O resgate do tigre escrita por Anaruaa


Capítulo 19
O mestre do Oceano




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Kelsey parecia nervosa com a presença do monge. Ela o observava enquanto comíamos, mas não disse nada. Foi o mestre do Oceano quem começou a falar:

— Sabem, minhas lembranças prediletas de minha mãe são de vê-la enrolando os fios para tecer, de ajudá-la a cuidar das ovelhas e a mexer o mingau do café da manhã. Sempre me lembro dela quando faço essa refeição.

Kelsey então perguntou pela infância do monge, que respondeu pacientemente suas perguntas até que Kadam interveio.

— Como o senhor sabe, viemos em busca da sabedoria do Mestre do Oceano. Temos uma tarefa a executar e pedimos sua orientação.

O monge arregaçou as mangas de sua túnica e se levantou.

— Então, venham. Vamos para um lugar que nos ofereça mais privacidade.

Ele ficou de pé cautelosamente com o apoio de dois monges que se posicionaram para caminhar ao seu lado, mas o Mestre do Oceano, embora a passos lentos, caminhou sem ajuda.

— O senhor disse que formou dois Dalai-Lamas, então isso significa que deve ter...

—Tenho 115.

— O quê?

— Tenho 115 anos e me orgulho muito disso.

— Nunca conheci alguém que tivesse vivido tanto!

Eu sorri e Kadam piscou para Kelsey, que nos olhou sem graça.

— Se um homem deseja fazer algo e possui paixão suficiente para encontrar um meio de fazê-lo, ele consegue. Desejei viver uma vida longa.

O Sr. Kadam olhou pensativamente para o monge e disse:

— Também sou mais velho do que aparento. Sinto-me humilde diante do senhor.

O Mestre do Oceano virou-se e segurou com força a mão de Kadam. Seus olhos brilharam com alegria.

— Estar nos mosteiros entre os monges tem esse efeito. Mantém-me humilde também.

Os dois riram. Então seguimos o monge por corredores cinzentos e sinuosos até um salão

— Obrigado por concordar em nos receber.

O monge sorriu.

— Não perderia isso por nada neste mundo. — Ele chegou para a frente, com ar conspiratório. — Devo admitir que sempre tive curiosidade em saber se a busca do tigre aconteceria nesta existência. Pensando bem, nasci próximo à cidade de Taktser, que significa “tigre que ruge”. Talvez estivesse em meu destino encontrar aqueles que devem fazer a jornada nessa busca.

Kadam perguntou, empolgado:

— Sabe sobre nossa busca?

— Sei. Desde antes da época do primeiro Dalai-Lama, a história dos dois tigres vem sendo transmitida como uma tradição, em segredo. O estranho medalhão é a chave. Quando este jovem disse ter visto dois tigres, um negro e um branco, soubemos que provavelmente vocês eram as pessoas certas. Outros viram gatos e muitas vezes identificaram o tigre branco, mas ninguém identificou o gato negro como tigre e certamente ninguém falou da linha central como ligada à divina tecelã. Foi como soubemos que eram vocês.

— Então o senhor pode nos ajudar?

— Sim, certamente, mas, primeiro, tenho um pedido a fazer.

O Sr. Kadam sorriu, mostrando-se à disposição.

— Claro, O que podemos fazer pelo senhor?

— Podem me contar sobre os tigres? Conheço o lugar que procuram e sei como aconselhá-los, mas... os tigres nunca foram explicados e o papel deles na busca foi mantido sob o mais profundo sigilo. O que sabem sobre isso?

Kelsey e Kadam me olharam de forma interrogativa. Eu levantei a sobrancelha, incomodado por ter que me exibir como um animal de circo, mas logo concordei com o olhar.

Kadam perguntou ao monge se aquela sala era segura e ele garantiu que sim. Eu me levantei e metamorfoseei-me. Olhei para o monge, que parecia estar tão calmo quanto surpreso e me sentei.

Kelsey ergueu a mão para acariciar minhas orelhas. Ela tinha uma atração por tigres, e por vezes era muito mais carinhosa com ele do que com o homem.

— Obrigado por me confiarem esse presente impressionante!

