Jaoam - A Mão do Dragão escrita por MMenezes


Capítulo 3
Capítulo 3 - Criando asas




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Fez uma rápida — mas reverente — oração aos pés da santareira, aproveitando os primeiros raios de sol. Os galhos dela pendiam como um lavrador cansado. Estavam abarrotados de folhas verdes que lembravam ao cetim e frutos de diferentes formas e sabores.

— Não retire sua luz de mim majestade — disse, cravando um canivete no tronco de coloração rubra, até embebe-lo com a seiva vermelha como sangue. Passou a lâmina fria e pegajosa na testa e suspirou fundo. — Se não for hoje talvez nunca encontre forças para ir.

Virou as costas para a árvore e se voltou ao túmulo de Pai Myriel.

— Irei me redimir... não, quer dizer... irei provar que posso. Terá orgulho de mim, vou compensar todo o mal que te fiz.

Que tolo, estou conversando com uma cova, Pai Myriel vive agora com o Principiador em seu castelo de sol, nada tem haver mais comigo, pensou, reflexivo. Mas, se for assim, então por que eu deveria continuar o que ele começou?

Esperava que Pai Myriel pudesse vê-lo lá de cima, e acompanhá-lo de alguma forma. Estar sem ele era tão desalentador quanto estar no coração de uma geada sem nenhuma roupa. Ficarei bem, tenho a benção do Principiador.

Havia pensado em deixar o tosco alaúde sobre a cova, mas olhando agora, Pai Myriel não tinha mais como se servir dele. Os mortos perdem tudo quando deixam essa vida, seus tesouros, suas memórias, seus desejos. Tudo fica para aqueles que ficaram.

— Levarei-o comigo aonde eu for. Será como se você ainda estivesse comigo — prometeu ao corpo que se decompunha sob aquele bocado de terra. Soltou um silvo. — Olha só eu, falando com os mortos. Se estivesse aqui me daria uma bofetada. Mas para mim você ainda vive.

Enfim, despediu-se uma última vez. Era difícil partir daquele lugar. Pai Myriel plantara ali um clima bucólico de santidade e calmaria tão forte que sentia como se estivesse em uma fortaleza intransponível, mesmo não havendo nenhuma parede, apenas a encosta escarpada da montanha e uma árvore vermelha. Colheu tantos frutos quanto podia e guardou-os na trouxa carcomida que trazia consigo, e disse para si mesmo: "Agora vou."

E foi, com um peso tremendo no coração, sentindo como se uma corda tentasse puxá-lo de volta. Se olhar para trás nunca seguirei para frente.

O sol sequer havia pego altura, e o horizonte tinha ainda aquela cor típica do ouro. Rouxinóis, bem-te-vis e outros pássaros silvestres esvoaçam pelo céu, saudando a manhã e o Principiador, que da alvorada admirava toda a Elvorem.

O vilarejo se prostrava aos pés da montanha, sendo apenas um capacho descorado rente a uma mata fechada que se estendia para oeste, acompanhando a estrada por algumas milhas. Há trinta anos Jaoam havia sido encontrado nas profundezas escuras daquela floresta. Era apenas uma criança, faminta, suja e abandonada. Os pais o haviam entregado à própria sorte por causa de sua deformidade — ou assim pensava, era o mais sensato a se concluir —, mas o Principiador fora mais benevolente e o entregara às mãos de Pai Myriel.

Aquele caminho lhe era tão familiar que cada pedra e arbusto lhe parecia uma decoração. Era capaz de olhar para uma sarça e se recordar de como exatamente ela era há alguns anos. A montanha e seus arredores era sua casa, seu abrigo, sua faculdade e seu leito. Agora estava decidido a deixar tudo para trás. Sentia um misto de efusividade e receio. Deveria mesmo partir?

De repente sua contemplação foi cortada por um cheiro agradável de trigo assado, e seu estômago se remoeu.

— Jaoam, despertando com o sol, como esperado — saudou-o Merlo, junto à fornalha, conferindo o estado do pão. — Apostaram que você seguiria uma rotina menos rigorosa sem Myriel, eu duvidei. Os pássaros não deixam de cantar da noite para o dia só porque falta um pardal no bando.

— Não deveria fazer apostas Merlo.

— Bom, foi apenas uma brincadeira. Essas são todas suas coisas? Não vai ocupar muito espaço no quarto que a velha reservou para você.

— Não estou indo para a estalagem dela — respondeu, meio incerto. — É uma oferta generosa, mas não posso aceitá-la.

O padeiro limpou as mãos no avental e fitou-o com curiosidade.

— Então para onde vai tão cedo homem?

— Para o leste, para sempre e mais além. Iniciarei meus caminhos na Casa Alva. Seguirei os passos de meu pai.

