O resgate do tigre escrita por Anaruaa


Capítulo 35
Baigas - Ren




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Eu estava dentro da jaula, dormindo, quando fui acordado por um barulho estranho, como se algo estivesse tentando derrubar o prédio.

Todas as noites, após o dia todo sendo torturado por guardas ou pelo próprio Lokesh, eu era levado a esta jaula. Algumas vezes era alimentado, outras não. Naquele dia, eu não havia comido e nem bebido nada.

Eu sempre estava exausto, machucado e fraco e acabava dormindo, até ser acordado no dia seguinte por aquele homem tatuado, que me buscava para as sessões de tortura, ainda como tigre. Eu já não me importava mais.

Eu ainda sabia quem eu era: Alaghan Dihren Rajaran, príncipe amaldiçoado de Mujulaim, ou Ren, o tigre branco. Mas eu me sentia vazio, como se algo estivesse faltando, como se uma parte de mim estivesse sido arrancada.

Todos os dias Lokesh me perguntava sobre o amuleto de Kishan, e sobre uma mulher: Kelsey. Ele me perguntava quem ela era e onde ela estava. Ele me machucava de todas as maneiras para que eu lhe dissesse. Eu não sabia quem ela era, mas sentia que deveria saber. Eu queria saber. Sentia que ela era alguém importante. Mas a pronuncia desse nome sempre vinha seguida de muita dor. Eu me deixava bater, até desmaiar ou voltar para a cela. Então o vazio voltava. Eu não sonhava, nem planejava nada. Só esperava.

Naquela noite, algo aconteceu. Ouvi os sons de explosão, gritos e batidas, mas não havia nada o que eu pudesse fazer. Sentei-me no fundo da cela, sem conseguir dormir. Então ouvi passos se aproximando. Imaginei que eram os guardas. Um som de explosão e a porta da jaula se abriu. Eu continuei sentado, sem me importar.

— Ren? — Era a voz do meu algoz.

Eu não respondi, embora tenha achado estranho ele me chamar pelo nome.

— Ren? Você está.... acordado?

Olhei para a frente e vi o homem que me chamava. Atrás dele uma mulher bonita, de pele clara e olhos castanhos. Estiquei meu corpo em sua direção. A mulher fez um gesto me chamando e esticou a mão para mim. Me segurei na grade, trêmulo e fraco e caminhei lentamente até a porta. O homem afastou-se para me dar passagem e eu segurei a mão da mulher, que me olhava com firmeza, dando-me segurança.

— Ren? — chamou o homem tatuado.

Olhei para ele e temi que ele me prendesse novamente, que prendesse a mulher. Lembrei-me de todo o sofrimento que aquele homem havia me infligido. Uma força explodiu do meu peito e eu soquei-lhe o queixo. O homem caiu desmaiado e eu tombei para o lado, sendo segurado pela mulher, que me apoiou sem dificuldades e me ajudou a ficar de pé. Em seguida, a mulher de olhos castanhos correu em direção ao homem desmaiado. Ela parecia preocupada.

— Kelsey!

Era aquele  nome. O nome pelo qual Lokesh me torturava diariamente.

Um outro homem entrou na sala e correu até eles. Ele parecia um dos homens da tribo, só que mais alto e forte. Seu tórax, assim como o rosto, era coberto por tatuagens. Estava de peito nu, usando pesados colares de contas e descalço, vestindo uma saia. O homem retirou um lenço do pescoço, então sua aparência mudou. Era Kadam. Ele entregou o lenço à mulher, que se envolveu com ele e também mudou de aparência: era Kishan, que cobriu o homem e este também mudou, para a forma da mesma mulher branca de olhos castanhos que eu vira antes.

Kadam se aproximou e me disse que sairíamos logo dali e depois me explicaria tudo. Ele viu que eu estava fraco e machucado e eu lhe disse que me transformaria em tigre.

Kadam providenciou alimentos usando o fruto e alguns aldeões que o seguiam me trouxeram água.  Depois de comer e beber, eu me sentia mais forte e finalmente saímos dali.

Os baigas trouxeram uma maca improvisada e colocaram a moça de olhos castanhos nela. Kishan e Kadam pareciam preocupados com ela. Eu não sabia quem era aquela mulher, e isto me perturbava. Kadam e Kishan agiam como se ela fosse alguém importante e pareciam esperar o mesmo comportamento de mim.

Seguimos os baigas selva adentro. Nós tínhamos que nos afastar do acampamento o mais rápido possível. Aquelas pessoas temiam Lokesh, mas confiavam em Kadam, acreditando que ele era alguma divindade. Kishan se aproximou de mim e me falou da moça:

— Ren, não precisa se afastar dela. Kelsey vai entender que não foi culpa sua. Ela estava tão aflita pra te encontrar que se esqueceu de retirar o disfarce. Todos nos esquecemos.

Rugi aflito ao ouvir aquele nome. Então ela era Kelsey, a mulher por quem Lokesh me torturava dia após dia. Não consegui evitar de sentir rancor.

