O resgate do tigre escrita por Anaruaa


Capítulo 20
O portão dos espíritos




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Começamos nossa caminhada que duraria vários dias. Eu permanecia como tigre, para me manter aquecido. Nos alimentávamos bem, com refeições fornecidas pelo fruto. Na hora de dormir, Kelsey montava a barraca e eu dormia com ela, para ajudá-la a se aquecer. Ela ainda sentia falta de Ren, eu não tinha dúvidas, mas era bom saber que eu podia substituí-lo, ao menos como o tigre de Kelsey.

Nossa rotina era bem estabelecida: eu na forma de tigre, abria caminho na trilha para Kelsey. Ela, por sua vez, era a responsável por preparar as refeições e acender a fogueira. O trajeto era difícil, mas Kelsey estava bem preparada fisicamente. Ainda assim, a medida em que subíamos, ela sentia mais dificuldades, por causa do ar rarefeito. Assim, parávamos mais vezes para descansar e beber água.

No sétimo dia do nosso trajeto, eu me afastei para procurar madeira e um bom lugar para acamparmos, como eu sempre fazia. Eu nunca deixava Kelsey sozinha por muito tempo, e nesse dia não foi diferente. Após encontrar um lugar, eu voltava em sua direção, quando senti um cheiro no ar. Era o cheiro de um predador e ele estava próximo de Kelsey.

Imediatamente me pus a correr, com a esperança de alcançá-la antes dele. Então eu a ouvi gritar. Fiquei desesperado e consegui correr mais rápido. Avistei o urso sobre Kelsey, que estava deitada na neve, ferida.

Rugi furioso, chamando a atenção do animal. O urso bramiu de volta, virando-se para mim, ameaçadoramente. A fera atingiu a perna de Kelsey com a pata. Eu senti o cheiro do sangue dela e a ouvi gritar de dor, o que me deixou ainda mais furioso.

Rodeei o urso e então o ataquei, mordendo-lhe a pata traseira. Ele revidou enfiando as garras em meu dorso. Nós dois nos atacamos furiosamente, ficando ambos muito feridos e cansados. Eu me afastei um pouco e fiquei andando em círculos ao seu redor, tentando confundi-lo e cansá-lo. Eu estava cansado e o urso era muito forte, mas eu não iria desistir.

Algo atingiu o focinho do urso, fazendo-o se afastar num passo rápido, urrando de dor e frustração. Eram os raios de Kelsey. Imediatamente me transformei em homem e corri até ela, que tinha um ferimento feio na perna. Estava muito frio e eu precisei vestir as roupas de inverno antes de prosseguir. Depois amarrei um tecido na coxa e na panturrilha dela.

— Me desculpe se doer, mas preciso mover você. O cheiro do seu sangue pode atrair o urso de volta.

Eu a peguei no colo com delicadeza, mas ela gritou e se contorceu de dor, perdendo a consciência em seguida. Meu coração doeu-se de culpa e de piedade. Caminhei até o lugar do nosso acampamento e a coloquei deitada no saco de dormir. Depois, acendi a fogueira e comecei a examinar seus ferimentos. Eram um pouco profundos e poderiam infeccionar. Pedi ao fruto sagrado que produzisse algumas folhas que eu pudesse usar para limpar os ferimentos. Kelsey acordou quando eu usava a efusão em sua perna.

— Isso pinica! O que é?

— É um remédio à base de ervas para aliviar a dor, deter a infecção e ajudar seu sangue a coagular.

— Não cheira muito bem. O que tem nele?

— Canela, equinácea, alho, hidraste, milefólio e algumas outras coisas cujo nome eu não conheço em sua língua.

— Está doendo!

— Imagino que sim. Você precisa de pontos.

— Onde você... aprendeu a fazer isso?

— Lutei em muitas batalhas. Sei um pouco como cuidar de ferimentos como estes. A dor deve diminuir logo, Kells.

— Tratou de ferimentos antes?

— Sim.

— Pode... me contar como foi?— ela gemeu —— Vai me ajudar a me concentrar em outra coisa.

— Tudo bem.

Contei a história a ela enquanto cuidava de suas feridas.

— Parece um pouco melhor agora. Está latejando menos. E você? Seus ferimentos estão doendo?

