O resgate do tigre escrita por Anaruaa


Capítulo 36
Histórias de guerra - Ren




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Quando chegamos em casa, todos estávamos cansados. Eu estava feliz por estar ali, mas me sentia incomodado. A moça de olhos castanhos, Kelsey, esperava algo de mim, algo que eu não poderia dar a ela. Kishan e Kadam pareciam nervosos e um pouco desapontados. Apenas Nilima parecia naturalmente feliz por eu estar em casa. Ela não parecia perceber que algo estava errado, e isto me fazia bem. Eu me senti à vontade com ela

Kishan levou Kelsey para o andar de cima da casa e Kadam também foi para o quarto, me dizendo que voltariam logo. Fiquei sozinho com Nilima na sala. 

Eu permanecia como tigre, mas Nilima conversou comigo, dizendo que estava feliz por que o pesadelo do meu sequestro tinha chegado ao fim e todos estávamos vivos. Também, disse que estava louca pra ouvir as histórias do meu resgate. Ela se sentou na poltrona e eu me deitei a seus pés e cochilei.

Percebi a chegada de Kadam, que se sentou perto de Nilima. Em seguida, ouvi Kishan descendo as escadas e levantei a cabeça para vê-lo trazendo Kelsey nos braços. Ele a colocou ao lado de Kadam e sentou-se na poltrona em frente. 

— Ele ainda não mudou, Srta. Kelsey — Disse Kadam— Talvez tenha ficado como homem tempo demais.

— Tudo bem. O importante é ele estar aqui agora.

Senti uma pontada de culpa ao ouvi-la dizer aquilo. Ela parecia tão decepcionada. Aparentemente, ninguém tinha dito a ela que eu não me lembrava. Pensei que eles esperavam que eu recuperasse minha memória antes de ela perceber. 

Nilima queria saber de tudo que acontecera e Kadam lhes disse para cada um contar sua parte na história. Eu também estava curioso para ouvir, especialmente como eles conseguiram mudar suas aparências durante o ataque, mas resolvi continuar fingindo que dormia para não ter que lidar com a minha falta de memória e seu efeito sobre as pessoas da casa.

Nilima foi para a cozinha, acompanhada por Kelsey, e eu ouvia enquanto Kishan e Kadam discutiam, preocupados, como iriam dizer à Kelsey que eu não me lembrava dela. Kadam achava que eles deveriam dizer logo a ela, mas Kishan temia sua reação e preferia esperar mais um pouco, para ver se eu “voltaria ao normal”.

Nilima voltou com a comida e Kishan saiu para buscar Kelsey, voltando com ela no colo, pois seu tornozelo ainda doía. Eu farejei a comida e Kelsey colocou um prato com ovos no chão para mim. Naquela forma, eu preferia carne, mas os ovos estavam bons. Kelsey começou a acariciar minha orelha e foi bom, relaxante. Eu fechei os olhos e inclinei a cabeça para a sua mão. Não me senti desconfortável. 

— Está tudo bem, Ren. Eu só queria dizer oi e dar seu café da manhã. Sinto muito se o machuquei.

Kishan inclinou-se para a frente e disse:

— Kells, por favor. Afaste-se.

— Eu vou ficar bem. Ele não vai me machucar.

Eu percebi que Kishan estava nervoso. Então me levantei e fui para o seu lado. Kelsey ficou triste, mas Kadam mudou o assunto:

— Vamos saborear nossa refeição e partilhar com Nilima o que aconteceu. Tenho certeza de que Ren também gostará de ouvir.

— Descemos de paraquedas numa clareira a alguns quilômetros do acampamento dos baigas e andamos até lá – começou Kishan. — Um ex-piloto que costumava trabalhar para o Sr. Kadam nas Linhas Aéreas Tigre Voador concordou em nos deixar lá. Ele nos levou num daqueles antigos aviões militares da Segunda Guerra Mundial, que mantém em boas condições.

Nilima assentiu, bebericando o néctar. Kishan esfregou o maxilar.

