A viagem do tigre - Pov dos tigres escrita por Anaruaa


Capítulo 2
A retomada do relacionamento - Ren




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Alguns dias depois, Kadam nos reuniu na sala do pavão. Ele nos disse que gostaria de aplicar chips localizadores, semelhantes àquele que Lokesh havia colocado em mim, só que mais modernos, menores, os quais não seriam sentidos sob a pele. Assim, poderíamos localizar uns aos outros, caso nos perdêssemos. Todos concordamos.

Kadam nos explicou como funcionaria e então retirou as seringas de uma caixa para aplicar o chip. Kelsey ficou nervosa ao ver as agulhas grossas.

 Ele aplicou primeiro em Kishan. Eu vi Kelsey virar o rosto no momento em que a agulha encostou na pele dele. Achei curioso que, com tanta coisa pela qual  ela passou, uma simples agulha lhe deixasse tão nervosa.Troquei de lugar com Kishan e, depois de ter meu chip injetado em mim, tentei tranquilizá-la:

— É moleza — eu lhe disse sorrindo.

Mas o rosto de Kelsey ficou pálido,como se o sangue tivesse lhe deixado. 

— É sério. Não é assim tão ruim.

Ela me respondeu com um sorriso forçado:

— Não acho que a sua tolerância para dor seja igual à minha, mas vou sobreviver.

Quando terminou comigo, Kadam chamou por Kelsey, que se sentou nervosa. Ele aplicou um anestésico local, mas lhe disse que doeria mesmo assim. 

Kelsey estava com medo e eu queria fazer algo para tranquilizá-la. Mas foi Kishan quem segurou a mão dela e lhe disse com ternura:

— Aperte com toda a força, Kells.

Kadam inseriu a agulha devagar. Kelsey fechou os olhos e apertou a mão de Kishan, respirando rápido. Kadam avisou que precisaria ir mais fundo e o fez. Kelsey se contorcia na cadeira e gemia de dor. Eu estava preocupado.

Ela abriu os olhos e olhou ao redor. Quando nossos olhos se encontraram, ela parou e eu lhe sorri. O rosto dela mudou, ficou tranquilo. Percebi que ela soltou a mão de Kishan, enquanto me olhava. Senti ternura, quis ir até ela e tocar sua mão, perguntar se ela estava bem. Mas eu já estava sentindo os efeitos de passar tanto tempo perto dela. Me sentia enjoado e minha cabeça doía um pouco, então fiquei um pouco receoso.

Kishan se aproximou e e perguntou se ela estava bem. Senti um certo incômodo, como se ele tivesse ocupando o meu lugar. Sai da sala.

Não consegui relaxar. Eu não sabia o que estava acontecendo comigo. Eu não parava de pensar em Kelsey, me preocupava e queria estar com ela.

No início, eu evitava a proximidade, por causa das cobranças que sentia em relação à minha memória e às expectativas que ela tinha sobre mim. Depois, percebi que a presença dela me causava sintomas físicos e seu toque me causava dor. Mas ultimamente, eu vinha sentindo a falta dela. Sua presença me fazia tão bem, que superava o mal-estar. O vazio que eu constantemente sentia em minha vida era preenchido em parte, quando estava com ela.

Eu ouvi quando ela subiu as escadas em direção a seu quarto. Também ouvi Kishan subir e deitar-se na varanda, sob a forma de tigre. Tentei resistir mas não consegui. Fui até a sua porta e bati de leve.

— Pode entrar.

— Ouvi você rolar de um lado para outro e imaginei que ainda estivesse acordada — eu disse, fechando a porta atrás de mim. — Espero não estar incomodando.

Ela se sentou na cama e acendeu a luz do abajur. Parecia surpresa.

— Não. Tudo bem. O que aconteceu? Quer ir para a varanda?

— Não. Kishan parece ter se instalado lá permanentemente.

— Ah. Vou falar com ele sobre isso. Ele não precisa ficar cuidando de mim feito uma babá. Estou perfeitamente segura aqui.

Gostei de ouvir aquilo, mas fingi que não me importava.

— Ele gosta de tomar conta de você.

— Então, sobre o que você queria conversar?

Eu me sentei na beirada da cama.

— Eu... não sei direito. Como está a sua mão?

— Está ardendo. E a sua?

— A minha já sarou.

Estendi minha mão para mostrar a ela. Kelsey a segurou e eu, instintivamente, entrelacei nossos dedos. O toque dela ainda me queimava, doía. Mas também fazia meu coração disparar, de um jeito bom.

O rosto de Kelsey estava corado, e ela ficava ainda mais bonita assim, me encantava. Eu toquei sua face com as costas das mãos e comentei sorrindo:

— Você está vermelha.

— Eu sei. Desculpe.

— Não peça desculpa. Isso me deixa bastante... lisonjeado.

Ela me olhava com aqueles olhos castanhos, que antes me deixavam nervoso, mas agora me enchiam de ternura. Eu sentia vontade de tocá-la. Ergui a mão e toquei uma mecha do seu cabelo, descendo pelo comprimento. De repente eu me senti muito enjoado e prendi a respiração. Minha cabeça doía e eu achei que fosse cair. Uma gota de suor desceu pela minha testa e eu me afastei.