— Já estou curado.

— Isso não é justo!

— Trocaria de lugar com você se pudesse, Kells.

Eu lhe entreguei um comprimido para a dor e um copo de água.

— Consegui parar o sangramento. Só um dos ferimentos me preocupa, por ser mais profundo. Descansaremos esta noite e começaremos a voltar amanhã. Terei que carregá-la, Kells. Acho que você não vai poder andar. Seus ferimentos podem abrir e voltar a sangrar.

— Mas, Kishan...

— Não se preocupe com isso agora. Descanse e veremos como se sentirá pela manhã.

Ela me agradeceu por cuidar dela. Eu disse a ela que gostaria de poder fazer mais.

Eu me sentia mal pelo que tinha acontecido e me perguntava se Ren teria cuidado melhor dela. Eu não podia deixar de pensar que ela estaria melhor com ele do que comigo, afinal, ela o amava.

Quando Kelsey conseguiu dormir, não teve um sono tranquilo. Ela gritava e se debatia. Fui até ela e a chamei, sacudindo seu corpo para acordá-la. Ela agarrou minha camisa e arranhou meu peito e pescoço, como que para se defender. Então ela acordou e me olhou surpresa:

— Kishan?

— Você estava sonhando de novo.

— Ah, Kishan, me desculpe. Está doendo muito?

— Tudo bem. Já estão cicatrizando.

— Não tive a intenção. Estava sonhando com Lokesh de novo. Eu... eu não quero voltar, Kishan. Quero seguir em frente, continuar a procurar o portão do espírito. Ren está sofrendo. Eu sei.

Ela começou a soluçar. Estava disposta a se sacrificar para ajudar Ren, mas eu não podia deixa-la prosseguir com a perna daquele jeito. Eu não lhe respondi, apenas mudei de posição para abraça-la.

— Shh, Kelsey. Vai ficar tudo bem.

— Isso você não sabe. Lokesh pode matá-lo antes de encontrarmos essa porcaria de portão do espírito.

Ela chorava enquanto eu massageava suas costas.

— Lembre-se de que Durga disse que cuidaria dele. Não se esqueça disso.

— Eu sei, mas...

— Sua segurança é mais importante do que a busca e Ren concordaria com isso.

Ela riu,

— Provavelmente sim, mas...

— Nada de “mas”. Precisamos voltar, Kells. Quando estiver curada, podemos tentar novamente. Temos um trato?

— Acho que sim.

— Ótimo. Ren tem sorte... de ser dono do coração de uma mulher como você, Kelsey.

Ela me olhou nos olhos e tocou meu pescoço, no local onde antes haviam arranhões. Pude sentir toda a ternura em seu toque e seu olhar.

— E eu tenho sorte de ter dois homens tão maravilhosos na minha vida.

Peguei a mão dela e beijei.

— Sabe que ele não ia querer que você sofresse por ele.

— Nem que eu encontrasse consolo em você.

Eu ri.

— Não mesmo.

— Mas você me consola. Obrigada por estar aqui.

— Não há outro lugar em que eu desejasse estar. Durma um pouco, bilauta.

Eu me deitei com ela e a puxei para o meu peito, sentindo o calor de seu corpo junto ao meu. Ela suspirou e não demorou a dormir, desta vez tranquilamente. Então me transformei em tigre e continuei a seu lado.

Na manhã seguinte, quando pude voltar a ser homem, continuamos a viagem. Nós descemos a montanha de volta, mas Kelsey não conseguia andar. Assim, eu precisava carregá-la durante todo o trajeto, o que nos fazia viajar apenas 6 horas por dia.

A maioria das feridas de Kelsey já estava cicatrizando, mas o mais profundo começava a supurar. Dois dias depois, ela começou a ter febre, o que me deixou desesperado, porque nós não tínhamos antibióticos. Nós precisávamos chegar logo à cidade, mas eu só conseguia viajar poucas horas por dia na forma de homem. Senti raiva pela maldição.

Uma tempestade nos atingiu, mas eu continuei caminhando o mais rápido que eu podia. Com febre e mais susceptível ao frio, Kelsey perdia e recobrava a consciência constantemente.