— O sujeito devia ter pelo menos 90 anos. A princípio duvidei que o homem idoso ainda fosse capaz de pilotar, mas ele certamente provou sua habilidade. A queda foi suave e sem esforço, apesar do fato de Kelsey quase não ter saltado.

— Não foi igual ao treinamento.

— Você saltou três vezes durante o treinamento e também comigo em Shangri-lá e em todas as vezes se saiu bem.

— Aquilo era diferente. Era de dia e eu não tinha que... que guiar.

Ele explicou:

— Durante o treinamento, saltamos em dupla. — Frustrado, ele levantou a voz. — Você sabia que era só pedir. Eu teria saltado com você, mas você teimou que tinha que fazer aquilo sozinha.

— Bem, se você não tivesse sido tão...abusado no salto em dupla...

— E se você não fosse tão paranoica com medo de que fosse tocá-la...

— Não teria nenhum problema! — disseram os dois ao mesmo tempo.

Os dois se olharam e eu percebi alguma intensidade entre eles. Fiquei me perguntando se havia algo acontecendo entre os dois. 

— Podemos prosseguir, por favor?—disse Kelsey

Kishan estreitou os olhos, para ela, mas continuou:

— Como eu disse, Kelsey quase não saltou a tempo. Kadam foi o primeiro e então tive que forçar Kelsey antes que perdêssemos o timing do salto.

— Forçar é mesmo a palavra correta — murmurou. — O que fez foi me arrastar com você.

Ele voltou a fitá-la:

— Você não me deu outra opção. Depois que chegamos à clareira — ele continuou — assumimos nossos disfarces e seguimos caminhos separados. Eu assumi a aparência de Kelsey, usando uma réplica de seu amuleto.

— Eu assumi a aparência do criado baiga — disse Kelsey — Por falar nisso, foi muito desconfortável vê-lo sendo eu, Kishan.

— Foi igualmente desconfortável ser você. Minha missão era procurar Lokesh e mantê-lo ocupado, então me escondi atrás de um edifício até ouvir o sinal: um rugido de tigre.

Kadam o interrompeu.

— Esse era eu, disfarçado de tigre. Corri pela floresta para disparar algumas armadilhas e atrair os soldados.

— Certo — disse Kishan. — Kelsey começou a explodir coisas, o que afugentou qualquer soldado retardatário, e assim não encontrei quase nenhuma resistência para entrar no acampamento. Encontrar Lokesh foi outra história. Tive que tirar de combate seu cerco de guardas altamente treinados. Eliminei vários com o chakram e desativei as luzes antes que eles sequer me vissem. Depois disso usei minha aparência em meu beneficio.

Kelsey perguntou, desconfiada:

— Como exatamente você usou a minha aparência em seu benefício?

Kishan abriu um largo sorriso.

— Agi como uma mulher. Eu entrei na sala tropeçando, fingi surpresa e medo e pedi a todos aqueles homens grandes e fortes que me protegessem, dizendo que havia um louco tentando me matar com um disco dourado. Você sabe, pisquei os olhos e flertei com eles. Coisas de mulher.

Kelsey cruzou os braços, enquanto Nilima ria, divertindo-se:

— Sei. Por favor, continue.

Kishan suspirou e correu a mão pelos cabelos.

— Antes que você fique toda ofendida, que é sua reação padrão a mim, pode parar, porque sei o que está pensando.

— É mesmo? E o que é que eu estou pensando?

— Que eu estou tentando estereotipar as mulheres, você em particular — ele ergueu as mãos, exasperado.

—Você não é assim, Kells. Eu só estava jogando com as cartas que me foram dadas e tentando usar todos os meus recursos!

— Tudo bem quando você usa os seus próprios recursos, mas não quando está usando os meus!

— Ótimo! Da próxima vez irei como Nilima!

— Ei! — disse Nilima. — Não quero ninguém usando os meus recursos.

— Talvez seja melhor continuarmos a história — interveio Kadam.

Kishan fez cara feia e começou a resmungar sobre mulheres em operações militares e que da próxima vez iria sozinho.

— Eu ouvi isso. Você teria sido mutilado por Lokesh sem mim.

— De fato. Cada pessoa foi vital para o nosso sucesso — disse Kadam. — Vou passar para a minha parte e você conclui mais tarde, Kishan.

