O resgate do tigre escrita por Anaruaa


Capítulo 21
Coisas boas




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Kelsey permanecia desacordada enquanto eu a observava. Eu estava tranquilo porque, desde que entramos naquele lugar, os ferimentos dela começaram a cicatrizar rapidamente, então ela estava apenas dormindo. De qualquer forma, fiquei a noite toda a seu lado, para protegê-la, caso houvesse algum perigo. 

Ela dormiu por cerca de 12 horas, acordando ao amanhecer. Por todo aquele tempo, permaneci na forma humana. Lembrando-me das histórias que ouvi sobre Kishikinda, me transformei em tigre algumas vezes, e sempre conseguia me transformar em homem novamente. Eu mantinha a capacidade de transformação, mas não tinha a necessidade de me transformar. Me sentia estranho, mas não necessariamente mal.

Quando Kelsey acordou, eu lhe disse que naquele lugar ela se curava tão rápido quanto eu e Ren lá fora. Ela concluiu que se o meu amuleto não a protegia dos ferimentos, era possível que o poder dele fosse outro.

Enquanto comíamos, Kelsey me perguntou sobre o lugar onde estávamos.

— Não tenho certeza. Cerca de um quilômetro e meio além do portão do espírito.

— Você me carregou?

— Sim — eu a envolvi com um braço — Tive medo de que você morresse.

— Aparentemente, meu retorno dos mortos é um tema recorrente nestas cidades míticas.

— Espero que esta seja a última vez que você chega tão perto.

— Eu também. Obrigada. Por tudo.

Kelsey me pediu as anotações de Kadam que estavam na mochila e informou-me de que deveríamos encontrar uma tal de pedra ônfala, Ela se sentia descansada o suficiente e disse que quanto antes começássemos, mais rápido conseguiríamos salvar Ren.

Eu disse a ela para trocar de roupas, já que ela ainda estava vestindo as roupas para neve. O lugar onde estávamos era quente e eu já havia trocado as minhas, mas eu não fui atrevido o suficiente para trocar as de Kelsey enquanto ela dormia.

— Não enjoa de preto? — Kelsey me perguntou, referindo-se às roupas que eu estava usando.

— Eu me sinto bem assim.

— Hum.

— Enquanto você se troca, vou verificar a área e tentar encontrar uma trilha para seguirmos. E não se preocupe. Não vou espiar.

— Acho bom.

Caminhei um pouco, procurando por uma trilha. Observei o quanto aquele lugar era incrível. Era diferente das matas e florestas que eu conhecia, parecia mais claro, menos opaco, o cheiro no ar era diferente, e o ar era definitivamente mais puro. Era como se aquele fosse um local imaculado, sem qualquer impureza ou sombra mínima de poluição.

Eu voltei algum tempo depois, o suficiente para que Kelsey estivesse pronta. Eu gritei avisando a ela da minha chegada. Sorri ao vê-la, pois além de trocar as roupas, Kelsey tinha se lavado e penteado os cabelos, e estava muito bonita e cheirando a rosas.

— Está rindo de quê?

— De você. Está com uma aparência muito melhor.

— Ah! O que eu não daria por um banho! Mas me sinto melhor.

— Encontrei um riacho que corre junto ao início do bosque com uma trilha. Acho que pode ser um bom lugar para começarmos. Vamos?

Começamos a seguir a trilha do rio, observando a beleza daquele lugar. Kelsey começou a me contar uma história mitológica sobre um homem que se apaixonou pelo próprio reflexo. Ficamos ambos distraídos por um tempo, até que começamos a reparar nos animais.

Havia vários tipos de animais selvagens: Aves, répteis, grandes e pequenos. Herbívoros e predadores, todos vivendo juntos e em harmonia. Kelsey ergueu a mão e um pássaro pousou nela. Fiz um mesmo para que um gavião pudesse descansar em meu braço.

— Estou me sentindo a Branca de Neve! É incrível! Que lugar é este?

— O paraíso. Está lembrada?