Eu acabei me perdendo na tempestade e fiquei desorientado, sem saber para onde estava indo. Kelsey não se alimentava direito e já estava muito fraca. Eu tentava não deixá-la dormir, contando-lhe histórias e fazendo perguntas a ela. Depois de alguns dias, ela mal conseguia falar.

— Prometo que vou tirá-la daqui, Kelsey. Não vou deixá-la morrer.

Kelsey desmaiou novamente e eu comecei a correr desesperado. Não sabia mais o que fazer para ajudá-la. A única maneira de salvá-la era chegar até Kadam o quanto antes.

Então eu avistei algo não muito longe dali. Parecia um portão. Aproximei-me rapidamente e vi. No meio de uma extensão nua e branca de neve encontravam-se duas estacas de madeira. Enroladas em cada uma delas, viam-se longas cordas de um material que tremulava na tempestade, como rabiolas de pipas. Uma fileira de bandeiras coloridas estava presa em diferentes seções das estacas. Algumas das cordas estavam atadas à estaca oposta. Outras se achavam presas a anéis fixados no solo ou apenas balançavam soltas no vento. Acordei Kelsey:

— Kells. Kells! Pensei que estivéssemos voltando, mas acho que encontramos o portão do espírito!

Ela abriu os olhos e olhou em direção ao portão.

— Tem certeza? — ela perguntou muito baixo.

Eu respondi gritando acima do vento:

— Pode ser um monumento ou memorial criado por nômades, mas há algo de diferente naquilo. Quero verificar.

Eu a coloquei no saco de dormir e a levei até o portão. Ela adormeceu novamente.Eu a coloquei no chão e fui verificar se aquele era o portão dos espíritos. Em seguida, eu voltei a acordá-la:

— É aqui mesmo, Kelsey. Encontrei uma marca de mão. A questão é: devemos atravessá-lo ou voltar? Acho que devemos voltar e retornar depois.

Ela tocou levemente meu peito para chamar minha atenção e sussurrou fracamente:

— Não... Não conseguiremos... achá-lo... de novo... muito difícil. O Mestre do Oceano disse que... provássemos nossa... fé. É... uma prova. Temos... que... ten... tentar.

— Mas, Kells...

— Leve-me... à... marca de mão.

Eu não estava certo sobre isso. Estava com medo de perder Kelsey. Ela percebeu minha indecisão e apertou minha mão nas delas, dizendo para eu ter fé.

Eu a ergui e a levei até à marca da mão, colocando-a de pé, mas sustentando seu corpo enfraquecido. Retirei a luva dela e guiei a sua mão até a marca no portão. Ela deixou a mão ali por algum tempo e parecia se esforçar para que algo acontecesse. Quase chorando ela me disse:

— Kishan.. n...não... consigo. Estou com... muito... fr... frio.

Eu tirei as luvas, abri meu casaco e rasguei a blusa, colocando a mão gelada de Kelsey em meu peito quente. Encostei meu rosto no dela e massageei suas costas frias com minhas mãos, enquanto sussurrava cânticos em hindi. Quando senti que ela estava aquecida, me afastei, pedindo a ela que tentasse outra vez. Ela voltou a mão para a marca com a minha ajuda e fechou os olhos.

Depois de alguns segundos, a marca começou a brilhar, assim como as estacas, que começaram a balançar. Um filtro verde cobriu minha visão. O chão tremeu e fomos envolvidos numa bolha de calor. Enfraquecida, Kelsey caiu em meus braços.

Uma pequena bolha de estática se formou entre as duas estacas e começou a crescer. As cores mudavam dentro da bolha, inicialmente muito borradas para que fosse possível distingui-las, mas foram crescendo e começaram e entrar em foco. Ouvi um estouro e a imagem tornou-se nítida.

Vi a grama verde e um sol amarelo e quente. Rebanhos de animais pastavam preguiçosamente em meio a árvores frondosas. De onde estávamos, eu inalava o perfume de flores e sentia o sol em meu rosto, embora o granizo gelado ainda caísse sobre mim.

Eu passei pelo portão com Kelsey no colo, maravilhado com o que acabara de acontecer. Eu ia dizer à ela como aquele lugar era incrível, quando ela desmaiou.


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