Dançando com o demônio escrita por Lyria Danis


Capítulo 5
Morra-me


Notas iniciais do capítulo

Esse negócio tomou proporções estranhas.



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Eu estava deitada de pernas esticadas no sofá, enrolada num lençol azul escuro; este era o meu favorito desde a morte dela. Rosângela dizia que este azul era idêntico ao do céu durante a noite, e por isso eu deveria sempre usá-lo.

Fazia cinco anos que eu não tocava nele, mas hoje eu não conseguiria. Hoje eu não tinha forças para me culpar, hoje eu não tinha forças para afastá-lo.

Eu apenas aceitei quando ele se aproximou de mim e sentou ao meu lado, sobre a cadeira que havia ao lado do sofá. Durante os dois dias que se seguiram sem eu conseguir mudar de posição, ele esteve lá. Sua companhia era silenciosa, estranhamente. De tal forma, que eu quase cheguei a apreciá-la.

Se eu ignorasse seu olhar sobre mim a todo o momento.

Em cada vez que eu me coçava, que eu dormia e acordava, que eu gemia de dor, ou que sangue escorresse da minha boca, ele me observava. Seus olhos eram um mar de gelo vermelho, que me fazia arrepiar de momentos em momentos.

De repente, o silêncio que eu fui grata em algum momento se tornou uma das piores torturas, quando eu comecei a gritar.

Meu corpo estava em chamas, tanto que eu quase poderia ver o fogo em minha pele, e meus sons de desespero e sofrimento não eram nada para ele, pois sequer piscava; ou, talvez, fossem tão interessantes, que ele não conseguia piscar.

Eu podia sentir que meu fim estava próximo; e naquele momento, o motivo de eu querer morrer era para acabar com toda a dor que ele causou. Foi quando pela incontável vez naquela noite, ao ouvir meus resmungos, ele simplesmente disse:

— Você quer parar de sentir dor?

Eu respondo que sim com desespero. Lágrimas escorriam pela minha face, que estava completamente pálida. Eu não conseguia enxergá-lo de onde estava, e nem conseguia me mover para fazê-lo, mas eu sabia que ele estava muito próximo de mim quando senti seu cheiro azedo. Seu cheiro odioso. Ele envergou sua cabeça sobre mim e então, focou seus olhos vermelhos nos meus. Eles brilhavam, e talvez, poderia equipará-los ao das estrelas de um céu a noite, igual ela gostava tanto.

— Que tal um acordo? Se você matar a pessoa que ver, eu faço tudo parar.

Sua voz soou indecente, inapropriada e convidativa. Era tão tentador, que eu sabia que ele poderia me convencer a fazer qualquer coisa que ele quisesse. Seus lábios ousados me feriram em um sorriso, e eu sabia que suas intenções eram qualquer uma que me fizesse doer.

— Helena, você está bem?

Escuto uma voz me fazendo a pergunta que eu nunca mais quis saber a resposta desde aquele dia. Eu olho para a dona deste inocente questionamento, e uma mulher com uma expressão de tristeza me olhava de volta. Seus cabelos eram encaracolados, sua pele era negra, seu olhar era gentil. Lembrava-me de Rosângela.

Então eu percebo que na verdade, aquela mulher era minha irmã.

Eu tento responder, mas o que sai é um esganiço deprimente. Toco minha garganta tentando fazê-la funcionar, mas não consigo; e ele se debruça mais sobre mim, com as pontas dos cabelos acariciando meu rosto.

— O que você me diz? Hum? — pergunta se aproximando mais, tocando de forma quase inexiste seu nariz no meu. — Você não quer que tudo fique bem? Eu juro a você que posso deixar tudo bem.

Finalmente eu o olho de volta, e o que vejo é o rosto de tudo o que é mal. Uma expressão tão completamente deformada de malícia, deturpação e imundices que, todo seu apelo não era mais pelo despudorado, mas do profundo terror.

— Helena! O que você está olhando?! Olhe para mim!

Eu pisco e a cabeça que está sobre a minha era a dela. Diana me olhava com tanto carinho, ao mesmo tempo tanto desespero, que me fazia desejar efusivamente por forças para falar.

Para viver.

 — Helena, o que você tem? Por que está tão suja?

— Helena, por que você não a mata?

— Helena, o que houve com você?

— Helena, faça o que você é de verdade!

A voz do demônio gritava em minha mente, mate-a, mate-a, mas quando eu a observava era apenas a filha de quem eu privei a mãe.

— Leninha! —Ela me chacoalha e grita, e a voz dele, por um momento, diminui de volume. Pisco languidamente algumas vezes, e o rosto que vejo é um descontruído pela aflição.

E então eu entendo que essa dor é por causa de mim.

Lágrimas escorriam dos olhos dela, tão transformados de comiseração. Como você conseguiu entrar aqui, eu gostaria de perguntar. Por que você se preocupa comigo, quando nem eu mesma faço?

O que você faz aqui?

Mas as perguntas nunca saem do meu peito, pois minha boca estava difícil de abrir. Um bolo me prendia a língua, e o torpor vindo do gosto acre que teimosamente morava em mim desde a vinda dele, me impedia de me concentrar em qualquer outra coisa.

Eu estava imersa na sujeira.

— Por que será que ela não te responde?

Ele me pergunta, e pela primeira vez, eu gostaria de não poder enxergar. Porque o que eu vejo sob meu corpo é uma mulher idêntica a mim, morta. Minhas mãos apertavam seu pescoço fino, e olhos dela não penetravam o meu, ocos em sua inércia.

Uma risada entoou no quarto; mas, estranhamente, não era um som masculino que saía. Olho para ele, quem estava ao meu lado, que tinha uma expressão quase amorosa. Quase...

— Você fez muito bem, doce Helena. — Ele se ajoelha ao meu lado e coloca uma mexa de meus cabelos atrás da minha orelha, para segurar a minha mão sobre a flauta de ossos, que estava encharcada de sangue. — Tudo está melhor agora, não é?

Eu não poderia fazer nada mais que virar minha cabeça para o lado e vomitar, com o líquido escuro expelido de mim se misturando no sangue da minha irmã gêmea.

Naquele dia, eu queria morrer.

Hoje, eu consegui.


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Notas finais do capítulo

O próximo capítulo é o último