Nós seguimos caminhando e observando toda a sorte de animais convivendo pacificamente. Quando anoiteceu, nós montamos acampamento para descansarmos e continuarmos no dia seguinte.

— É como o Jardim do Éden! Jamais imaginei que um lugar assim existisse!— disse Kelsey.

— Ah, mas, se bem me lembro, havia uma serpente no jardim.

— Bem, se não havia uma aqui antes, agora há — Referindo-se à Fanindra.

— Não está cansado? Avançamos bastante hoje. Não quer dormir?

    Eu estava atiçando o fogo com uma varinha e parei para olhá-la rapidamente. Virei-me de volta para o fogo e respondi:

— Daqui a pouco.

— Ah, tudo bem. Guardarei um espaço para você.

— Kelsey, acho que seria prudente de minha parte dormir do outro lado da fogueira. Você ficará bastante aquecida aqui, sozinha.

— É verdade, mas há bastante espaço, e prometo não roncar.

Olhei para ela e ri irônico, já que ela parecia estar dizendo aquilo para me provocar, propositalmente.

— Não é isso. Sou homem o tempo inteiro agora e seria difícil para mim dormir com você sem... abraçá-la. Dormir ao seu lado como tigre, tudo bem, mas como homem é diferente.

— Ah, uma vez eu disse o mesmo para Ren. Você está certo. Deveria ter pensado nisso e não deixá-lo numa posição desconfortável.

Bufei ironicamente:

— Não estava preocupado em me sentir desconfortável, mas sim em me sentir um pouco confortável demais.

— Ah, tá. Então... é... quer ficar com o saco de dormir? Posso usar minha colcha.

— Não. Estou bem, bilauta.

Ficamos os dois em silêncio, e eu comecei a imaginar como seria me deitar com ela no saco de dormir, tendo seu corpo junto ao meu, aninhá-la em meus braços, colocar meu nariz em sua orelha para sentir seu cheiro. Meu corpo arrepiou-se em resposta a esse pensamento.

Afastei-me para o outro lado da fogueira e pedi para que ela me contasse outra história, a fim de afastar aquelas ideias.

— Era uma vez uma bela ninfa, chamada Clóris, que cuidava das flores e da primavera, ordenando aos brotos das árvores que florescessem. Seus longos cabelos louros cheiravam a rosas e estavam sempre enfeitados com uma grinalda de flores. Sua pele era macia como pétalas de rosas. Seus lábios rosados formavam o biquinho de uma peônia e suas faces se assemelhavam a orquídeas em flor. Embora fosse amada por todos que a conheciam, Clóris desejava um companheiro, um homem que pudesse apreciar sua paixão por flores e que desse à sua vida um sentido mais profundo.

— Continue.

— Uma tarde, ela cuidava dos copos-de-leite, sentiu uma brisa morna soprar seu cabelo. Um homem entrou no prado e deteve-se, admirando seu jardim. Ele era bonito, com cabelos escuros agitando-se ao vento e usava uma capa púrpura. A princípio, não a viu; ela o observou de um caramanchão coberto de folhas enquanto ele caminhava entre as flores. Os narcisos levantaram a cabeça à sua aproximação. Ele apanhou entre as mãos um botão de rosa para inalar sua fragrância e a flor abriu as pétalas e desabrochou em sua palma. Os lírios estremeceram ao seu toque e as tulipas curvaram seus longos caules em sua direção.

— Hum... E o que fez a mulher?