Ele se recostou na cadeira e cruzou os braços sobre o peito.

— Por mim, tudo bem.

Kadam começou contando a Nilima como era libertador ser tigre.

— O poder do tigre está além de qualquer coisa que eu imaginara. Como não sabíamos se o Lenço Divino funcionava apenas com disfarces humanos, tínhamos testado antes a transformação em um animal. Parece que podemos mudar para a forma de Kishan ou de Ren, mas nenhum outro animal. Quando chegamos, assumi a forma do tigre negro de Kishan. E então a Srta. Kelsey enrolou o Lenço em meu pescoço antes de nos separarmos.

Ele recuperou o fôlego antes de continuar.

— Corri pela selva e encontrei várias armadilhas com isca. Ativei duas delas, o que acionou alarmes, e logo ouvi o passo dos soldados em minha perseguição. Eles disparam armas, mas fui mais rápido. A certa altura, um grupo achou que havia me encurralado. Estavam prestes a disparar quando me transformei em homem, o que os deixou chocados e me deu um momento para acionar a armadilha. Puxei uma corda presa a um naco de carne e os soldados foram erguidos no ar numa grande rede. Deixei-os pendurados na árvore e corri de volta ao acampamento para a segunda fase do plano. Quando cheguei ao acampamento, a Srta. Kelsey já havia destruído uma das duas torres de vigilância. Os aldeões corriam para todos os lados, temendo por suas famílias. Fiquei atrás de uma árvore e mudei de aparência mais uma vez.

Nilima se inclinou para a frente.

— Em que se transformou dessa vez?

— Assumi a forma de um deus baiga chamado Dulha Dao, que, segundo eles, ajuda a evitar doenças e acidentes. Reuni as pessoas à minha volta e lhes disse que estava ali para ajudá-las a vencer aquele estranho. Elas ficaram mais do que felizes em cooperar para derrubar a casa do maligno. A Sra. Kelsey deixara a gada num local discreto para que eu a pegasse. Normalmente, ela é pesada para mim, mas, quando a manejei como Dulha Dao, a arma se tornou leve. Com a ajuda dos aldeões, derrubamos a parede e incapacitamos os homens de Lokesh.

— Como era sua aparência? — perguntou Nilima.

Quem respondeu foi Kelsey:

— Ah, o Sr. Kadam estava muitíssimo bem como Dulha Dao. Ele parecia um dos homens da tribo, só que mais alto, mais corpulento e muito bonito. O cabelo era comprido e cheio e parte dele estava envolta num coque no alto da cabeça, com a outra parte descendo pelas costas. Era musculoso e seu belo tórax, assim como o rosto, era coberto por tatuagens. Estava de peito nu, usando pesados colares de contas e descalço, vestindo uma saia envelope. Parecia amedrontador, mas de um jeito bom. Principalmente, imagino, quando estava brandindo a gada.

Todos olharam para Kelsey e Nilima ria animada:

— O que foi?— perguntou, constrangida. — Está bem. Parece que eu acho atraentes os homens indianos corpulentos. O que há de errado nisso?

Kishan tinha a testa franzida. Kadam parecia satisfeito e Nilima dava risadinhas.

— Absolutamente nada, Srta. Kelsey. Sei que eu teria pensado a mesma coisa — disse ela.

Kadam pigarreou.

— Sim... bem... agradeço a descrição lisonjeira, de qualquer forma. Faz muito tempo que uma mulher não me acha... corpulento.

Kelsey e Nilima riram relaxadas.

— Todos prontos para continuar? — perguntou Kadam.

— Sim — responderam em uníssono.

— Como eu ia dizendo, as pessoas se juntaram a mim e amarramos todos os guardas. Então seguimos para o centro de comando. As portas eram fortificadas e estavam trancadas. Revistamos os homens à procura da chave, mas não encontramos nenhuma. Foi mais fácil eu abrir um buraco na parede do que derrubar aquelas portas. Finalmente entrei no complexo e encontrei Kelsey e Kishan prostrados no chão e Lokesh em nenhum lugar à vista. A sala estava cheia de uma espécie de doce.