— Está tudo bem? — Kelsey perguntou.

Fechei os olhos, tentando melhorar da tontura.

— Fica pior quando eu toco em você.

— Então, não toque.

— Eu preciso superar isso. Me dê a sua mão.

Ela estendeu a mão e a colocou sobre a minha. Eu a cobri com a outra e segurei por algum tempo. O mal-estar apenas piorava. Meu braço começou a tremer e eu a soltei rápidamente.

— Já está na hora de você se transformar em tigre?

— Não, ainda tenho tempo. Agora consigo permanecer na forma humana por 12 horas.

— Mas por que está tremendo?

— Não sei. Parece que tem alguma coisa me queimando quando encosto em você. Meu estômago se encolhe, vejo tudo embaçado e a cabeça começa a latejar.

— Tente se sentar ali — sugeriu, apontando para o sofá.

Mas eu não queria ficar tão longe dela. Me sentei no chão, com as costas encostadas na cama e apoiei o cotovelo no meu joelho dobrado.

— Está melhor assim?

— Está. A queimação se foi, mas a visão embaçada, a dor de cabeça e a sensação ruim no estômago continuam.

— Você sente dor quando está em alguma outra parte da casa?

— Não. Só tocar em você provoca essa dor lancinante. Vê-la ou ouvi-la causa os outros sintomas, em graus variados. Se você estiver sentada longe, sinto só uma pontada. É apenas desconfortável e eu tenho que lutar contra a vontade de sair de perto. Pegar a sua mão ou tocar o seu rosto é como segurar carvões em brasa.

— Logo que você voltou e nós conversamos, você pôs o meu pé no seu colo. Aquilo não doeu?

— O seu pé estava sobre uma almofada. Só encostei nele durante alguns segundos, e eu estava sentindo tanta dor naqueles dias que nem fez diferença.

— Vamos testar. Fique ali perto da porta do banheiro, e eu vou para o outro lado do quarto.

Eu fui.

— E aí? O que está sentindo agora?

— Sinto que preciso sair daqui. O desconforto diminuiu, mas quanto mais tempo eu permanecer, pior vai ficar.

— A necessidade de fugir é uma sensação muito terrível? É como se você precisasse correr para salvar a vida?

— Não. É um desespero que vai crescendo... como quando você prende a respiração embaixo d’água. No começo é tranquilo, talvez até um pouco gostoso, mas logo parece que meus pulmões estão gritando por ar.

— Hum, talvez você esteja com transtorno de estresse pós-traumático.

— O que é isso?

— É um problema que aparece depois que uma pessoa foi exposta a um trauma terrível e a altos níveis de estresse. Soldados em combate costumam ter isso. Lembra que você disse a Kishan que, quando escutava o meu nome, só enxergava as torturas e os interrogatórios de Lokesh?

— Lembro. Ainda tem um pouco disso, eu acho. Mas agora que conheço você melhor já não a associo tanto a ele. Agora sou capaz de distanciar essas coisas de você. O que aconteceu não foi por sua causa.

— Parte dos seus sintomas em relação a mim ainda pode estar ligada a isso. Talvez você precise de terapia.

Eu ri, achando graça daquela ideia:

— Kelsey, em primeiro lugar, um terapeuta iria me mandar para um hospício quando eu afirmasse que sou um tigre. Em segundo, batalhas sangrentas e dor não são novidade para mim. Não foi a primeira vez que Lokesh me torturou. Com certeza foi uma experiência pela qual eu não gostaria de passar outra vez, mas sei que a culpa não é sua.

— Mas pedir ajuda de vez em quando não o torna menos homem.

— Não estou tentando ser forte e heróico. Se faz você se sentir melhor, saiba que já comecei a conversar com Kishan sobre isso.

Ela ficou impressionada:

— Ele tem ajudado?

— Kishan parece... surpreendentemente solidário. Ele é um homem diferente agora. Disse que mudou por sua causa. Você o influenciou. Despertou um lado nele que eu não via desde a morte da nossa mãe.

— Ele é uma boa pessoa—Ela disse, concordando com a cabeça.

— Conversamos sobre muitas coisas. Não só sobre Lokesh, mas também sobre o nosso passado. Ele me falou de Yesubai e de como vocês dois se tornaram próximos.

— Ah. Não quero que você sinta dor nem que sofra quando está comigo. Talvez seja melhor evitar ficar perto de mim.

— Não quero isso. Eu gosto de você.

— Gosta? — Ela sorriu.

— Gosto. Acho que foi por isso que namorei você. Vamos ver quanto tempo eu aguento. Chegue mais perto.

Eu senti vontade beijá-la. Ela deu alguns passos em minha direção e parou.

— Não. Mais perto. Sente-se na cama.

Ela se sentou e me olhou preocupada.

— Você está bem?

— Estou.

Estiquei as pernas, tentando encontrar uma posição que minimizasse meu desconforto, pois eu não queria ir embora. Eu queria ficar com ela, ouvi-la.

