros e cartas empilhadas. — Não repare a bagunça, em minha posição tenho que ser um pouco de tudo, inclusive meio desorganizado, às vezes.

— Não tem problemas, eu entendo.

Mal conseguia ver o rosto do homem, e imaginava que ele também mal conseguia vê-lo. Havia lhe cedido alguma parte de seu tempo, mas ainda estava dedicado aos seus escritos, de maneira que sua atenção estava dividida.

Houve um instante de silêncio quase ensurdecedor.

— Eu...

— Só um momento — disse o Pai-mor.

Mais uma dose de silêncio.

Está me testando? Pensou. Seu pai também tinha o costume de ignorá-lo quando queria exercitar sua paciência. Nessa escola Jaoam já tinha formação.

Foi o Pai-mor que iniciou a conversa.

— Qual seu nome meu filho?

— Jaoam.

— Hm. Um nome tão comum quanto andar descalço.

— Assim como o homem que o porta. E como devo chamá-lo?

— De pai, como é devido. Tem cheiro de estrada.

— Venho de longe, sua eminência.

— Leste? Oeste? Norte? Sul? — ele perguntou, com os olhos ainda preocupados com seus documentos.

— Oeste.

— Hm. Há quem diga que nada de bom pode vir das terras do poente. O crepúsculo não ilumina tanto quanto a alvorada.

Pai Myriel lhe dizia a mesma coisa, mas com mais delicadeza.

— Há diversas distâncias entre o nascer e o pôr do sol.

— Realmente. Então, o que o trás a mim Jaoam de nem-tão-ao-oeste?

Jaoam estava calejado o bastante para saber que não devia se prolongar.

— Busco o sacerdócio, sua eminência. Meu pai — não queria dizer que era adotado — ensinou-me os ditames da fé. Fui instruído na castidade, renúncia, humildade e devoção. Ele... morreu há meio ano, e seu desejo era que eu ajudasse a reerguer a santa ordem alva — sentia os lábios secos e os pés agitados. Lambeu os lábios e firmou os pés no chão.

O Pai-mor calou-se, mensurando suas palavras. Então, arrastou para o lado uma pilha de livros, liberando mais visão.

— O que está escondendo, homem?

Jaoam engoliu em seco. De um lado mantinha a mão deformada oculta em um bolso, do outro mantinha a capa sobre o alaúde de seu pai. Não conseguiria escondê-la para sempre.

Ergueu a mão enegrecida, surpreendendo-se com a frieza do olhar do Pai-mor.

— Nasceu assim? — ele perguntou.

Jaoam anuiu.

— Pobre alma. Você já tem suas dores Jaoam, não tem por que se envolver com as dores alheias.

— Fui criado para ser um Pai. A Casa Alva precisa de todas as mãos disponíveis, não?

— Oh, sim. Mas nem todos nasceram para serem Pais e Mães, a maioria está nessa terra apenas para ser filho — retorquiu ele.

Novamente essas palavras, Jaoam sabia aonde elas levariam. Ele acha que não sou capaz.

— Eu posso, se eu quiser.

— Querer é apenas o primeiro passo, mas não o último. Precisa-se de mais do que vontade para cumprir a missão que o Principiador deixou para nós através de seus Patronos. Um Pai e uma Mãe nascem com certa luz nos olhos meu filho, você não entenderia.

— Não me chame de filho — respondeu franzindo os lábios. — Não é meu pai.

O que estou fazendo? Deveria ir embora antes de falar mais do que deveria, pensou, tentando se acalmar.

— Parece que não. Acho que encerramos aqui.

— Não — disse em tom suplicante. — Dê-me uma oportunidade. Uma chance. É tudo que peço.

O Pai-mor suspirou, refletindo.

— Será obediente?

— Sim.

— Devotado?

— Sim.

— Viverá apenas para a santa obra?

— Já vivo.

— Não possuirá mais nada sob o sol.

— Já não possuo.

— Então que coisa é essa que esconde consigo?

Os olhos do Pai-mor apontavam para a protuberância do braço do alaúde que fazia volume sob sua capa.

Jaoam enrubesceu como se tivesse cometido o maior dos pecados. Trouxe o alaúde para junto das coxas, deixando-o à mostra.

— Não toleramos vagabundos dados à cantoria. Não há espaço para a vadiagem e a santidade em um mesmo coração.