— Balas duras — disse Kelsey.

— Como isso aconteceu? — perguntou Nilima.

— Eu tinha que fazer alguma coisa e o Fruto Dourado era a única arma a que eu podia ter acesso, então pedi uma tempestade de balas duras.

— Muito inteligente. Essa nunca praticamos. Parece que funcionou bem — comentou o Sr. Kadam.

— Não teria funcionado por muito tempo. Lokesh se recupera rapidamente. A única coisa que o levou a fugir foi o senhor. O senhor e os baigas salvaram o dia.

— Então Lokesh tinha o poder de congelar vocês?

— Tinha.

— Você percebeu algum outro poder dele?

— Sim.

— Ótimo. Vamos falar sobre isso mais tarde.

— Está bem. Vou escrever sobre tudo o que aconteceu enquanto está fresco em minha memória.

— Muito bom. Continuando, depois que Kishan e Kelsey encontraram Ren, os baigas quiseram deixar o acampamento quanto antes. Pegaram tudo o que podiam carregar e seguiram em fila selva adentro. Nós os acompanhamos em parte porque eu me sentia responsável por levá-los para o mais longe possível de Lokesh e em parte porque eles seguiram na direção que precisávamos ir. Pouco antes de partirmos, Ren apanhou uma faca e perfurou a pele de seu braço.

— Para quê?

— Para remover um dispositivo de rastreamento que Lokesh havia colocado ali. Seguimos com os baigas, fizemos um banquete com eles e partimos logo depois que lhe enviei o sinal, Nilima.

— O senhor representa uma divindade muito bem.

— Bem, parece que eles acreditaram que nós quatro éramos divindades. Se eu tivesse visto as coisas que eles viram, também teria acreditado nisso.

— Eles realmente usaram magia para manter Ren preso?

— Quando falei com eles sobre isso, o gunia afirmou que tem, sim, poder sobre os tigres e que usou sua magia para manter Ren lá. Ele pode criar uma espécie de barreira em torno do acampamento a fim de proteger a aldeia contra ataques de tigres. No entanto, ele disse que há alguns dias o feitiço foi alterado para atrair tigres para a aldeia. Parece que os soldados haviam sido importunados por ataques de tigres durante toda a semana.

— Ah, então foi por isso que Kishan conseguiu entrar?

— Parece que sim.

— Isso significa que Ren poderia ter saído?

— Possivelmente, mas Lokesh também parece ter poderes próprios. Presumo que usar os baigas para conter Ren fosse apenas um plano B para o caso de ele estar distraído demais para incapacitar Ren.

— Ele é horrível —disse Kelsey baixinho— Ren era seu prêmio máximo, seu troféu. Que ele esperou e caçou durante séculos. Não o teria deixado escapar.

— Acho que ele perdeu o interesse em Ren — interveio Kishan. — Ele está atrás de outra pessoa agora.

Kadam sacudiu a cabeça discretamente.

— De quem?

Ele não respondeu.

— De mim, não é?

Por fim, Kishan falou, dirigindo-se à Kadam.

— E melhor que ela saiba para que esteja preparada. Sim. Ele está determinado a ir atrás de você, Kells.

— Por quê? Isto é, por que ele está atrás de mim?

— Porque ele sabe como você é importante para nós. E porque... você o derrotou.

— Aquela não era eu. Era você.

— Mas ele não sabe disso.

Eles continuaram contando a história e, ao mesmo tempo em que ouvia, eu pensava naquela moça. Apesar de não me lembrar dela, reconheci que ela se arriscou muito por mim. Senti empatia por ela, e de alguma forma, a obrigação de protegê-la, já que ela havia se colocado em risco por mim, e agora era um alvo daquele demônio sádico.

Olhei para ela e senti compaixão. Ela colocou seu prato no chão, me oferecendo sua comida. Eu me levantei e me aproximei alguns passos. Eu comi os ovos, mas não consegui abocanhar as rabanadas. Kelsey pegou uma com o garfo e ofereceu a mim. Eu puxei o pão e o engoli. Depois de comer, voltei para o lado de Kishan e limpei o açúcar das minhas patas.