Merlo coçou a cabeça, a barriga e por fim, disse:

— Ora, pensei que já seguisse — e completou. — Ainda há alguma Casa Alva no mundo?

— Uma dúzia, um pouco mais, talvez. Pai Myriel me contava histórias, algumas mais isoladas ainda resistem.

— Que dia terrível — disse o padeiro, com um muxoxo. — Perdemos ontem o pai, e hoje o filho. Não vou conseguir convencê-lo a ficar não é?

— Acho que não.

— Deixe-me acordar Leta e as crianças, elas vão querer se despedir. Fez tanto por nós Jaoam.

— Não, por favor — retorquiu de imediato. — Não é preciso, deixe que durmam. Não gosto de incomodar, e prefiro partir sem despedidas.

Os olhos dele se arregalaram.

— Você não pode fazer isso. Quando Leta descobrir que o vi partir e não fiz nada ela cortará meu pau... digo, meus dedos e enterrará um em cada buraco do mato.

— Então é bom não contar pra ela que me viu partir. É melhor que não conte a ninguém, aliás.

— Partirá sem se despedir de ninguém? Estarei morto.

Jaoam riu.

— Se não disser para ninguém que me viu aqui, eu não direi nada.

— Eu guardo as oito leis Jaoam, como Myriel ensinou. Não posso mentir — disse o homem.

— Igualmente eu. Mas omitir e mentir são dois verbos divergentes.

— E se perguntarem se eu o vi?

— Bom, o silêncio vale ouro — riu.

— Fala como um Myriel perversamente eloquente — retorquiu o padeiro, sorrindo. — Ele me contou uma daquelas fábulas dele, era uma só pergunta na verdade. Pode um pardal fazer ninho na lua? Ele me perguntou.

— Se o Principiador assim quiser, ele poderá se aninhar até mesmo onde jaziam as estrelas — Jaoam completou.

— Imaginei que você já soubesse. É um homem devoto Jaoam, a melhor pessoa que já conheci na vida — ele disse, e se corrigiu. — Depois de Myriel, claro. Mas ele já não está com a gente. Espero que chegue mesmo longe na sua caminhada. Tome cuidado com essas estradas, sem a Guarda da Alvorada tá tudo nas mãos do ocaso.

— Não se preocupe Merlo, o Principiador me guarda com o sol e com a lua.

— Com certeza. Tome — disse o padeiro, retirando do forno um grande pão e cortando-o em vários pedaços. Enrolou-os em um pano quadriculado e estendeu a Jaoam. — A primeira fornada do dia da sorte.

— Eu não posso aceitar.

— Não seja bobo homem, pega ai que tá quente.

Jaoam pegou meio sem jeito e agradeceu.

— Poderia rezar por mim uma última vez?

— E o que te impede de rezar por si mesmo? Tem uma boca bastante falante — sorriu.

— Poderia, mas não levo jeito para reza. E mesmo se levasse, é da sua voz que o Principiador mais se agrada. Duas palavras vindas de seus lábios valem mais do que uma epopeia declamada por minha pessoa.

Jaoam sorriu, encabulado.

— Isso não é verdade. O Principiador escuta a todos, sob sua luz somos todos iguais.

— Sempre há alguns mais iguais do que outros. Sou pai de quatro filhos, posso te dizer bem isso. Então, por favor, uma última benção.

— A benção não vem de mim, nem poderia.

— Te clamo — ele disse, com olhos suplicantes.

Jaoam deu-se por vencido. Merlo reclinou a cabeça solenemente. Jaoam estendeu a mão esquerda por impulso, mas logo a levou de volta ao corpo. Não era o tipo de mão que se impõe sobre uma pessoa. Ergueu a mão direita e orou baixinho. No final, Merlo ergueu-se satisfeito e grato.

— Adeus Merlo, que a luz do Principiador ilumine a você e sua família.

— A você também meu amigo, principalmente. Deveria visitar a velha Mercy antes de ir, ao menos ela. Ela morreria de desgosto se soubesse que pegou estrada sem contar pra ela. E alguém tem que pagar o pato da sua partida, ninguém vai cortar a cabeça de uma velha quando souber que ela te deixou ir embora ao invés de te acorrentar ao pé da cama — brincou o padeiro.

Verdade, ela foi muito solícita comigo, pensou.

Ao descer o último declive, deixando o vilarejo, havia uma casa de dois andares, rústica e bem varrida. Bem à porta estava uma figura encolhida, murcha e de cabelos tão brancos quando algodão. Quando ela o viu, fez mostrar sua boca banguela.

— Jaoam, Jaoam — ela disse, colocando a vassoura de lado. — Que bom que está aqui, veio tão cedo, mas já deixei seu quarto preparado. Venha meu filho, entre.

Seus olhos perolados brilhavam, mas Jaoam tinha que decepcioná-la.