Kishan continuou me falando o quanto aquela mulher me amava e o quanto ela havia se arriscado para me salvar. Eu me transformei irritado, e falei alto:

— Kishan, eu não sei quem é ela.

Kadam me ouviu e  aproximou-se rapidamente de nós. Kishan parecia incrédulo:

— Como assim? O que você está dizendo? É brincadeira, não é?

— Não, não é. Todos agem como se eu a conhecesse e como se ela fosse alguém importante, mas o fato é que eu não me lembro dela e não faço ideia de quem ela seja. Todos os dias eu era espancado enquanto ouvia o nome dela, então, a única coisa que eu sinto agora é dor. Todas as vezes que ouço esse nome eu me lembro da minha tortura, então eu não quero ficar perto desta mulher agora.

Eu recomecei a andar, mas acabei tombando. Kishan me segurou e Kadam pediu para que trouxessem outra maca, na qual eu me deitei e segui sendo carregado por 4 homens da tribo. Eu acabei dormindo por boa parte do caminho.

Embora ainda fraco e machucado, meu sono foi tranquilo. Acordei em uma tenda montada no acampamento Baiga. Kishan tinha acabado de entrar quando eu abri os olhos. 

— Como você está irmão? — Perguntou.

— Ainda sinto algumas dores, mas já me sinto melhor, obrigado.

— Como você se sente em relação à Kelsey, ainda não se lembra dela?

—Não. E não gostaria de falar sobre isso agora, se não se importa.

— Tudo bem.—Respondeu Kishan após alguns segundos de silêncio pensativo — Junte-se a nós quando estiver confortável. Vou pedir para lhe trazerem algo para comer.

Kishan saiu. Pouco tempo depois, algumas pessoas da tribo vieram à minha tenda, trazendo alimentos. Em seguida, os baigas cuidaram dos meus ferimentos e preparam-me um banho, me ajudando a lavar meus cabelos. Eu me senti aliviado e humano novamente.

Os baigas me vestiram com uma saia de linho e me ajudaram a deixar a tenda e me dirigir até o local onde estavam celebrando. Todos me olhavam.

Procurei por Kishan e o vi, ao lado da moça de olhos castanhos. Percebi especialmente os olhos dela me olharem suplicantes. Desviei os olhar e encontrei Kishan. Sorri para ele, que se levantou e me ajudou a me apoiar. 

— Obrigado por me salvar e me mandar a comida. Ainda não pude comer muito, mas me sinto... bem. Ou, pelo menos, melhor.

Me sentei a seu lado e começamos a conversar em nossa língua. Contei a ele sobre o cativeiro e sobre Lokesh. Kishan não conseguiu evitar falar sobre “Kelsey”. Ele não conseguia entender como eu não me lembrava dela. Me perguntou se eu não me lembrava da busca ao fruto sagrado em Kishikinda, ou sobre lutar com macacos e Kappas.

Eu me lembrava de tudo aquilo, mas na minha memória, eu estava sozinho. Eu disse isso a ele. Também lhe disse que algumas lembranças não faziam sentido. Eu me lembrava, por exemplo, de quando eu voltei a me transformar em homem, 300 anos depois de ser capturado, mas não conseguia entender como aquilo aconteceu.  

Kishan me tranquilizou, lembrando-me que eu devia estar em choque, traumatizado pela tortura, ou ainda que Lokesh poderia ter usado magia para confundir a minha mente, mas ele acreditava que eu ficaria bem e me lembraria em breve. 

— Quer comer mais alguma coisa? A garota de olhos castanhos me perguntou.

Eu a olhei brevemente, mas me senti incomodado. Então, respondi-lhe, desviando o olhar:

— Agora não, obrigado — e me voltei para Kishan.

Neste momento, o Gunia dos baigas se ajoelhou diante de Kadam e lhe disse algo. Então se pôs de pé e bateu palmas. O homem que me torturava a mando de Lokesh se aproximou e se ajoelhou diante de mim. Olhei para ele rancoroso, então ele começou a dizer em sua língua:

—Por favor, me perdoe, nobre cavalheiro. Lutei contra o demônio o máximo que pude, mas ele machucou minha família. Minha mulher e meus filhos estão mortos. Nada me restou. A menos que o senhor restaure minha honra, vou deixar a tribo e morrer sozinho na selva.

Estendendo uma das mãos, o homem desfez seu coque e moveu a faca para cima, através dos cordões que prendiam o cabelo, tosquiando-o. Então apanhou com reverência o cabelo cortado, curvou a cabeça até o chão e, com as mãos abertas, ofereceu-o a mim.

Eu o avaliei por algum tempo, lembrando de todas as vezes em que ele me bateu e me trancafiou na jaula. Então me lembrei de como ele parecia amedrontado e triste e concluí que ele não tinha culpa por aquilo, mas era outra vítima daquele demônio. Estendi as mãos com as palmas para cima, a fim de aceitar a oferenda, então respondi em sua língua:

—Eu aceito sua oferta. Nós todos sofremos nas mãos do demônio. Nós iremos puni-lo pelos crimes cometidos, inclusive pelo ato imperdoável de destituí-lo de sua família. Suas ações contra mim estão perdoadas. Eu devolvo sua honra. Siga com sua tribo e encontre a paz.