— Fale sobre o nosso primeiro encontro.

— Tem certeza?

— Tenho. Agora está tolerável.

Ela foi até o outro lado da cama, entrou embaixo das cobertas e colocou um travesseiro no colo:

— Certo. O nosso primeiro encontro provavelmente foi aquele em que você armou para que eu saísse com você.

— Quando foi isso?

— Logo depois de sairmos de Kishkindha. Naquele restaurante do hotel.

— No restaurante? Foi logo depois de eu ter recuperado seis horas?

— Foi. Do que você se lembra?

— De nada, a não ser de ter jantado pela primeira vez depois de séculos em um bom restaurante com uma mesa cheia de comida. Eu me senti... feliz.

— É capaz de você ter se sentido feliz mesmo. Estava todo convencido e paquerou a garçonete descaradamente.

— Sério? Nem me lembro da garçonete.

Kelsey deu uma risada animada:

— Como é que você sempre sabe a coisa certa a dizer até quando não consegue se lembrar de nada?

Eu sorri.

— Deve ser um dom. Então, sobre a garçonete... ela era bonita? Conte mais.

 Kelsey me contou sobre o jantar e eu fiquei imaginado as cenas, embora não me lembrasse de nada. Algumas coisas pareciam mesmo algo que eu faria.

— O que aconteceu depois do jantar?

— Você me levou até o meu quarto.

— E?

— E... nada.

— Eu nem lhe dei um beijo de boa-noite?

— Não.

Eu ergui uma sobrancelha, cético.

— Isso não combina comigo.

Ela riu.

— Não é que você não quisesse. Estava me castigando.

— Castigando você?

— De certa maneira. Você queria que eu admitisse meus sentimentos.

—E você admitiu?

— Não. Sou bem teimosa.

— Entendi. Então quer dizer que a garçonete me paquerou...

— Se não parar de sorrir só de pensar na garçonete, eu vou dar um soco no seu braço e fazer você sentir dor de verdade.

Eu sorri, duvidando

— Você não faria isso.

— Faria.

— Sou tão rápido que você não conseguiria nem chegar perto.

— Quer apostar?

Ela engatinhou na cama, vindo na minha direção. Eu sorri divertido. Já tinha me esquecido do mal-estar. Ela fechou a mão para me bater, mas eu desviei rápido e corri até o pé da cama, sorrindo. Ela se levantou e caminhou em minha direção, devagar. Eu a chamei e ela veio, pronta para me dar o bote.

Eu pretendia deixá-la se aproximar de mim, então eu a seguraria e talvez a beijasse. Eu queria muito, mas não consegui suportar. À medida em que ela se aproximava, eu sentia um enjoo forte, que foi capaz de me fazer gemer e cambalear para trás. Me segurei no encosto de uma poltrona para não cair.

— Acho que isto é o máximo que aguento por hoje. Sinto muito, Kelsey.— Eu disse indo até a porta.

Ela recuou, com a decepção estampada no rosto e disse baixinho:

— Eu também sinto muito.

Abri a porta e lhe dirigi um sorriso triste antes de sair.

— Acho que foi pior desta vez porque passei muito tempo segurando a sua mão. A dor aumentou depressa demais. Normalmente ficar perto de você não me afeta tanto assim.

Ela fez que sim com a cabeça, e sorriu.

— Da próxima vez, vou me lembrar de só tocar em você no fim da noite. Durma bem.

— Você também.

Naquela noite eu sonhei com ela.

Os dias se passaram e eu ficava cada vez mais próximo de Kelsey. Nós éramos amigos, mas eu sabia que ela ainda me amava, e eu sentia cada vez mais a falta dela e a necessidade de estar perto dela.

Quando não estávamos juntos, eu pensava nela e imaginava como seria bom tocar sua pele sem sentir dor. Neste ponto eu invejava Kishan. Ele também estava sempre com ela. Eles treinavam e nós três passávamos muito tempo juntos. Mas ele podia tocá-la e ficar perto dela sem problemas, diferente de mim.

Um dia, Kadam nos reuniu e disse que Phet finalmente tinha respondido ao seu mensageiro e informado que queria ver “os Tigres, Quel-si e os presentes especiais de Durga”. Ele foi bem específico ao dizer que apenas nós três deveríamos fazer a viagem.

Kelsey parecia nervosa e ansiosa. Eu tentava não esboçar meus sentimentos. Eu tinha esperanças de que ele pudesse me curar da minha aversão física a ela, mas não achava que ele conseguiria recuperar minhas memórias. Eu sentia como se aquilo tudo o que me era narrado sobre o meu passado com Kelsey nunca tivesse de fato acontecido. Mas isto não tinha importância, porque na verdade, me importava como eu me sentia agora. E a verdade é que eu estava apaixonado por ela.

Eu sabia que meu irmão amava Kelsey e não queria magoá-lo, mas eu também sabia que era a mim que ela queria. A única coisa que me impedia de ficar com ela, eram os meus sintomas físicos. Eu vi como ela ficou triste quando eu tentei me aproximar mas tive que fugir correndo.  E não queria magoá-la.


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