Jaoam - A Mão do Dragão escrita por MMenezes


Capítulo 4
Capítulo 4 - A Casa Alva




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As numerosas estradas de Elvorem eram como raízes se ramificando ao longo dos dez domínios da Águia Dourada, mantendo toda a estrutura firme, sólida, viva.

Por toda a vida, Jaoam vivera às margens de um diminuto número dessas estradas, acompanhando Pai Myriel em suas visitas às aldeias e vilarejos vizinhos, nunca indo tão longe ao ponto de não poder voltar para casa.

Não pela primeira vez — desde que deixara sua pacífica morada — questionava-se se aquelas estradas em que seguia agora eram mesmo para ele. Ainda tem volta, pensava.

Planalvos parecia um cobertor estendido sobre um punhado de almofadas, costurado com retalhos de outras peças avulsas. Dos montes por onde as estradas serpenteavam, podia ver uma diversidade de bosques, pastos e planícies, com os mais variados tons de verde.

— O Principiador é senhor de todas as artes — observou, apenas para compartilhar o pensamento.

O cocheiro da diligência não pareceu entender o que ele disse, então nem tentou se justificar. Às vezes esquecia como um número incontável de pessoas sequer sabiam a diferença entre uma andorinha e um perdigão. Ele tem a sensibilidade de uma porta, pensou.

— Estamos chegando — anunciou o cocheiro, alto o suficiente para que todos dentro da diligência o escutassem.

Agora sim, o Principiador sorrirá para mim, pensou esperançoso.

Viajava ao lado do cocheiro, junto às celas, onde a vaga era mais barata e menos confortável. Quando embarcara, o cocheiro insistira para que ele fosse no interior, onde a poeira e o sol não o marcavam, e o estofado lhe proporcionaria algum conforto.

— Sua bunda e suas costas vão agradecer depois de algumas horas — dissera o homem.

Mas Jaoam estava acostumado à falta de conforto. Conforto é o que faz a alma esquecer do preço de se estar vivo, refletiu nas palavras antigas de seu pai. Então optou pela alternativa que lhe economizaria alguns tostões.

Já podia vê-la ao longe, marcando a paisagem, a majestosa Casa Alva. Ela cintilava ao sol como um tesouro caido do céu, um pedaço de osso envernizado deixado sobre um monte, guardando todos como um mastim guarda suas ovelhas.

Saltou do veículo assim que ele parou à entrada do vilarejo. Suas costas estavam rígidas e suas nádegas doloridas, mas enfim havia chegado. Pagou ao cocheiro com uma moeda de prata e recebeu dele, com certa má vontade, alguns tostões de cobre em troca.

— Sabe me dizer se encontrarei o Pai-mor dessa Casa Alva com facilidade?

— Sei lá, o que eu tenho a ver com essa gente? — disse o cocheiro, dando de ombros e seguindo seu caminho.

Quando perguntou o mesmo a uma mulher corpulenta que tinha uma vegetação crescendo sobre os lábios, ela disse:

— Tenho cara de beata?

— Quanta animosidade — respondeu, seguindo para o monte em frente ao lugarejo.

Um poço marcava a divisa entre as duas áreas, como uma cerca que demarca os pastos. Podia ver que a grama até ali era mais rala e rasteira, enquanto o capim que crescia em torno do monte batia na altura da cintura, e tinha um único caminho retilíneo a abrir espaço entre o cume e o vilarejo.

Galgou por aquele ádito até dar de encontro com a Casa Alva que guardava aquelas bandas. Através da entrada iluminada pelo sol nascente, podia ver a santareira, devidamente erguendo-se através do telhado. Do lado da casa, dois altos conjuntos de arbustos faziam uma muralha verde e intransponível; ou nem tanto, Jaoam observou que à direita, havia um vão com espaço suficiente para a passagem de uma criança. Adjacente aos umbrais, dois vitrais — um de cada lado — davam boas vindas aos visitantes. Do lado direito um homem barbado, vestindo andrajos rasgados, costurados até a decadência. Olhava para o céu com um olhar de súplica. Do lado esquerdo, a figura de um homem alto e rústico como um cavalo de guerra, erguendo uma espada que mais parecia a coluna de um edifício. Esse deveria ter um olhar feroz, mas algo em seu rosto lhe dava um ar débil e melancólico. Barrit e Garel, pensou. Ambos tinham uma estrela acima de suas cabeças.