Eu me transformei novamente e sentei-me na cadeira.

— Eu não chamaria isso de presente.

— Não? E do que chamaria?

— De tragédia.

— Existe um ditado no Tibete que diz: “A tragédia deve ser utilizada como fonte de força” — O monge levou um dedo à têmpora. — Em vez de se perguntar por que isso aconteceu, talvez você devesse pensar por que isso aconteceu com você. Lembre-se de que não conseguir o que se quer às vezes é um maravilhoso golpe de sorte.

Contamos para o mestre sobre a captura de Ren e o papel de Kelsey na nossa busca.

— Muito bem! Maravilhoso! Agora deixe-me ajudá-los no que eu puder.

Ele ficou de pé, tirou o medalhão dos tigres do pescoço, onde havia estado oculto pelas vestes volumosas, e o inseriu numa abertura em sua estante. Um armário estreito se abriu e dali ele retirou um rolo de pergaminho antigo, preservado num vidro, e um frasco com uma substância verde e oleosa. Ele fez sinal para que nos aproximássemos. Quando rodeamos a mesa, o monge cuidadosamente virou o vidro contendo o pergaminho para mostrar o que havia dentro.

— Este pergaminho existe há séculos e lista os sinais associados ao medalhão dos tigres e aqueles que vêm reclamá-lo. Digam-me, o que sabem sobre sua busca?

Kadam mostrou-lhe a tradução da profecia.

— Ah, sim. O início deste pergaminho contém a mesma coisa, com apenas algumas diferenças. Sua profecia diz que devo fazer três coisas por vocês e é o que farei. Devo desenrolar os pergaminhos da sabedoria, untar seus olhos e guiá-los ao portão do espírito. Este documento antigo que estão vendo é o pergaminho que, segundo se diz, contém a sabedoria do mundo.

Ele nos explicou que tratava-se de histórias e lendas, e que o pergaminho foi passado para cada Dalai-lama ou mestre do oceano durante séculos, mas nunca fora aberto. Ele também nos orientou a não abrir o pergaminho até que tenhamos concluído o quinto sacrifício:

— Quinto sacrifício? Mas, Sr. Kadam, nem sabemos ainda o que será. — disse Kelsey — Tudo o que sabemos até agora é que são quatro sacrifícios e quatro presentes. Só conheceremos o quinto muito mais tarde. Tem certeza de que seremos bem-sucedidos em nossa busca sem ler o pergaminho?

O monge deu de ombros.

— Não cabe a mim saber. Meu dever é colocar isto sob seus cuidados e cumprir minhas duas outras obrigações. Venha, sente-se aqui, jovem, e deixe-me untar seus olhos.

— Diga-me, Sr. Kadam, em seus estudos já deparou com um povo chamado chewong?

Kadam se sentou.

— Confesso que não.

— Os chewong são da Malásia... um povo fascinante. Existe uma imensa pressão sobre eles agora para que se convertam ao islã e se incorporem à sociedade malaia. No entanto, muitos lutam por seus direitos, a fim de manter sua língua e sua cultura. São um povo pacífico, não violento. Na verdade, eles nem têm palavras para designar guerra, corrupção, conflito ou punição em sua língua. Eles possuem muitas crenças interessantes. Um princípio digno de nota diz respeito à propriedade comum. Eles acreditam ser perigoso e errado comer sozinho, por isso, sempre compartilham suas refeições. Mas a crença que se aplica a vocês diz respeito aos olhos. Dizem que seus xamãs ou líderes religiosos têm olhos frios, ao passo que a pessoa comum tem olhos quentes. Uma pessoa com olhos frios pode enxergar mundos diferentes e discernir coisas que estariam ocultas da visão comum.

Depois de responder às várias perguntas de Kadam, o mestre nos disse que untaria nossos olhos e nos diria palavras de sabedoria. Kelsey foi primeiro. Enquanto esfregava o liquido sobre suas pálpebras, o mestre lhe disse:

— Meu conselho para você, minha jovem, é que o verdadeiro propósito da vida é ser feliz. Em minha limitada experiência, descobri que, quando nos importamos com os outros, nosso sentimento de bem-estar é maior. Nossa mente fica em paz. Isso ajuda a eliminar qualquer medo ou insegurança que possamos ter e nos dá força para enfrentar os obstáculos que venhamos a encontrar. Além disso, quando precisar de orientação, medite. Muitas vezes encontro respostas através da meditação. Por último, lembre-se de que o antigo ditado “o amor tudo vence” é real. Quando damos amor, ele volta multiplicado.

