A viagem do tigre - Pov dos tigres escrita por Anaruaa


Capítulo 1
Ren




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As semanas se passaram e nada mudou. Eu ainda não me lembrava de Kelsey, por mais que ela se esforçasse para tanto. Ela me deixou ler seu diário, onde ela falava sobre o relacionamento comigo, mas era como se eu estivesse lendo sobre outra pessoa.

Eu me acostumara à sua presença, embora evitasse ficar muito tempo perto dela. Quando isto acontecia, eu sentia enjoos e quando ela encostava em mim, doía, literalmente.

Nilima estava sempre conosco e sua presença tornava as coisas mais fáceis. Ela estava sempre cuidando de todos nós e fazia a nossa vida parecer mais normal do que era. Kishan tinha razão, ela era como uma irmã para nós, e agora eu a via desta forma.

Kelsey, por sua vez, vinha tentando agir com naturalidade e esconder seu desapontamento, mas estava sempre triste e às vezes chorava escondida. Eu a ouvia, e me sentia culpado. Nós não sabíamos como agir perto um do outro.

Kadam e Kishan tentavam nos deixar mais à vontade, tendo cuidado para não comentar sobre a nossa relação e não mencionar a minha falta de memória. Kishan ficava sempre perto de Kelsey, dando-lhe apoio e carinho. Eles eram amigos, mas eu percebia em cada toque e em cada olhar, que Kishan desejava mais do que isso.

Uma tarde, Kadam e Nilima prepararam um brunch. Eu estava na cozinha quando Kelsey entrou. Eu ficava tenso todas às vezes em que estávamos sozinho, sem saber o que dizer a ela, com medo de magoá-la, e daquela vez não foi diferente.

Kelsey, no entanto, agiu diferente. Ao invés de me olhar com aqueles grandes e tristes olhos castanhos, ela pegou um prato e passou por mim, praticamente ignorando a minha presença. Depois, esbarrou de leve o quadril em mim. Eu fiquei paralisado, mas ela me olhou e disse em tom de brincadeira:

— Você pode chegar mais para lá, por favor? Quero pegar um desses pães recheados antes que Kishan apareça.

Eu, que estava distraído pensando em com agir, despertei e lhe pedi desculpas, dando-lhe espaço. Coloquei meu prato na mesa e me sentei para comer. Ela se sentou na cadeira à minha frente e pegou um muffin, retirando o papel delicadamente, enquanto eu a observava. Ela corou, e eu achei aquilo encantador.

— Está tudo bem? — perguntei, hesitante. — Ouvi você chorar ontem à noite.

— Estou bem.

Eu comecei a comer, mas continuei observando. Havia algo diferente nela, em sua atitude. Era a primeira vez que eu não sentia que ela esperava algo de mim. Ao contrário, ela parecia mais interessada nos pãezinhos.

— Tem certeza? Sinto muito se a deixei chateada... de novo. É só que eu não me lembro...

Ela ergueu a mão e começou a falar, me interrompendo:

— Você sente o que sente, Ren.

— Mesmo assim, peço desculpas por magoar você — disse baixinho.

Ela, de repente, espetou um pedaço de mamão agressivamente com o garfo e me olhou com os olhos avermelhados e úmidos e começou a dizer, em um tom de voz um pouco mais alto e irritado:

— Por qual das vezes? Quando disse no meu aniversário que eu não sou bonita? Que não suporta ficar perto de mim? Que acha Nilima linda? Ou...

— Certo. Já entendi.

— Que bom, porque eu gostaria de parar de falar sobre isso.

Era a primeira vez que eu a via nervosa, me enfrentando. Até ali, ela sempre parecia querer me agradar ou me preservar. Depois de um instante eu tentei me justificar:

— Na verdade, eu não disse que você não é bonita. Eu só disse que você é nova demais.

— Nilima também é, pelos seus padrões. Você tem mais de 300 anos!

— É verdade — Eu sorri.

— Tecnicamente, você deveria namorar uma senhora de idade muito avançada.

Percebi um pequeno sorriso em seus lábios ao fazer esse comentário sarcástico. Eu fiz uma careta e continuei:

— Também quero que saiba que é muito fácil ficar perto de você e gostar de você. Eu nunca tinha tido essa reação com ninguém. Eu me dou bem com a maioria das pessoas. Não há razão para que eu sinta necessidade de fugir quando você se aproxima.

— A não ser a pressão para que recupere a memória...

— Não, não é a pressão. É... outra coisa. Mas resolvi ignorar.

— Você consegue fazer isso?

— Claro. Quanto mais tempo passo perto de você, mais intensa é a reação. O difícil não é falar com você, é a proximidade. Nós devíamos tentar conversar pelo telefone para ver se faz diferença. Vou me esforçar para criar imunidade.

— Entendi. Então seu objetivo é adquirir tolerância a mim. — Suspirou. — Tudo bem.

— Vou continuar tentando, Kelsey.

— Não se esforce demais, porque não faz mais diferença. Resolvi ser só sua amiga.

Durante todas aquelas semanas, isto era tudo o que eu queria ouvir. Mas estranhamente, me senti um pouco decepcionado. Inclinei-me para a frente e disse baixinho, em tom de brincadeira:

— Mas você não continua... apaixonada por mim?

Ela também se inclinou e respondeu no mesmo tom:

— Não quero mais falar sobre esse assunto.

Cruzei os braços diante do meu peito e reclamei:

— Por que não?

— Porque Lois Lane nunca sufocou o Super-Homem.

— Do que você está falando?