Lá dentro, encontrou os outros dez Patronos, dez janelas coloridas ladeando a árvore. Jaoam fez um gesto reverente e segurou o alaúde que pendia sob sua capa de viagem, impedindo que ele se colocasse à vista.

— Que seja hoje majestade, que seja hoje que me torne Pai desse mundo órfão.

Teve que aguardar por algum momento diante da árvore até que alguma das figuras cândidas aparecessem para lhe atender. Era uma senhora de olhar cansado, os cabelos ainda louros, mas quebradiços e sem graça. Parecia esforçar-se para manter certa austeridade, mas pendia para frente como quem carrega um enorme peso sobre os ombros.

— Oh, como posso ajudá-lo meu filho? — ela perguntou, com um sorriso que não economizava prontidão. — Tem fome?

— Não de alimento minha senhora — respondeu. — O Pai-mor, ou a Mãe-mor, se encontra?

— O Pai-mor está em seus aposentos, estudando. Não gosta de ser incomodado quando se aprofunda nos livros — ela então observou sua mão deformada. Aproximou-se e tomou-a com gentileza entre suas próprias mãos, sem nenhum receio ou hesitação; não parecendo ver o alaúde que Jaoam escondia. O toque dela era quente e acolhedor. Avaliava os dedos pretos e as unhas amarelas com uma cautela quase cirúrgica. — Está gangrenando.

— Sempre foi obscura dessa forma, desde que me lembro — respondeu, mexendo os dedos retorcidos o quanto podia.

— É a deformação mais severa que já vi. O Principiador deu-lhe um espinho doloroso com que se conviver. A ungirei e orarei por ela, mas não acredito que há tratamento, dependerá da vontade de nossa majestade.

— Não é cura que procuro minha senhora. Já faz muito tempo que me acostumei às dores desse corpo.

Pareceu que suas palavras a agradaram.

— Então o que quer?

— Um momento do tempo do Pai-mor, se possível.

— Não posso incomodá-lo agora.

— Esperarei com paciência.

Ela anuiu.

— Pode aguardar lá dentro, as crianças estão na oficina nesse momento, não irão incomodá-lo com perguntas indesejadas.

— Não há nenhuma pergunta que eu não responderia a uma criança. Prefiro aguardar aqui, se não for incômodo.

Não era, a Mãe deixou-o acompanhado pela santareira e desapareceu pela porta às costas da árvore, o som de seus passos abafados logo deixaram de ser ouvidos.

Será hoje, pensava, sentindo o coração ansioso.

— Se puderem me ajudar, serei grato. Logo serei luz para esse mundo, como vocês foram há mil anos — disse aos Patronos.

Mas eles não responderam, e o silêncio que reinou naquele átrio foi desesperançoso.

— Apenas vidro colorido — pigarreou para si mesmo.

Já deixaram de andar nessa terra há muito tempo, não têm mais nenhuma relação com esse mundo, pensou. Estou só, posso contar apenas com o Principiador para me ajudar.

Mas ele se mostrava bastante resistente até o momento.

Aconchegou-se junto às raízes da santareira, contando quantas moedas ainda tinha e quão longe ainda conseguiria chegar. O saquinho que Dona Mercy havia lhe dado estava mais leve, murcho e silencioso. Se não der certo novamente, posso ter que tomar o caminho de volta, o pensamento não lhe agradava.

A presença calorosa da árvore o aqueceu de maneira que fez seu corpo lembrar-se de todo o cansaço que carregava já há muitos dias. Bocejou, encolheu-se, e adormeceu. "Avante ao leste, sempre ao leste." Dizia uma voz em seu sonho.


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