— Pertencia ao meu pai — respondeu. — Não passa de uma lembrança.

— Queime-o.

Queimá-lo? É tudo que possuo.

— Não poderia, nunca. Sequer sei tocá-lo, e nem seria capaz com essa mão hedionda. Ele não influenciará em nada.

— Queime-o — repetiu o Pai-mor, com severidade.

— Mas, por quê?

— É um instrumento usado para atrair, ludibriar e corromper. Veja os bordéis e tavernas, há sempre um bardo a tocar em seus salões, instigando nas pessoas os desejos da carne e o descumprimento das leis que nos foram deixadas. Os grandes senhores quando precisam acalmar os nervos de seus vassalos, enviam trovadores para as praças com a intenção de cantarem mentiras e anedotas que fazem o povo esquecer pelo que protestam. Nada de bom pode vir de um homem com um instrumento de mentiras. Livre-se disso Jaoam do oeste, fará bem para seu coração e sua alma. Um homem devoto precisa apenas dos joelhos dobrados e um coração que se não alvo, desejoso de ser puro.

O alaúde era tosco, rudimentar e sem nenhum atrativo. As cordas estavam desafinadas e duas cravelhas quebradas. Não tiraria algum som dele nem se tivesse um par de mãos habilidosas. Ele consegue me imaginar em uma taverna cantando versinhos? Seria uma boa piada.

— Não faz sentido.

— Talvez não para você. Aconselho-o uma última vez, queime-o enquanto ele ainda não consumiu sua alma por inteiro. Uma única lagarta pode comprometer toda uma plantação, e assim é com um capricho não podado.

Jaoam balançou a cabeça, e irredutível, ergueu-se da cadeira. Mais uma vez. Isso mais uma vez. Haviam mais Casas Alvas ao leste, só tinha que encontrar uma com um pontífice sensato.

— Pense melhor, se tem mesmo tanta vocação quanto acredita ter, não vale à pena sacrificá-la apenas por ter a posse de algo tão ínfimo.

Se é tão ínfimo, por que não o ignora? Pensava.

Bamboleou até a porta e deixou aquele homem com seus livros.

Me julgam pelo que trago nas mãos, que sentido há nisso?

Desceu a escada sem olhar para trás, seguindo para a saída. Atravessou o jardim e o chão terroso onde a santareira se elevava para o céu azul, atentando-se a não esbarrar nas crianças; mas não era preciso, elas mantiveram distância assim que o viram passar.

As risadas delas davam um ar bucólico ao ambiente, quase como uma sinfonia. Há canções em todas as coisas, observou. São tolos e hipócritas, todos eles.

A Casa Alva não possuía uma porta separando a santareira do resto do mundo. Eram umbrais vazios, permitindo que qualquer um fosse e viesse, sem barreiras, sem limitações. Era exatamente como Pai Myriel contava. Cada vitral, cada parede estucada de branco, cada toga descolorida, eram como imaginava. Não é um lugar para você, o pensamento viera a sua memória como uma ponta de flecha.

Então saiu, deixando mais uma Casa Alva para trás.

Em um bolso em sua capa, restavam apenas um punhado de moedas. Dali em diante teria que contar apenas com os próprios pés como veículo de transporte, ou não teria sequer dinheiro para se alimentar. Ou poderia pegar uma carruagem de volta para casa, enquanto há volta. Era uma opção amarga demais para ser cogitada.

Mas talvez fosse a mais sensata.

Se prossegui-se daquela forma logo se tornaria um pedinte. Se retornasse agora, ainda teria o suficiente para quase chegar em casa. Terei uma estalagem me esperando, com um quarto só meu e uma herança maior que um alaúde tosco, pensava.

De repente, como se ouvisse seus pensamentos mais profundos, um vento quente soprou pelas planícies e atingiu sua face. Em cima de um telhado, uma coisa esguia envolvida em plumas brancas apareceu como uma miragem. Apontava para o leste com um dedo longo como uma seta. As feições ingênuas, os olhos miúdos e o sorriso estático davam-lhe uma expressão quase pueril e ingênua; quase até demais para ser inofensiva.

A visão durou apenas um piscar de olhos, mas deixou Jaoam congelado por tempo o suficiente para questionar a própria sanidade. 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Jaoam - A Mão do Dragão" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.