— Clóris ficou surpresa. Normalmente suas flores só reagiam a ela. As hastes de lavanda tentaram se enroscar nas pernas dele quando passou. Ela cruzou os braços e franziu a testa para elas. Os gladíolos todos se abriram ao mesmo tempo, em vez de se alternarem como seria esperado, e as ervilhas-de-cheiro dançavam para a frente e para trás, tentando atrair a atenção dele. Ela arquejou de leve ao ver o flox tentar desenterrar as próprias raízes. “Chega!”, disse ela. “Comportem-se!” O homem se virou e a viu oculta entre as folhas. “Pode sair”, chamou. “Não vou machucá-la.” Ela suspirou, empurrou as gardênias para o lado e saiu ao sol, os pés descalços pisando na relva. Uma brisa suave soprou pelo jardim quando o homem inspirou de leve. Clóris era mais linda que qualquer uma das flores que ele viera admirar. Ele se apaixonou imediatamente por ela e caiu de joelhos à sua frente. Ela implorou que ele se erguesse. O homem se pôs de pé e o vento morno levantou sua capa e envolveu os dois em suas ondas púrpuras. Clóris riu e ofereceu-lhe uma rosa prateada. Sorrindo, ele arrancou as pétalas, atirando-as no ar.

A voz de Kelsey estava baixa e suave e eu estava muito cansado, de forma que a história parecia quase cantada para mim. Eu comecei a relaxar e ficar sonolento. Eu tentava manter os olhos abertos, mas não consegui. Então parei de escutar, e comecei a sonhar...

No meu sonho, Kelsey estava em um campo cuidando das flores. O vento fazia os cabelos dela balançarem. Eu me aproximava lentamente até que ela virou-se e me viu, sorrindo para mim. Então ela caminhou até mim e me ofereceu uma flor. Eu a cheirei e sorri para ela. Em seguida, olhei em seus olhos e lhe disse: “Quero que seja minha esposa. Se você me quiser.”

Acordei de repente e não consegui mais dormir. Fiquei observando o dia amanhecer, e os animais acordarem. Alguns começaram a se aproximar de onde estávamos. O comportamento desses animais era surpreendente: nenhum medo ou agressividade, de nós ou uns dos outros.

Afastei-me um pouco e tirei as roupas de montanhismo, deixando-as entre as árvores. Depois me transformei em tigre e me aproximei dos animais. Nenhum deles pareceu temer o predador. Voltei a minha forma humana e fiquei observando um grupo de girafas que se aproximava calmamente. Então ouvi a voz assustada de Kelsey me chamar:

— Kishan, acorde!

— Já estou acordado e vigiando, Kells. Não tenha medo. Ela não vai machucá-la.

— É uma girafa!

— É. E há alguns gorilas se movimentando naquelas árvores.

Ela se virou para olhar.

— Vão nos atacar?

— Não estão reagindo como gorilas normais, mas só há um modo de saber. Fique aqui.

Voltei para perto das árvores e me transformei em tigre, para surpreender as girafas e os gorilas, que mesmo assim não se assustaram. Me transformei novamente e comentei:

— Muito interessante. Eles não estão com medo de mim.

— Você perdeu suas roupas de montanhismo. Está de volta ao preto — Ela falou desmontando o acampamento.

— Não perdi, não. Deixei-as entre as árvores. Já volto.

Depois do café da manhã, dirigimo-nos à estrutura que avistáramos na noite anterior. Ela era feita de madeira e parecia um barco. Eu entrei primeiro, para garantir que era seguro para Kelsey, que entrou após eu tê-la autorizado.

Kelsey acreditava que aquela estrutura era a Arca de Noé, ou o que restou dela. Ela pegou a câmera fotográfica e começou a tirar fotos para mostrar a Kadam.

— Kishan... tenho uma teoria. Acho que a Arca de Noé realmente aportou aqui e os animais que vimos são descendentes daqueles animais originais. Talvez seja por isso que eles tenham um comportamento diferente. O único lugar em que viveram foi aqui. — Kelsey disse enquanto saíamos da estrutura.

— Só porque um animal vive no paraíso não significa que ele não tenha instintos. Eles são muito poderosos. O instinto de proteger o território, de caçar o alimento e de... —Olhei nos olhos dela com firmeza — encontrar um companheiro pode ser irresistível...

— Certo— falou nervosa, desviando o olhar— Mas a comida é abundante aqui e tenho certeza de que existem muitos companheiros para todos.

Eu ergui a sobrancelha.

— Talvez. Mas como você sabe que é sempre assim? Talvez o inverno venha numa época diferente aqui.

