O resgate do tigre escrita por Anaruaa


Capítulo 31
O reencontro com Kadam




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/758448/chapter/31

Depois que atravessamos o portão, algo começou a incomodar meus olhos. Eu pisquei várias vezes até que Kelsey se abaixou para retirar a película verde que havia se formado.

Kelsey estava ansiosa para chegar ao acampamento de Kadam e recusou-se a descansar. Naquele primeiro dia, caminhamos até escurecer, quando paramos para dormir.

Na manhã seguinte, consegui retomar a forma humana. Kelsey providenciou minhas roupas e escolheu uma blusa marrom avermelhado. Sai para me vestir e quando voltei, ela me olhou e sorriu, gostando da minha aparência. Fiquei satisfeito.

Retomamos o caminho e novamente paramos ao anoitecer. Conforme o esperado, eu agora tinha 12 horas como homem, e ainda estava nesta forma quando paramos. Entramos na tenda e Kelsey disse que tinha algo para me mostrar. Ela pediu que eu me sentasse diante dela e pegou o lenço.

— É o seguinte: o Lenço pode fazer várias coisas. Ele pode se tornar ou criar qualquer coisa feita de tecido ou de fibras naturais. Ele não precisa reabsorver o que cria. Até pode fazer isso, mas também pode deixar o objeto para trás e, nesse caso, a criação perde a magia do tecido. O Lenço também pode ser modelado para recolher os ventos como na história da sacola do deus japonês Fujin. A terceira coisa para que ele pode ser usado é... para mudar a aparência.

— Mudar a aparência? Como?

— Você já viu um mágico tirar um coelho da cartola ou transformar um pássaro em uma pena?

— Alguns mágicos visitavam a corte de vez em quando. Um deles transformou um camundongo em um cachorro.

— Isso! É parecido. Trata-se de uma ilusão. Um truque feito com luz e espelhos.

— Como isso funciona?

— Lembra que a Divina Tecelã disse que havia poder na tecelagem? Ela não só cria as roupas da pessoa, como também pode fazê-lo se parecer com ela. O segredo é: é preciso ser específico e capturar em sua mente exatamente com quem você quer se parecer. Vou experimentar. Observe e me diga se funciona — Disfarce, por favor... Nilima.

O lenço cresceu e brilhou, mudando de cores. Kelsey o enrolou no corpo, inclusive cobrindo a cabeça. Quando ela se desenrolou, quem estava diante de mim era Nilima.

Eu fiquei impressionado e confuso, tentando entender o q tinha acontecido. Kelsey e Nilima tinham trocado de lugar? Ou Kelsey se transformara em Nilima?

— E então?

— Kells?

— Sim.

— Você... você está até falando como Nilima. Está vestida como ela.

Kelsey olhou para baixo, percebeu que usava saia.

— Acabei de perceber. E estou congelando!

Levantei me e tirei meu casaco, colocando-o nela e toquei brevemente a sua mão.

— Sua pele se parece com a dela. Suas unhas estão compridas e pintadas. Inacreditável!

— Ok. Demonstração feita. Estou congelando de verdade. — Tornou a se enrolar no tecido e disse: — De volta a mim mesma, por favor.

Então, em pouco tempo, Kelsey retomou sua própria aparência.

— Agora experimente você, Kishan. Não temos espelho. Quero ver o quanto isso é fiel.

— Certo. — Eu peguei o lenço e disse: — Disfarce... Sr. Kadam.

Quando desenrolei-me do lenço, Kelsey me olhava boquiaberta, esticou o dedo e tocou a barba que eu agora possuía:

— Uau! Você está igualzinho a ele! Parece de verdade. E uma réplica perfeita!

Toquei meu próprio rosto e cabelo, impressionado.

— Espere um instante! Você está com o amuleto dele! Parece real?

Toquei o colar e percebi que a textura era diferente do real.

— Parece real, mas não é.

— Como assim?

— Usei um amuleto a maior parte da minha vida e, quando o dei a você, podia sentir sua ausência. Este aqui não me parece real. Não parece ter poder. Também é mais leve e a superfície é ligeiramente diferente.