Kishan havia se calado, mas voltou a falar, dizendo que Lokesh havia ameaçado a vida de Kelsey, que o interrompeu:

— Lokesh não estava falando de mim.

— Estava sim, Kells. Ele devia saber quem você era. Ele disse: “Vou matá-lo, parar o coração dele.”

— Sim, mas por que você, disfarçado como Kelsey, estaria preocupado comigo, em meu disfarce de criado baiga? Ele disse matá-lo, não matá-la. Ele pensou apenas que eu fosse um traidor.

— Mas a ameaça de Lokesh matar você foi a razão de eu ter parado.

— Pode ter sido essa a razão de você soltá-lo, mas ele não estava me ameaçando.

— Então quem ele estava ameaçando? Ah — disse ele, vagamente. — Ele estava ameaçando Ren. Gostaria de ter entendido isso.

— Sim, ele estava ameaçando Ren. Ele sabia que eu não faria nada para prejudicá-lo.

— Claro que você não faria.

— O que está insinuando? E o que você quis dizer ao afirmar que gostaria de ter entendido isso? Que não teria parado?

— Não. Sim. Talvez. Eu não sei o que teria feito. Não posso prever como teria reagido.

Eu olhei para Kelsey e ela olhava para Kishan desapontada. Pela primeira vez eu quis me lembrar dela, pois ela parecia realmente se importar comigo, mais do que com o meu irmão, que, por outro lado, parecia ser capaz de fazer qualquer coisa por ela, inclusive abdicar de se vingar do homem que matou a mulher que ele amava e o amaldiçoou. 

— Bem, então fico feliz que você tenha entendido mal. Caso contrário, Ren talvez não estivesse aqui neste momento.

Kishan suspirou.

—Kelsey.

—Não! É bom saber que você estaria disposto a sacrificá-lo!

Kadam se remexeu na cadeira.

— Não teria sido uma decisão fácil para ele, Srta. Kelsey. Ensinei aos dois garotos que, embora cada indivíduo seja de grande importância, às vezes é necessário fazer sacrifícios pelo bem de todos. Se ele tivesse a oportunidade de livrar o mundo de Lokesh, sua primeira reação teria sido pôr fim à vida do tirano. O fato de ele ter se contido fala da profundidade da emoção que sentia no momento. Não faça mau juízo dele.

Kishan se inclinou para a frente, juntando os dedos, e fitou o chão.

— Eu sei quanto ele significa para você. Estou certo de que teria tomado a mesma decisão se soubesse que Lokesh estava falando de Ren e não de você.

— Tem certeza disso?

Ele ergueu os olhos para os dela e ambos se encararam silenciosamente.

— Eu prometo a você, Kelsey, que irei protegê-lo com a minha vida até o fim dos meus dias.

Eu olhei para o meu irmão, e ele olhava para Kelsey com firmeza. Havia uma certa dor em suas palavras, mas ele estava lhe falando com a mais absoluta sinceridade. Percebi naquele momento que meu irmão havia mudado. 

— Eu... peço desculpas por duvidar de você. Por favor, me perdoe.

— Não há nada para perdoar, bilauta.

— Posso continuar a história a partir daqui? .

— Por que não?

Kelsey continuou a história e, ela e Kishan iniciaram uma discussão, quando ela contou sobre as noivas baigas, dizendo que Kishan queria aceitar o casamento:

— Eu lhe disse que não foi isso que aconteceu.

— Então o que foi que aconteceu?

Kelsey percebeu Kadam balançando a cabeça para que Kishan não dissesse a ela que era eu quem queria aceitar o casamento, e eu entendi o por quê.

— O que foi agora? O que vocês dois não querem me dizer?

Kadam interferiu rapidamente

— Nada, Srta. Kelsey. É só que — ele fez uma pausa, pouco à vontade — foi considerado muito rude de nossa parte rejeitar as mulheres e os garotos estavam tentando demonstrar sua relutância a fim de apaziguar os líderes da tribo.

— Ah.