— Não venho para ficar minha senhora. Venho para agradecer e me despedir. Sempre foi bondosa comigo, não poderia partir sem dizer adeus de forma apropriada.

Lá dentro, debruçado sobre o balcão, Jaoam podia ver um Melchor perdido em um sono pesado.

— Como assim adeus? Como assim adeus? Está doido menino? Perdeu o juízo? Pra onde ocê vai? — ela indagou, embasbacada.

— Serei Pai na Casa Alva, como Pai Myriel fora um dia — respondeu.

— Mas... mas... que história é essa homem. Onde o bode velho caga o cabrito vem pisando? Que besteira é essa? Quem colocou essa ideia na sua cabeça? Não existe mais Casa Alva.

— Existem algumas.

Ela bufou.

— Alguns grãos de areia não fazem uma praia. Já foi o tempo das instituições e ordens sacras. A Casa Alva de hoje não é mais a de ontem menino.

Discutir com um velho era como discutir com uma rocha memorial. Sabia bem no chão onde estava pisando.

— Partirei assim mesmo minha senhora. Quero agradecer por todas as vezes que encheu minha barriga. Seria ainda uma criança do tamanho de uma saca de trigo se não fosse a senhora. Mas é chegada a hora da partida.

— Está louco menino, está louco — ela disse. — MELCHOR, MELCHOR, acorda desgraçado, só sabe beber e dormir — ela deu um pulo para dentro da estalagem e bateu no balcão repetidas vezes até acordar o urso hibernado. — Me ajuda aqui, Jaoam tá dizendo que tá indo embora.

Ainda sonolento, Melchor o saudou, mais pra lá do que pra cá.

— Diga alguma coisa homem.

— Dizer o que velha do caralho? — ele bocejou. — Jaoam não é nenhum cachorro perdido — voltou a bocejar, torceu o rosto, avaliou a hora e pegou uma garrafa. — Quem sabe o que o espera estrada à frente? Vá homem, seja lá pra onde cê tá indo. Enquanto continuar andando ainda pode chegar a algum lugar. Deixe a inércia pra gente.

— Seu palerma imbecil — disse Dona Mercyana, visivelmente preocupada e descontrolada. — Não dê ouvidos a esse imbecil meu filho. Fique e terá cama, casa e comida.

— Não posso.

— Ora menino, o que pode querer com aquela gente casta? Eles nem te conhecem. Fique aqui com a gente, onde você é conhecido e amado. Fique Jaoam, meu querido. É aqui que estão suas raízes.

— Já tive raízes suficientes por toda uma vida minha senhora, odeio dizer. O que busco agora são asas — respondeu.

— Asas? Para quê asas? Quem voa é passarinho.

Jaoam silvou. Expressou-se errado, o que queria dizer era que queria partir.

— Continuarei a obra que Pai Myriel começou. Não espero que entenda. Adeus, orarei pela senhora e por todos.

Sem esperar respostas, virou-se e seguiu caminho, deixando para trás uma velha tomada pelo desespero. Enquanto continuar andando ainda pode chegar a algum lugar, se não fosse tão dado à bebida, talvez fosse um bom conselheiro afinal.

Ouviu o som de chinelos trotando a suas costas, e quando virou-se, encontrou com uma desolada e lacrimosa dona Mercyana. Ela colocou um saco de moedas em sua mão boa, com a mesma delicadeza que uma mãe loba segura o filhote entre as presas. Estava bastante pesado, e tilintava como uma cobra de chocalho.

Ela nem deixou que ele falasse.

— Terá sempre um lugar para você aqui meu filho. Já estou velha, não demorará para encontrar com Myriel, eu iria me envergonhar em dizer pra ele que te deixei partir sem um tostão no bolso. A estalagem será sua quando voltar, nunca tive filhos, e não poderia deixar ela para outra pessoa se não você, era esse meu sonho — ela o abraçou fortemente, e repousou as duas mãos sobre o saco de dinheiro. — Não é tudo que posso te dar, mas é o suficiente para que prove desse seu vinho e perceba que ele tem gosto de cinzas. O que estou falando? Não dê ouvidos pra essa velha azeda. Torne-se tão grande quanto Myriel, e mais, se assim seu deus permitir.

Jaoam não conseguiu segurar as lágrimas. Aquelas palavras o tocaram como um raio afiado. A estalagem será sua quando voltar... não poderia deixar ela para outra pessoa. O pensamento cobiçoso quase o segurou, mas seus pés se viraram rapidamente para a estrada, e partiu.

Tinha mais dinheiro naquela manhã do que já cogitara em toda a vida. Até onde aquelas moedas prateadas poderiam levá-lo? Só seguindo a sinuosa estrada para saber.

O dourado sol a sua frente fazia compridas sombras à suas costas. Se sentia leve, livre e cheio de possibilidades.


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