O homem depositou o cabelo em minhas mãos e se afastou. Em seguida, o Gunia apresentou duas lindas moças Baigas diante de nós. As moças se ajoelharam diante de mim e de Kishan e cada uma colocou a mão sobre o colo de um de nós, enquanto olhavam para o chão.

O Gunia falou em sua língua, o quanto estaria honrado se fizéssemos parte de sua tribo. para tanto, aquelas duas irmãs se ofereciam para se casar conosco.

As mulheres eram ambas muito belas. Tinham lindos cabelos pretos compridos e lustrosos, e traços delicados. A cintura fina era acentuada por cintos estreitos feitos de pedra polida. Eram curvilíneas e tinham delicadas tatuagens ao longo dos braços e das pernas, que desapareciam sob a bainha das saias finas que usavam. Elas eram criaturas extraordinárias.

Pensei que seria agradável estar com uma daquelas mulheres, pois eu já estava sozinho havia muito tempo. Levantei-me sorridente e caminhei mancando ao redor das mulheres, segurei e beijei a mão de uma delas sorrindo. Ela devolveu o sorriso timidamente. Ela era realmente graciosa.

Kishan se levantou e veio rapidamente até mim, sussurrando ao meu ouvido que nós não poderíamos nos casar com aquelas mulheres. Eu apontei para as moças, dizendo a ele o quanto elas eram bonitas. 

— Isso não importa Ren. Você nem as conhece! Você está confuso e traumatizado, mas nós temos pessoas nas nossas vidas e não podemos simplesmente deixá-las para trás. Isto não se parece com o Ren que eu sempre conheci. Lokesh deve ter feito algo com a sua mente. Eu não posso permitir que você faça isso.

Eu toquei o cabelo da mulher e disse a ela que adoraria sentir o cheiro dela naquela noite. A mulher riu, mas Kishan me olhou firme e inflexível. Ele fez uma reverência para o Gunia e para as duas mulheres, disse que todos nos sentíamos honrados pela oferta, mas que não poderíamos aceitá-la. Em seguida, virou-se e sentou-se ao lado de da moça de olhos castanhos. Eu também me virei, indo me sentar ao lado de Kishan. Ouvi os dois conversando, mas dei de ombros:

— Kishan, se você quer uma esposa baiga, tudo bem. Se isso vai deixá-lo feliz, então vá em frente. As duas são muito bonitas.

Ele resmungou baixinho:

— Eu não quero uma esposa baiga, Kells. Explico depois.

Mais tarde, Kadam nos avisou que estava na hora de partir. Nos despedimos dos baigas e seguimos através da selva. Kishan me disse que Nilima vinha nos encontrar e então partiríamos para a casa. Kadam ligou um sofisticado dispositivo militar. Era um relógio de pulso com uma tela de vídeo do tamanho de um baralho de cartas que carregava imagens de satélite enquanto andávamos. O aparelho não só mostrava nossa longitude e latitude atuais, como mantinha um registro de quantos quilômetros ou milhas tínhamos que percorrer para chegar ao nosso destino.

Eu me transformei em tigre e segui trotando atrás dos três. A moça de olhos castanhos estava machucada, mas teimava em ir andando. Kishan ia apoiando-a enquanto Kadam seguia à frente. Eu passei por eles para acompanhar Kadam e vi quando a moça estendeu a mão em minha direção. Rugi para ela, instintivamente. Kishan se colocou entre nós. 

— Kishan? O que há de errado com ele?

— Ele não está... em seu estado normal, Kells.

— É como se ele não me conhecesse.

— Ele provavelmente está reagindo a você como um animal ferido. Tem a ver com autoproteção. Perfeitamente natural.

— Mas quando vocês dois foram feridos na selva antes, eu cuidei de vocês. Nenhum dos dois tentou me machucar ou me atacar. Vocês sempre souberam quem eu era.

— Ainda não sabemos o que Lokesh fez com ele. Tenho certeza de que ele vai sair dessa à medida que seus ferimentos forem se curando. Até lá, quero que você fique sempre perto de mim ou do Sr. Kadam. Um tigre ferido é uma criatura muito perigosa.

— Está bem. Não quero causar a ele nenhuma dor além daquela que ele já está sentindo.

Senti um pouco de pena, mas eu não conseguia evitar o desconforto ao estar perto dela.

Chegamos ao lugar onde Nilima viria nos buscar. Era uma represa e precisaríamos nadar até o avião, que pousara na água, mais à frente.

A moça dos olhos castanhos entrou primeiro, sentando-se ao lado de Nilima. Eu me transformei em homem e sentei atrás, ao lado de Kishan. Kadam se sentou na frente e fechou a porta.

— Segurem-se todos — advertiu Nilima.

Um súbito deslocamento nos impulsionou adiante quando as hélices aceleraram ruidosamente. Ganhamos velocidade, quicamos na água algumas vezes e então alcançamos o céu noturno.

Me transformei novamente e deitei a cabeça no colo de Kishan. Dormi um sono vazio.


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