— Humm, interessante. Não sei se posso sentir o poder do meu.

Kelsey tocou o próprio colar e a réplica em meu pescoço, comparando-os.

— Acho que o que você está usando é feito de algum tipo de tecido.

— É mesmo? — Ele o esfregou entre os dedos. — Tem razão. A superfície é ligeiramente diferente. Você não consegue mesmo sentir o poder do amuleto?

— Não.

— Bem, se o usasse por tantos anos quanto eu, sentiria.

— Talvez seja algo que somente vocês, tigres, possam sentir, por estarem tão intimamente associados a ele.

— Talvez. Teremos que perguntar sobre isso ao Sr. Kadam.

Retirei o tecido, voltando a minha própria aparência.

— Então, qual é exatamente o seu plano, Kells?

— Ainda não elaborei todos os detalhes, mas pensei que talvez pudéssemos personificar os guardas de Lokesh e entrar onde quer que estejam mantendo Ren.

— Você não pretende fazer uma troca, então? Um amuleto em troca de Ren?

— Não se pudermos evitar. Gostaria que este fosse o último recurso. O grande problema do plano é que não sei onde Ren está sendo mantido prisioneiro. Eu lhe contei que vi Ren em minha visão, mas também vi uma pessoa que tenho esperanças de que o Sr. Kadam possa identificar.

— Identificar como?

— O cabelo e as tatuagens dele eram singulares. Nunca vi nada parecido.

— É um tiro no escuro, Kells. Identificar de onde é o criado não significa necessariamente saber se é lá que Lokesh está mantendo Ren.

— Eu sei, mas é tudo que temos para prosseguir.

— Muito bem, então temos um como. Só precisamos de um onde.

— Exato.

No dia seguinte continuamos caminhando. Eu dormi como tigre para poder caminhar como homem. Eu me sentia sufocado como o animal e queria ser humano o tempo todo. Kelsey tentou me convencer a ficar feliz por ter 12 horas. Depois ela me pediu para contar tudo o que eu soubesse sobre Lokesh.

— Está bem. Para começar, ele não veio de uma linhagem real.

— Como assim? Pensei que fosse rei.

— Ele era, mas não começou assim. Quando o conheci, era um conselheiro real. Ele havia ascendido rapidamente a um posto de autoridade. Quando o rei morreu de maneira inesperada, sem deixar descendentes, Lokesh assumiu a posição de rei.

— Provavelmente tem uma história muito interessante aí. Eu adoraria saber como aconteceu sua ascensão ao poder. Todos simplesmente o aceitaram como o novo rei? Houve algum protesto?

— Se houve, ele logo reprimiu quaisquer movimentos de insatisfação e se pôs a formar um poderoso exército. Seu reino havia sido sempre muito pacífico e nunca tínhamos enfrentado problemas com eles até Lokesh assumir o poder. Mesmo então, ele era sempre muito cauteloso com minha família. Pequenos conflitos irrompiam entre nossos exércitos, dos quais ele sempre afirmava não ter conhecimento. Agora achamos que ele estava reunindo informações, pois os conflitos sempre aconteciam em áreas militares estratégicas. Ele os descartava como mal-entendidos sem importância e nos assegurava de que iria repreender os sobreviventes.

— Sobreviventes? Como assim?

— Os conflitos sempre resultavam na morte de soldados seus. Ele os usava como ferramentas descartáveis. Exigia-lhes lealdade e eles a davam... até mesmo sacrificando suas vidas.

— E ninguém da sua família jamais suspeitou de nada?

— Se alguém desconfiava dele, era o Sr. Kadam. Ele era o chefe dos militares na época e achava que havia mais coisas ali do que soldados confundindo suas ordens. Ninguém mais, porém, suspeitava de Lokesh. Ele era muito encantador quando nos visitava. Sempre assumia um comportamento humilde quando estava perto de meu pai, mas o tempo todo estava friamente planejando nossa derrocada.