— Vamos ter que assistir ao filme. O importante é que não quero prender você. Então, se quiser ficar com Nilima, vá em frente.

— Espere um minuto! Você vai me dispensar assim?

— Algum problema?

— Problema nenhum. É só que andei lendo o seu diário e, para uma garota que supostamente é louca por mim, você está desistindo bem rápido.

— Eu não estou desistindo de nada. Não tem nada entre nós para que eu desista.

Eu fiquei observando enquanto ela comia uma fruta e pela primeira vez, percebi o quanto ela era bonita.

— Então, você quer ser minha amiga?

— Quero. Sem pressão, sem lágrimas, sem lembretes constantes de coisas de que você se esqueceu, sem nada. Vamos apenas recomeçar. Do zero. Vamos aprender a ser amigos e a nos dar bem apesar de sua vontade de sair correndo. O que me diz? — Ela limpou a mão num guardanapo e a estendeu — Temos um acordo?

Pensei por um segundo sobre aquilo e então apertei sua mão. Kishan entrou em seguida, fingindo-se de desentendido, mas eu percebi que ele tinha ouvido pelo menos parte da conversa.

— O que estão combinando? — perguntou Kishan.

— Kelsey acabou de concordar em demonstrar para mim seu poder de emitir raios — menti — Quero muito ver como é soltar fogo pelas mãos.

Eu me levantei, levei os pratos para a pia e comecei a lavar a louça. Kelsey apanhou um pano de prato e veio me ajudar.  Quando terminamos, peguei o pano dela e, brincando, bati de leve em sua perna. Ela riu alegre e olhou para Kishan.

Ele estava sentado nos observando com a testa franzida. Eu coloquei meu braço sobre o ombro de Kelsey sorrindo. Senti apenas um leve desconforto. Aproximei-me de seu ouvido e falei:

— “Aquele Cássio tem um aspecto magro e faminto. Ele pensa demais; homens assim são perigosos.” É melhor ficar de olho nele, Kelsey.

Ela sorriu e respondeu:

— Não se preocupe com Kishan, César. Ele late mais do que morde.

— Ele anda mordendo você?

— Não ultimamente.

— Hum. Vou ficar de olho.

Sai da cozinha mas pude ouvir Kishan falando com Kelsey:

— Que história foi essa? — quis saber Kishan, grunhindo.

— Ele está comemorando a emancipação.

— Como assim?

— Eu disse a ele que gostaria que fôssemos amigos.

Kishan fez uma pausa.

— É isso que você quer?

— O que eu quero é irrelevante. Ser meu amigo é algo que ele é capaz de fazer. Ser meu namorado não está em cogitação neste momento.

Subi para o meu quarto pensando sobre aquele momento. Kelsey era mesmo uma menina especial e eu me senti feliz por tê-la em minha vida. Decidi que seria um bom amigo para ela.

A vida voltou ao normal nos dias seguintes e Kelsey mostrou-se uma companhia muito agradável. Nós tomávamos o café da manhã juntos todos os dias, depois de ela treinar com Kishan. Ela também estava ajudando Kadam nas traduções da profecia.

Kelsey, Kishan e eu passamos a nos divertir juntos, assistindo a filme, jogando ou lendo na biblioteca. Kelsey e eu tínhamos muito em comum e a presença dela, apesar de ainda me causar desconforto, tornava-se cada vez mais necessária. Quando não estávamos juntos, eu sentia a falta dela.

Ela gostava de me encontrar à noite na sala de música para me ouvir tocar. E sempre pedia a música “My Favorite Things” de “A noviça rebelde” e eu sempre ria disso. Uma noite, comecei a tocar uma melodia, mas não conseguia me lembrar de toda a música. Notei que Kelsey me olhava atenta, ansiosa para ouvir mais. Deixei as mãos caírem e sorri sem graça por decepcioná-la:

— Desculpe. Parece que não consigo me lembrar desta. Você tem algum pedido para esta noite?

— Não — respondeu secamente e se levantou.

Segurei sua mão antes que ela se fosse, mas senti dor e a soltei.

— O que foi? Você está triste. Mais do que o normal.

— Essa música... ela é...

— Ah, a música? Você já tinha escutado?

— Não. Ela é... linda.

Kelsey saiu da sala e eu pude ouvir seus passos na escada. Tentei tocar a música novamente, mas sempre empacava na mesma parte. Então eu desisti e fui dormir.

Em uma outra noite, fui à varanda e encontrei Kishan. Eu vinha percebendo em todos aqueles dias, como meu irmão havia mudado. Estava mais maduro e responsável. Às vezes eu sentia como se ele fosse o irmão mais velho cuidando de mim e de Kelsey.

Desde que eu voltara para casa, eu me sentia perdido às vezes, mas Kishan me trazia segurança, algo que nunca havia sentido em relação a ele. Nós estávamos mais unidos. Fui até ele e nós começamos a conversar.

— Você mudou. Não é mais o mesmo de seis meses atrás.

— Ainda sou capaz de esfolar essa sua pelagem branca, se é disso que você está falando.

— Não, não é isso. Você ainda é um lutador forte, mas agora está mais relaxado, mais seguro, mais... sereno — eu dei risada. — E está muito mais difícil irritar você.

Kishan respondeu baixinho:

— Ela me fez mudar. Estou me esforçando muito para me transformar no tipo de homem de que ela precisa, no tipo de homem que ela já acredita que eu seja.

    Compreendi e invejei meu irmão. Nós entramos em casa sem precisar dizer mais nada.


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