— Pode ser, mas acho que não. Vi flores crescendo que florescem na primavera, mas também vi flores que florescem no outono. É estranho. É como se reunisse o melhor de tudo. Os animais são todos perfeitos e bem alimentados.

— Sim, mas não vimos nenhum predador ainda.

— É verdade. Vamos manter os olhos abertos.

Kelsey começou a anotar tudo o que observava e, de vez em quando fazia algum comentário. Estávamos muito impressionados com o lugar, porque ali tudo parecia perfeito. Não havia ervas daninhas, nem poluição. Animais dos mais variados ambiente, como elefantes, camelos e cangurus viviam ali, como em um grande zoológico.

Quase no fim da tarde, eu farejei um grupo de leões. Pedi para Kelsey subir em uma árvore enquanto eu me aproximava dos predadores. Me aproximei como tigre e como homem, mas os animais não se perturbaram. Também vi que havia um grupo de antílopes pastando próximo dos leões, que também pareciam pastar. Aproximei-me de uma leoa que comia algo vermelho, que pensei ser carne, mas para minha surpresa, tratava-se de uma maçã. Voltei para Kelsey e contei a ela impressionado, o que eu tinha visto. 

— Então minha teoria estava correta. Aqui é realmente como o Jardim do Éden. Os animais não caçam.

— Parece que você acertou. Ainda assim, gostaria de guardar certa distância entre nós e os leões antes de acamparmos.

Ao anoitecer, nós montamos acampamento e nos preparávamos para jantar, quando ouvimos o som de flautas. Nos imobilizamos apreensivos, pois ainda não tínhamos avistado outros humanos ali.

— O que fazemos? – perguntou Kelsey.

— Deixe-me ir ver.

— Acho que nós dois devíamos ir.

Comecei a ir em direção ao som e Kelsey me seguiu. Nós seguimos o som e pudemos ver, à certa distância, uma pessoa sentada em uma pedra, tocando a flauta.

Quando nos aproximamos mais, o homem, que parecia menor do que uma pessoa comum, parou de tocar e nos olhou com seus olhos verdes e cabelos prateados e sorriu. Sua pele era branca, quase arroxeada e ele estava descalço, mas usava uma calça que parecia feita de couro e uma camisa de manga comprida.Ele pendurou a flauta no pescoço e olhou para nós.

— Olá — Respondi cauteloso.

— Olá.

— Estava esperando sua chegada. Todos nós estávamos.

— Nós, quem? — perguntou Kelsey.

— Eu, os silvanos e as fadas.

Eu estava perplexo:

— Vocês estavam nos esperando?

— Ah, sim. Na verdade, há muito tempo. Devem estar cansados. Venham comigo e eu lhes darei algo para beber.

Eu fiquei onde estava, pois não estava certo de que poderíamos confiar naquela criatura. Mas Kelsey rapidamente foi até ele.

— Oi, meu nome é Kelsey.

— Muito prazer. O meu é Fauno.

— Fauno? Já ouvi esse nome antes.

— Ouviu?

— Sim! Você é Pã!

— Pã? Não. Eu sou Fauno. Pelo menos é o que minha família me diz. Venham.

Ele saiu em direção à floresta, enquanto eu o observava desconfiado. Kelsey segurou minha mão, puxando-me suavemente.

— Vamos. Confio nele.

— Eu não.

Ela apertou minha mão, sussurrando:

— Está tudo bem. Acho que você daria conta dele.

Eu estava tenso e segurei sua mão com força, deixando que ela me guiasse. Enquanto seguíamos através das árvores, comecei a ouvir sons estranhos, que iam ficando cada vez mais intensos. Eu não sabia se Kelsey também ouvia, mas ela não parecia estar assustada, mas curiosa. Ela começou a fazer perguntas ao homenzinho que nos guiava:

— Fauno... o que são silvanos?

— São o povo das árvores, as ninfas das árvores.

— Ninfas das árvores?

— Sim. De onde vocês vêm não existe povo das árvores?

— Não. Também não temos fadas.