— Quais são as fraquezas de Lokesh?

— Acho que ele conhece mais as minhas fraquezas do que eu as dele. Imagino que maltratasse Yesubai. Segundo o que nos contou, sua mulher havia morrido muito antes de o conhecermos. Yesubai nunca falava da mãe e nunca me ocorreu perguntar. Até onde sei, não lhe resta nenhum parente, nenhuma descendência, a menos que tenha se casado de novo depois. Ele almeja o poder. Isso pode ser uma fraqueza.

— Ele almeja dinheiro? Poderíamos comprar a liberdade de Ren?

— Não. Ele usa dinheiro apenas como meio de obter mais poder. Não dá a mínima para joias ou ouro. Ele pode até dizer o contrário, mas eu não acreditaria. Ele é um homem ambicioso, Kelsey.

— Sabemos alguma coisa sobre as outras partes do amuleto? Como, por exemplo, onde ele as conseguiu?

— A única coisa que sei sobre o amuleto é o que meus pais nos contaram. Eles disseram que as partes do amuleto eram usadas por cinco chefes militares e que foram transmitidas como herança ao longo dos séculos. A família de minha mãe tinha uma parte e a de meu pai tinha outra. Foi assim que Ren e eu ficamos cada um com uma parte. A que você usa era da mamãe e Kadam usa a do papai. Não tenho a menor ideia de como Lokesh adquiriu as outras três partes. Eu nunca ouvira falar de outras partes do amuleto até Lokesh mencioná-las. Ren e eu usávamos nossas partes sob a roupa como peças de herança de família cuidadosamente protegidas.

— Talvez Lokesh tenha encontrado uma lista das famílias a que elas foram confiadas...

— Talvez. Mas nunca ouvi falar de tal lista.

— Seus pais sabiam que os amuletos eram poderosos?

— Não. Não até sermos transformados em tigres.

— Vocês não tiveram um antepassado que viveu muito tempo, como o Sr. Kadam?

— Não. Nossa família era prolífica de ambos os lados. Havia sempre um rei jovem a quem passar o amuleto e era uma tradição nossa fazer isso quando o garoto completava 18 anos. Nossos antepassados tiveram vidas mais longas que o normal, mas a expectativa de vida então era bem mais curta que hoje.

— Infelizmente nenhuma dessas informações nos dá uma pista de alguma das fraquezas de Lokesh.

— Talvez dê, sim.

— Como?

— Ele ambiciona o poder acima de todas as coisas. Como está perseguindo as partes do amuleto a qualquer custo, então essa é sua fraqueza.

— O que você está querendo dizer?

— Acabamos de ver o Lenço criar uma réplica do amuleto quando assumi a forma do Sr. Kadam. Se ele pegar a réplica, achará que venceu.

— Mas não sabemos se a réplica pode ser tirada da pessoa ou não. Mesmo que possa, não sabemos quanto tempo dura.

— Testaremos quando voltarmos.

— É uma boa ideia.

Kelsey tropeçou e eu a segurei, perguntando se ela precisava descansar, mas ela se recusou e me agradeceu por tudo o que eu tinha feito em Shangri-lá, dizendo que não teria conseguido sem mim. Eu parei observando-a.

— Você não achou que eu a deixaria ir sozinha, achou?

— Não, mas me sinto grata por ter tido você comigo.

— Gratidão é tudo o que vou ganhar, não é?

— O que mais você esperava?

— Adoração, devoção, afeto, paixão ou simplesmente a confissão de que me acha irresistível.

— Desculpe, Don Juan. Vai ter que viver com minha eterna gratidão.

Eu suspirei teatralmente.

— Acho que esse é um começo tão bom quanto qualquer outro. Que tal então nos considerarmos quites? Nunca lhe agradeci por ter me convencido a voltar para casa. Eu... descobri muitas coisas de que gosto no fato de estar em casa.

Ela me sorriu:

— Feito.

Eu passei o braço por seus ombros e continuamos a caminhar.

— Eu me pergunto se vamos encontrar aquele urso outra vez — refleti.