Kadam e Kishan fitaram-se. Kishan desviou o olhar com uma expressão de desagrado, irritação e impaciência.

— Está acontecendo alguma coisa estranha aqui — ela disse — e me sinto muito cansada para tentar descobrir o que é, mas tudo bem. Na verdade, não ligo mesmo para as duas mulheres. O assunto já foi encerrado. Temos Ren de volta e isso é tudo que importa.

Aproveitei que Nilima se levantou recolhendo as louças, para sair daquela situação desconfortável que me envolvia, embora eu não fizesse ideia de como. Me transformei em homem e me ofereci para ajudá-la. Ela me sorriu e aceitou a ajuda, mas não quis que eu ficasse para lavar a louça, dizendo que os três na sala provavelmente gostaria de falar comigo.

Entrei na sala, um pouco decepcionado por ter que enfrentar aquela situação novamente. Os três me olhavam interrogativamente. Principalmente Kelsey, que parecia ainda não estar entendendo o que estava acontecendo. Me sentei perto de Kishan e perguntei:

— Por que tenho a sensação de estar diante da Inquisição Espanhola?

— Só queremos nos assegurar de que você está realmente bem — disse Kadam.

— Estou relativamente bem.

— Ren, eu sinto... tanto. — Disse Kelsey —Não devíamos tê-lo deixado lá. Se eu soubesse naquele momento que tinha o poder do raio, poderia tê-lo salvado. Foi minha culpa.

Eu a fitei, tentando me lembrar de algo sobre ela. Eu me lembrava de fugir pela mata. Até me lembrava de alguns homens serem atingidos por raios. Mas ela definitivamente não estava lá. Foi Kishan quem lhe disse:

— Você não teve culpa de nada, Kells. Ele a empurrou para mim. Foi tudo decisão dele. Queria que você ficasse em segurança. — Ele fez um gesto de cabeça para Ren. — Diga a ela.

Eu o olhei sem entender, antes de responder:

— Eu não me lembro do episódio da mesma forma que você, mas se é o que diz...

Olhei para ela, com curiosidade, tentando trazer a sua imagem de volta à minha mente, mas não veio nada. Eu franzi a testa irritado e me virei para Kadam:

— Obrigado por me salvar. Eu deveria saber que traçaria um plano para me libertar.

— Na verdade, foi a Srta. Kelsey quem teve a ideia de que eu personificasse uma divindade. Sem o Lenço Divino que ela e Kishan foram buscar, não teríamos conseguido resgatar você. Eu não tinha a menor ideia de onde encontrá-lo. Somente por meio da visão, na qual estava o criado baiga, conseguimos descobrir onde Lokesh estava mantendo você. E apenas com as armas que nos foram dadas por Durga fomos capazes de dominar os guardas.

Eu assenti e sorri para ela, sem graça e sem saber o que dizer:

— Parece que tenho com você uma dívida de gratidão. Obrigado por seus esforços.

Ela me olhou triste e decepcionada. Olhei para Kishan e ele olhava para o outro lado, irritado. Ficamos todos ali, sentados, até que Kadam interrompeu o silêncio:

— Kishan, você se importa de me ajudar a mudar um móvel de posição no meu quarto? E pesado demais para que eu o levante sozinho.

Eu me ofereci imediatamente, ansioso para sair dali, mas Kadam rejeitou minha ajuda.

— Por favor, sente-se e descanse um pouco mais. Kishan e eu damos conta e acredito que a Srta. Kelsey gostaria de falar com você sozinho.

— Eu acho que ainda não é seguro... — começou Kishan.

Ela me encarava quando disse com firmeza:

— Está tudo bem, Kishan. Ele não vai me machucar.

Kishan se levantou e me encarou. Eu assenti e disse:

— Não vou machucá-la.

Kishan suspirou e a levou até o sofá perto de mim. Antes de sair ele disse:

— Estarei por perto. Se precisar de mim, é só gritar. — Então voltou-se para mim e ameaçou: —Não a machuque. Estarei de ouvidos atentos.

— Você não vai ficar ouvindo nossa conversa — ela disse.

— Vou, sim.