Ele pareceu confuso.

— Que tipo de gente sai de uma árvore quando ela se parte?

— Até onde sei, nenhum. Na verdade, acho que nunca vi uma árvore se partir, a não ser quando um raio a atinge ou alguém a derruba.

Ele se deteve.

— Seu povo derruba árvores?

— Na minha terra? Sim.

Ele balançou a cabeça com tristeza.

— Fico muito feliz de viver aqui. Pobres árvores! Eu me pergunto o que será das futuras gerações.

Já havia anoitecido quando chegamos na aldeia. O lugar era impressionante desde a entrada. Um arco repleto de flores coloridas, arbustos e trepadeiras onde penduravam-se lanternas com luzes coloridas.

— Kishan! Olhe! Elas brilham como vaga-lumes!

Olhei e percebi que as luzes na verdade eram vivas. No início achei que fosse vaga-lumes, mas olhando melhor elas, pareciam grandes borboletas e a luz suave emanava de suas asas coloridas, que se abriam e fechavam enquanto as pequenas criaturas permaneciam sentadas num suporte de madeira.

— Elas são... — Kelsey começou a dizer.

— Lâmpadas? São. Elas têm turnos de duas horas como lanterna, à noite. Gostam de ler em serviço. Isso as mantém acordadas. Se dormirem, suas luzes se apagam.

— Certo. Claro

Chegamos à área central da aldeia, que parecia estar sendo preparado para um banquete. Fauno começou a tocar sua flauta, o que pareceu funcionar como um chamado, pois as pessoas começaram a sair de seus chalés e saltar de esconderijos em meio à folhagem.

— Venham! Venham conhecer quem estávamos esperando! Estes são Kelsey e Kishan. Vamos dar-lhes as boas-vindas.

As pessoas pareciam-se com fauno, com os mesmos olhos verdes e cabelo prateados. Todos pareciam felizes em nos ver. Fauno virou-se para Kelsey e perguntou:

— Gostariam de comer ou de tomar banho primeiro?

— Banho primeiro. Se não for problema.

Ele se curvou.

— Claro. Antrácia, Phiale e Deiopeia, por favor, levem Kelsey à lagoa de banho feminina.

As três Silvanas saíram dali, levando Kelsey com elas. Eu estava insatisfeito com a separação, ainda não confiava naquelas pessoas.

Eu também fui levado dali, contras a minha vontade. Os silvanos me levaram a uma lagoa, a masculina, onde eu me banhei. Em seguida me entregaram algumas roupas, que eu vesti sem prestar muita atenção. Algumas moças Silvanas se aproximaram de mim e começaram a pentear meus cabelos e esfregar loções em minha pele. Eu fiquei incomodado no começo, mas a sensação de frescor era muito relaxante.

Fui levado de volta à área central, onde fiquei esperando por Kelsey, que demorou a voltar. As Silvanas ficavam andando ao meu redor e eu estava completamente deslocado. Mas quando eu a vi, percebi que a espera valeu a pena.

Kelsey estava absolutamente linda. Sua pele clara parecia brilhar, os cabelos longos e cacheados estavam soltos e enfeitado com asas de borboletas e ela usava um vestido longo, bordado de flores e segurava um buquê de flores, como uma noiva. Parecia uma fada. Uma princesa.

Eu não a reconheci, a princípio, passando meu olhar direto por ela. Então ela sorriu. Eu ri alto, encantado por sua beleza, enquanto caminhava em sua direção.

— Do que você está rindo? —Perguntou aborrecida.

Eu segurei as mãos dela e olhei em seu rosto, sorrindo:

— De nada, Kelsey. Você é a criatura mais encantadora que já vi na vida.

— Ah. Obrigada. Mas por que você riu?

— Ri porque sou eu que tenho a sorte de vê-la assim, de estar com você neste paraíso, enquanto Ren foi perseguido por macacos e lutou contra árvores de agulhas. Obviamente, fiquei com a melhor busca.

— Sem dúvida. Pelo menos até agora. Mas proíbo você de provocá-lo com isso.