Eu fui em seguida, e fiquei ouvindo enquanto o monge me dizia:

— Agora você, tigre negro. Seu corpo é jovem, mas sua alma é velha. Lembre-se: por mais dificuldades que você tenha que enfrentar e por mais dolorosas que sejam suas experiências, jamais perca a esperança. Perder a fé é a única coisa capaz de destruí-lo. Os lamas dizem: “Vencer a si próprio e às suas fraquezas é um triunfo maior do que derrotar milhares numa batalha.” — Sua responsabilidade é ajudar a guiar sua família na direção certa. Isso inclui tanto a família imediata quanto a família global. Boas intenções não bastam para criar um resultado positivo; é preciso agir. Quando você participar e se envolver ativamente, as respostas às suas perguntas surgirão. Por último, assim como um grande rochedo não se perturba com os golpes do vento, a mente do homem ponderado é firme. Ele existe como um pilar, um apoio inabalável. Outros podem se agarrar a ele, pois não vacilará.

Não compreendi muito bem, mas procurei guardar aquelas palavras.

Quando terminamos, eu me sentei ao lado de Kelsey e o mestre estendeu a mão para Kadam:

— Meu amigo. Sinto que seus olhos já foram abertos e que você já viu mais do que posso imaginar. Deixo este pergaminho em suas mãos e peço que venha me visitar de tempos em tempos. Gostaria de saber como essa jornada termina.

Kadam curvou-se com respeito.

— Ficaria extremamente honrado, mestre.

— Muito bem. Agora, resta-me apenas uma tarefa, que é guiá-los ao portão do espírito — ele explicou. — Os portões do espírito marcam a fronteira entre o mundo físico e o espiritual. Quando os transpomos, livramo-nos de matérias terrenas pesadas e nos concentramos nos aspectos espirituais. Não toquem o portão até estarem prontos para entrar, pois isso é proibido. Os portões conhecidos estão na China e no Japão, mas há um no Tibete que foi mantido em segredo. Vou mostrá-lo a vocês no mapa.

Ele chamou um monge e pediu-lhe que trouxesse um mapa do Tibete.

— O portão que vocês procuram é simples e humilde. Vocês devem chegar até lá a pé e levar apenas provisões básicas, pois, para encontrar o portão, precisam provar que caminham por fé. Ele é marcado com as humildes bandeiras de oração dos nômades. A viagem não será fácil e apenas vocês dois poderão ter acesso a ele. Seu mentor deverá ficar.

Olhei para Kelsey, que estava com o olhar perdido. Segurei sua mão e falei com ela:

— Kelsey, você está bem?

— Estou. Só um pouco assustada com a viagem.

— Eu também. Mas lembre-se de que ele disse que é preciso ter fé.

— Você tem fé?

— Sim, acho que tenho. Pelo menos, mais do que tinha antes. E você?

— Tenho esperança. Isso é bom o bastante?

— Deve ser.

Nos preparamos para a viagem e partimos em seguida. Fomos de carro até o sopé da montanha. Lá, Kadam caminhou conosco por algum tempo e depois nos abraçou brevemente. Disse que montaria acampamento ali e aguardaria ansioso nosso regresso.

— Tenha muito cuidado, Srta. Kelsey. A viagem sem dúvida será difícil. Guardei todas as minhas anotações em sua mochila. Espero ter me lembrado de tudo.

— Tenho certeza de que se lembrou. Ficaremos bem. Não se preocupe. Com sorte, estaremos de volta antes que o senhor perceba. Talvez o tempo pare, como em Kishkindha. Cuide-se. E se, por algum motivo, não retornarmos, por favor, diga a Ren...

— Vocês vão voltar, Srta. Kelsey. Disso estou certo. É hora de partirem. Até breve.

Me transformei em tigre e começamos nossa jornada.


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