Kishan e Kadam deixaram a sala e ela começou:

— Se não estiver muito cansado, gostaria de conversar com você um minuto.

— Como quiser.

— Eu... eu senti tanto a sua falta. Tenho tanta coisa para lhe dizer que não imagino nem por onde começar. Sei que está cansado e provavelmente ainda sente dor, portanto serei breve. Queria dizer que sei que você precisa de tempo para se recuperar e que entendo se preferir ficar sozinho agora. Mas estou aqui se precisar de mim.

Ela respirou fundo antes de continuar:

— Posso ser uma boa enfermeira, mesmo que você seja rabugento. Vou lhe trazer canja e biscoitos de chocolate com manteiga de amendoim. Vou ler Shakespeare ou poemas ou o que você quiser. Podemos começar com O conde de Monte Cristo— tomou minha mão entre as suas. — Por favor, é só você me dizer do que precisa e terei prazer em providenciar.

Eu ainda sentia dores, e estava um pouco enjoado. O toque dela me deixou muito desconfortável. Eu retirei a mão delicadamente e disse:

— É muita gentileza sua.

— Isso não tem nada a ver com gentileza.

Ela aproximou-se de mim e segurou meu rosto entre as mãos. Eu respirei fundo quando ela disse:

— Você é meu porto seguro. Eu te amo.

Então ela me beijou.

Eu não sabia o que fazer. Não esperava por aquilo. Eu senti seus lábios quentes no meu e o sabor das lágrimas dela na minha boca. Foi bom, mas eu não consegui retribuir o beijo.

Ela agarrou o meu pescoço e deslizou para mais perto, ficando quase no meu colo. Eu mantive os meus braços esticados, sem abraçá-la, ainda sem saber o que fazer. Eu não queria fingir que sentia algo por ela. Kelsey não merecia ser enganada. Tampouco queria magoá-la.

Ela se afastou e deixou os braços caírem em seu colo, me olhando quase suplicante. Eu toquei meus lábios e sorri:

— Esse, sim, é o tipo de boas-vindas que um homem gosta de receber.

Ela sorriu feliz. Eu senti dor e gemi de leve. Ela se afastou, me deixando mais à vontade. Meio sem jeito eu comecei:

— Posso lhe fazer uma pergunta?

Ela segurou minha mão e beijou minha palma, enquanto eu observava, intrigado. Eu retirei a minha mão e ela respondeu:

— Claro que pode.

Eu puxei sua trança de leve, curioso pela fitinha colorida amarrada na ponta, como o penteado de uma menininha. Girei a fita entre os dedos e finalmente perguntei:

— Quem é você?

— Isso não tem graça, Ren. Como assim quem sou eu?

— Por mais que eu aprecie suas proclamações de devoção eterna, acho que você deve ter batido a cabeça ao lutar com Lokesh. Ou me confundido com outra pessoa.

— Confundido você com outra pessoa? Não mesmo. Você é Ren, não é?

— Sim. Meu nome é Ren.

— Certo. Ren. O cara por quem estou loucamente apaixonada.

— Como pode declarar seu amor por mim se eu nunca havia posto os olhos em você?

— Você está com febre? — perguntou, tocando minha testa. — Tem alguma coisa errada? Será que você bateu a cabeça?

Ela começou a apalpar minha cabeça, procurando por algum ferimento. Eu retirei as mãos dela delicadamente.

— Eu estou bem, hã... Kelsey, não é? Não tem nada errado com a minha cabeça e eu não estou com febre.

— Então por que não se lembra de mim?

— Provavelmente porque nunca a vi antes.

— Nós nos conhecemos há quase um ano. Você é meu... meu namorado. Lokesh deve ter feito alguma coisa! Sr. Kadam! Kishan! — gritou desesperada.

Kishan entrou correndo pela sala e se colocou entre nós, me empurrando. Ele pegou Kelsey no colo e a levou para uma cadeira, longe de mim. 

— O que foi, Kells? Ele machucou você?

— Não, não. Não foi nada disso. Ele não me conhece! Ele não se lembra de mim!

Kishan desviou os olhos, culpado.

— Você sabia! Você sabia disso e escondeu de mim?