— Está brincando? Meu plano é tirar uma foto sua e contar tudo para ele nos mínimos detalhes. Aliás, fique bem aí.

Voltei com a câmera e comecei a fotografá-la

— Kishan.

— Ren iria querer uma foto. Pode acreditar. Agora, sorria e segure suas flores.

Depois de tirar algumas fotos, coloquei a câmera no meu bolso.

— Você está linda, Kelsey.

Ela sorriu melancólica e uma tristeza invadiu seu olhar. Eu a toquei no rosto, dizendo:

— A tristeza está de volta. Isso parte meu coração, Kells

Eu sabia o motivo daquela tristeza, mas não queria falar de Ren naquele momento. Queria estar com ela e fingir que ela era minha. Pelo menos por aquela noite. Eu me inclinei e beijei seu rosto.

— Você me daria a honra de me acompanhar no jantar, apsaras rajkumari?

Ela sorriu.

— Sim, se você me disser do que acabou de me chamar.

— Eu a chamei de “princesa”, “princesa das fadas” para ser exato.

— Ah, é? E você? Como se chamaria?

— Eu sou o belo príncipe consorte, naturalmente.

Eu passei o braço dela pelo meu e a conduzi até à mesa. Fauno sentou-se à nossa frente, acompanhado por outra silvana:

— Posso apresentar-lhes nossa soberana?

— Claro — eu disse.

— Kelsey e Kishan, esta é Dríope, rainha dos silvanos.

Ela assentiu delicadamente e sorriu. Em seguida anunciou:

— Está na hora do banquete! Aproveitem!

Uma quantidade enorme de comida nos foi servida. Travessas com biscoitos, pães de mel, tortas de limão, compotas de frutas, pequenas quiches e crepes de canela, e saladas. Também foram trazidos pratos com torta de ameixa, pãezinhos de mirtilo e bolinhos de abóbora com recheio de queijo cremoso, pães salgados com manteiga e geleias de frutas.

Comi bastante e achei tudo surpreendentemente delicioso. Mesmo sendo um predador, achei o banquete vegetariano dos silvanos algo muito prazeroso. No fim, eles ainda trouxeram um enorme bolo de morango, com calda e recheio de morangos e creme e coberto por chantili.

Depois de comermos, Kelsey perguntou a fauno sobre a arca que havíamos encontrado.

— Ah, está falando do barco? Sim, vimos o barco parar nas colinas e todos os tipos de criatura emergiram dele. Muitas delas deixaram nosso reino e entraram no seu mundo, inclusive as pessoas que estavam a bordo. Algumas das criaturas resolveram ficar. Outras tiveram gerações de descendentes e depois voltaram para nós. Concordamos em deixar que todos ficassem se agissem de acordo com a lei da nossa terra: a de que nenhum ser vivo pode machucar outro.

— Isso é... incrível!

— É mesmo maravilhoso que tantos animais tenham voltado para nós. Aqui eles encontram paz.

— Assim como nós. Fauno... estamos procurando a pedra ônfalo ou pedra do umbigo. Você já a viu?

Todos os silvanos sacudiram a cabeça e Fauno respondeu:

— Não, acho que não conheço essa pedra.

— E uma árvore gigante, com milhares de metros de altura?

Ele refletiu um pouco e depois sacudiu a cabeça.

— Não. Se essa árvore ou essa pedra existem, encontram-se fora do nosso reino.

— Quer dizer que estão no meu mundo?

— Não necessariamente. Há outras partes deste mundo que não controlamos. Enquanto andarem por nossas terras, sob nossas árvores, vocês estarão seguros, mas, uma vez fora do abrigo de suas copas, não poderemos mais protegê-los.

— Entendo.

Kelsey pareceu desapontada.

— No entanto, talvez encontrem sua resposta se dormirem no Bosque dos Sonhos. É um lugar especial para nós. Se temos uma pergunta difícil que precisa de resposta ou se necessitamos de orientação, dormimos lá, onde podemos descobrir a resposta ou sonhar com o futuro e perceber que a pergunta não era tão importante afinal.