— Se o encontrarmos, dessa vez devo conseguir mantê-lo à distância. Não pensei em usar meu poder naquele momento. Sou uma guerreira de meia-tigela.

— Você lutou muito bem contra os pássaros. Eu iria para a guerra com você a qualquer hora. Vou lhe contar sobre a ocasião em que deixei minha espada em casa.

Eu beijei sua testa e fomos relembrando coisas boas do passado. Ao anoitecer, visualizamos ao longe o acampamento de Kadam. Eu já sentia o cheiro dele e sabia que Kelsey não iria querer descansar antes de chegarmos lá. Estava escuro e eu segurei a mão dela, dizendo que era porque eu enxergava melhor no escuro, mas a verdade é que eu sentia falta do toque de seu toque. Quando chegamos, Kadam deu um caloroso abraço em Kelsey, o qual ela retribuiu. 

— Vocês devem estar congelando! Entrem. Vou fazer um chá quente. Deixem-me pegar uma chaleira para pôr no fogo.

— Sr. Kadam, não precisa fazer isso. Temos o Fruto Dourado, lembra?

— Ah, sim. É verdade.

— E temos mais uma coisa também.

Kelsey tirou o lenço do pescoço e falou com ele.

— Almofadas macias, por favor, e poderia tornar a barraca um pouco maior? — 

Kadam ficou fascinado vendo o lenço obedecer. Explicamos a ele como o lenço funcionava e ele se lembrou do trecho da profecia que dizia: “O povo da Índia será vestido”. Depois perguntou sobre um outro trecho que falava sobre " disfarces", então mostramos a ele. Eu peguei o lenço e pedi:

— Disfarce. Quero ver se funciona sem que eu diga um nome em voz alta, como o Fruto Dourado.

— Boa ideia

Me cobri com o lenço e quando o tirei, olhei para Kelsey e me arrependi ao ver seu rosto aflito em me ver na forma de Ren.

— Eu sinto muito. Não queria chocar o Sr. Kadam mostrando a ele o próprio rosto.

— Está tudo bem. Só desfaça isso depressa, por favor.

Retirei o disfarce, percebendo que Kelsey ficara abalada, embora tentasse reprimir suas emoções. Comecei a explicar a Kadam, que estava boquiaberto:

— Com o Lenço, podemos assumir a forma de outras pessoas. Kelsey se transformou em Nilima e eu em você. Precisamos testar seu alcance e tentar diferentes formas para podermos entender as habilidades e as limitações de disfarce do Lenço.

— Simplesmente... incrível! — exclamou Kadam. — Kishan, posso?

— Claro.

Joguei o lenço para ele. Kadam o inspecionou enquanto dizia:

— Ah... imaginem as possibilidades. Quantas pessoas o Fruto Dourado e este tecido glorioso poderiam ajudar? Tanta gente sofrendo com a escassez de alimentos e roupas para proteger do frio... e não apenas na Índia. Esses são presentes verdadeiramente divinos.

— Quanto tempo ficamos fora? — perguntou Kelsey.

— Pouco mais de uma semana.

Kelsey fez uma pausa, pensando, em seguida exclamou animada:

— Ótimo. Nosso tempo em Shangri-lá não contou.

— Quanto tempo vocês dois ficaram em Shangri-lá, Srta. Kelsey?

— Não tenho certeza, mas acho que foram quase duas semanas — ela me olhou. — Confirma?

Eu assenti.

— Sr. Kadam, quando podemos partir?

— Podemos ir ao amanhecer.

— Quero chegar em casa o mais rápido possível. Precisamos nos preparar para salvar Ren.

— Podemos atravessar a fronteira e entrar na Índia pela província de Sikkim. Vai ser muito mais rápido do que passar pelo Himalaia de novo.

— Quanto tempo isso levará?

— Depende da rapidez com que passarmos pela fronteira. Se não houver problemas, talvez uns poucos dias.

— Ótimo. Temos muito para lhe contar.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "O resgate do tigre" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.