Kadam entrou na sala.

— Nós dois sabíamos.

— O quê? E por que não me contaram?

— Não queríamos assustá-la. Pensamos que pudesse ser apenas um problema temporário que se resolveria sozinho quando ele ficasse bom — explicou Kadam.

Ela apertou o braço de Kishan. Seu olhar era de dor e compreensão:

— Então, com as mulheres baigas...

— Ele queria aceitá-las como esposas — explicou Kishan.

— É claro. Agora tudo faz sentido.

Kadam sentou-se perto de mim e me perguntou se eu ainda não me lembrava dela.

— Eu nunca tinha visto esta jovem até ela, ou Kishan, eu acho, surgir diante da minha jaula e me resgatar.

— Isso! Uma jaula. Foi numa jaula que nos vimos pela primeira vez. Lembra? Você estava no circo. Era um tigre de circo e eu desenhei você e li para você. Eu ajudei a libertá-lo.

— Lembro do circo, mas você nunca esteve lá. Lembro que eu mesmo me soltei.

— Não. Você não podia. Se tivesse a capacidade de se libertar, por que não teria feito isso séculos antes?

Esta era uma das coisas que não fazia sentido sobre as minhas lembranças.

— Não sei. Tudo de que me lembro é de sair da jaula, ligar para Kadam e ele ir até lá para me trazer para a Índia.

Kadam me interrompeu.

— Você se lembra de ir ver Phet na selva? De discutir comigo sobre levar a Srta. Kelsey com você?

— Eu me lembro de discutir com você, mas não sobre ela. Eu discutia sobre ir ver Phet. Você não queria que eu perdesse meu tempo, mas eu achava que não havia outro jeito.

Kelsey estava emotiva, e com a voz chorosa me perguntou:

— E quanto a Kishkindha? Eu estava lá com você também.

— Eu me lembro de estar sozinho.

Confusa, perguntou:

— Como pode ser? Você se lembra do Sr. Kadam? E também de Kishan? E de Nilima?

— Sim.

— Então só não reconhece a mim?

— Parece que sim.

— E quanto ao baile do dia dos namorados, a luta com Li, os biscoitos de chocolate com manteiga de amendoim, os filmes a que assistimos, a pipoca, o Oregon, as aulas na faculdade, a ida à Tillamook? Tudo isso simplesmente... desapareceu?

— Não exatamente. Eu me lembro de lutar com Li, de comer biscoitos, da Tillamook, de filmes e do Oregon, mas não me lembro de você.

— Quer dizer que você foi para o Oregon sem nenhum motivo?

— Não. Fui para cursar a faculdade.

— E o que você fazia no tempo livre? Quem estava com você?

Pensei um pouco antes de lhe responder:

— Ninguém a princípio e depois Kishan.

— Você se lembra de lutar com Kishan?

— Sim.

— Por que estavam lutando?

— Não consigo me lembrar. Ah, espere! Biscoitos. Brigamos por causa de biscoitos.

Lágrimas começaram a escorrer do rosto dela. Kishan olhava para ela, desolado, enquanto ela dizia:

— Isso é uma piada cruel. Como uma coisa dessas pode ter acontecido?

Kadam se levantou e deu tapinhas em suas costas.

— Não sei. Talvez seja apenas uma perda de memória temporária.

— Acho que não — fungou, irritada. — É muito específico. É só de mim que ele não se lembra. Foi Lokesh quem fez isso.

— Suspeito que a senhorita esteja certa, mas não vamos perder as esperanças. Vamos lhe dar tempo suficiente para se recuperar de seus ferimentos antes de nos preocuparmos demais. Ele precisa descansar e podemos tentar apresentá-lo a coisas que irão lhe reativar a memória. Enquanto isso vou entrar em contato com Phet para ver se ele tem algum medicamento herbáceo que nos ajude neste caso.

Eu os interrompi irritado:

— Antes que vocês todos me submetam a testes, ervas e viagens pelos caminhos da memória, eu queria ter algum tempo para mim.

Eu me virei apressado e saí para o meu quarto, onde me transformei em tigre e dormi, mais uma noite sem sonhos.


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