— Poderíamos experimentar?

— Claro! Levaremos vocês.

Um grupo de silvanas agitadas começou a tagarelar na outra ponta da mesa.

— Que oportuno vocês terem vindo agora! Uma das árvores está se partindo! — explicou Fauno. — Venham ver, Kelsey e Kishan! Venham ver o nascimento de uma ninfa das árvores!

Segurei a mão de Kelsey e nós o seguimos. Fauno sussurrou:

— Estas árvores estavam aqui antes da chegada de Noé e de seu barco de animais. Elas deram à luz muitas gerações de silvanos. Cada chalé que vocês estão vendo encontra-se na frente de uma árvore de família. Isso significa que todos que vivem no chalé nasceram da árvore-mãe atrás dele. Está chegando a hora. Olhem. Reparem como as outras árvores lhe oferecem apoio.

Ficamos olhando para a árvore, que parecia se contorcer enquanto emitia um som de madeira se partindo. As ninfas das árvores pareciam concentradas numa grande saliência nodosa, próxima de um galho baixo. A árvore estremeceu quando o longo galho se agitou. Após momentos intensos escutando os profundos roncos da árvore e observando o tronco se expandir e contrair devagar, o galho de baixo se quebrou, separando-se do enorme tronco com um estalo terrível.

O silêncio caiu sobre os presentes. O galho ficara pendurado, tocando o solo perto de nós, preso apenas pela casca da árvore. Encaixada no espaço onde a base do galho se unia ao tronco estava uma pequena cabeça prateada.

Um grupo de silvanas se aproximou e começou a falar carinhosamente com o pequeno ser descansando na árvore. Com todo o cuidado, elas o levantaram e o envolveram numa manta. Um membro do grupo ergueu o pequeno bebê silvano no ar e anunciou:

— É um menino!

Elas desapareceram dentro do chalé enquanto todos comemoravam. Outro grupo de silvanos removeu cuidadosamente da árvore o galho trêmulo e espalhou uma pomada sobre a marca oval no tronco onde o galho estivera.

Os silvanos começaram a dançar em torno da árvore e fadinhas voaram até seu topo e iluminaram todos os galhos com suas asas. Quando a celebração terminou, já era tarde.

Depois da festa, Kelsey quis saber como nasciam as fadas, e fauno lhe explicou que as fadas nascem das rosas que quando envelhecem e caem, produzem sementes no solo. Quando estas semente brotam, uma fada nasce desse broto.

Fauno nos conduziu até o bosque dos sonhos onde uma cama de folhas pendurava-se como uma rede entre duas enormes árvores.

— As quatro árvores grandes que sustentam o caramanchão, marcam cada qual uma direção: norte, sul, leste e oeste. Os melhores sonhos acontecem quando a cabeça aponta para o oeste e você acorda com o sol no leste. Boa sorte para vocês e bons sonhos.

Fauno sorriu e foi embora.

Kelsey permaneceu em pé, constrangida, pois só havia uma cama.

— É... isso é um pouco embaraçoso.

Eu me curvei para Kelsey, tranquilizando-a:

— Não se preocupe, Kelsey. Vou dormir no chão.

— Mas... e se o sonho couber a você?

— Você acha que faz diferença eu estar ou não na cama?

— Não faço ideia, porém, em todo caso, acho melhor deitarmos juntos.

Eu fiquei tenso. Tinha medo do que eu poderia sentir deitando-me com ela. Mas eu sabia que ela estava certa.

— Tudo bem. Mas vamos dormir um de costas para o outro.

— Combinado.

Kelsey deitou-se primeiro, acomodando-se na cama que balançava suavemente de um lado para o outro. Eu olhei para ela, pensando em me deitar a seu lado e segurá-la em meus braços, encostando meu corpo ao dela e enterrando meu rosto em seus cabelos para sentir seu cheiro. Depois me lembrei de que não era isto o que aconteceria e fiquei frustrado. Reclamei baixinho:

— Então eu vou me deitar ao lado de uma princesa das fadas a qual eu não posso tocar. Como ela espera que eu durma desse jeito. Vai ser a pior noite da minha vida, mas eu não vou tocá-la. Espero que Ren me agradeça por isso!

Deitei-me a seu lado, de costas para ela. Um brisa suave soprou os seus cabelos, que começaram a balançar, roçando suavemente a pele do meu pescoço. O cheiro dela me deixou sem fôlego e minha mente começou a viajar enquanto meu corpo respondia àqueles estímulos. Então eu despertei do meu devaneio e fingi irritação:

— Mantenha o cabelo do seu lado, Kells. Faz cócegas.

Ela riu, puxando os cabelos de volta.

— Desculpe.

Eu reclamei baixinho que aquela situação era mais do que um homem podia resistir. E era mesmo, afinal, dormir ao lado da mulher que eu amava e desejava mais que tudo, sentindo o calor do corpo dela, seu cheiro, ouvindo sua respiração e não poder tocá-la, era uma tortura.

Demorou um pouco até eu dormir. Imediatamente comecei a sonhar. Havia uma árvore muito grande e a pedra estava lá no alto. Também consegui visualizar o caminho até esta árvore.

Depois, o sonho mudou. Kelsey estava deitada e gritava de dor. Eu corri até ela assustado e preocupado, e então ela estava sorrindo. Seus cabelos estavam bagunçados e seus olhos estava cheios de lágrimas. Havia um bebê em seus braços. Era um lindo bebê, e estava dormindo. Meu coração batia forte e eu estava muito emocionado. Kelsey continuava olhando para o bebê.

— Ele vai se chamar Anik Kishan. — e olhou na minha direção.

 Eu sorri de emoção e olhei para o rosto da criança, que começou a se contorcer e abriu os olhos. Então eu entendi que aquele era meu filho. Não tive dúvidas, aquela criança era minha. Kelsey era minha.

Aquele sempre foi o meu destino. Não sabia como ou quando iria acontecer, mas eu ficaria com Kelsey.    Senti meu corpo ser sacudido e ouvi a voz de Kelsey:

— Kishan! Kishan! Acorde!

Eu a puxei para mim, como se ainda estivesse no meu sonho.

— Shh, volte a dormir. Ainda não amanheceu.

— Já é de manhã, sim. Hora de acordar. Vamos!

— Está bem, querida, mas que tal um beijo antes? Um homem precisa de motivação para sair da cama.

— Esse tipo de motivação mantém um homem na cama. Não vou beijar você. Agora, levante-se.

De repente eu despertei, levantando-me sobressaltado:

— Kelsey?

— Sim, Kelsey. Com quem andou sonhando? Durga?

Fiquei sem graça e não quis contar o sonho a ela.

— Isso não é da sua conta. Mas, para sua informação, sonhei com a pedra ônfala.

— Sonhou? E onde ela está?

— Não sei descrever. Vou ter que mostrar a você.

— Tudo bem.

Ela se levantou e ajeitou o vestido.

Eu fiquei olhando para ela e me lembrando do sonho. Eu me sentia feliz por aquela visão e por saber que Kelsey seria minha um dia, que a felicidade prometida por ela a mim seria realmente alcançada

— Você está mais bonita agora do que na noite passada.

— Ah, com certeza — Falou irônica — Eu me pergunto por que você sonhou com a pedra ônfalo e eu não.

— Talvez porque você tenha ido para a cama ontem com perguntas diferentes na cabeça.

Ela se calou enquanto arrumava as coisas para deixarmos o local. Fiquei observando, imaginei que ela sonhara com Ren. Mas então me perguntei o porquê de ela não querer falar sobre o sonho. Pensei que ela talvez tivesse sonhado comigo.

— E com que você sonhou, Kells?

— Também não é da sua conta.

Então franzi a testa e resolvi deixar aquilo pra lá. Ela provavelmente sonhara com meu irmão.

— Esqueça. Acho que posso imaginar sozinho.

 


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