Dançando com o demônio escrita por Lyria Danis


Capítulo 4
Seus sussurros asquerosos


Notas iniciais do capítulo

Título deste capítulo alterado em 25/04/2018.
Título do capítulo anterior alterado (25/04/2018)



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Hoje eu vi três túmulos.

Hoje também foi o dia que consegui sair de casa desde o dia em que ele chegou.

Mas, não sozinha. Ele sempre estava lá.

Quando eu consegui entrar no elevador para sair do meu andar, eu encontrei a primeira pessoa em muitos dias. Lembro como a mulher me olhou com pena. Eu também lembro como ele falou coisas sujas sobre ela, sobre seu corpo, sobre sua mente.

Ao sair do elevador e caminhar para a rua, eu vi o porteiro, que me sorriu. Não foi verdadeiro; pois, minha expressão era de horror quando o demônio sussurrou ao meu ouvido mais coisas que, em outros momentos, poderiam me fazer chorar.

Quando eu esperei o ônibus no ponto e o frio machucar minha pele ferida, ele cantarolava algo feliz. Hoje também foi o primeiro dia que o vi parecer satisfeito com alguma coisa, mas eu sabia que só a minha dor poderia causá-lo qualquer sentimento.

Aquele som era agonizante. Era um barulho agudo e efusivo, ao mesmo tempo, compassado e constante. O tom era de alegria e, talvez, se fosse qualquer pessoa cantando, eu poderia me divertir ao ouvir. Mas, a cada nota musical que ele fazia com seus lábios, mais eu sentia meu sangue gelar; a cada vez que ele me olhava e sorria, o vômito vinha em minha garganta. A cada novo arranjo que ele fazia com aqueles lábios maldosos, eu me sentia afundar.

Ele foi cantarolando, entre assobios e murmúrios, todo o percurso de uma hora de ônibus até eu chegar ao meu destino.

Eu tapava meus ouvidos, me mexia na cadeira; eu gemia e cobria meu rosto com a mochila, mas não adiantava. O som não parecia vir dele, mas sim de mim; tanto, que por um momento, pensei que fosse eu a cantar.

Naquele momento eu não poderia dizer.

Em algum momento em fechava meus olhos, e o barulho tirava completamente minha consciência; e quando eu finalmente levantei a cabeça, eu estava próxima ao meu destino.

Com ele ao meu lado.

Ninguém o percebeu naquela viagem. Também, ninguém me percebeu.

Neste lugar eu sou um objeto. Mas, não um item decorativo, que por vezes pode chamar a atenção de alguém que passava, e sim algo tão pequeno, que passava despercebido por qualquer pessoa. Talvez, algo como uma lixeira; que ocasionalmente recebia embalagens vazias, eu também ocasionalmente trombava com alguém.

Ou talvez, eu fosse como uma parede. As pessoas precisavam passar por perto de mim para chegar a qualquer lugar, e, portanto, por vezes, poderiam me notar — outras tantas vezes observar algum detalhe meu.  

Mas, se fosse para parecer com algo, hoje eu queria parecer com algo morto. Que não respirasse, ou andasse... Ou sentisse dor.

Mas não há problema, pois hoje, quem estou para ver nunca me notaria nesta vida.

Meu caminho foi focado e direto, mesmo que doesse. Minhas pernas tremiam, e eu sentia meu estômago retumbar, mas eu continuei a ir. Minhas feridas coçavam e doíam ao entrar em contato com a roupa grossa que eu vestia. O frio daquela tarde era forte, apesar de não estar chovendo. Hoje foi o primeiro dia que não choveu desde que ele chegou.

— Você não sabia, Helena? — Meu nome pronunciado por ele parecia algo completamente imoral, que me fez lembrar dos momentos em que ele lambia meu corpo. Os momentos em que ele sugou as secreções das minhas feridas.

Os momentos em que ele sugou minha vitalidade.

Eu nunca senti tanto nojo de mim mesma.

— Você sabe meu nome.

— Claro que eu sei.

— O que você é?

Ao perguntar isso, seus olhos brilhavam com alguma perspicácia que eu não poderia entender. — Por que você quer saber?

— Eu gostaria de saber quem é o monstro que está me destruindo.

Contudo, naquele momento, ele não sorriu. O vermelho brilhou pulsante, mas apesar de carmesim, o que vinha dele não era quente.

Era frio. Era escuro. E aquilo leu a minha alma de tal forma, que se havia restado alguma coisa dela em mim, a partir deste momento não havia mais.

— O nome do que está te matando é Helena.

Meu nome em seus lábios é diferente. Sua pronúncia é grossa, agressiva — como se meu nome fosse um insulto. Diferente de antes, que tinha um apreço satírico em seu tom, desta vez eu era completamente desprezível.

Mas eu não o contradigo. — Não é apenas você que me acha monstruosa.

O primeiro foi túmulo que vi foi o dela. Rosângela descansava, obrigada por mim; e eu espero do fundo do meu coração que esteja em paz. Mas minha esperança foi destruída por ele, que naquele momento, aproximou-se e sussurrou coisas em meu ouvido.

Coisas que me fizeram desesperar.

— Você realmente acha que ela te perdoou, Helena?

— Você acha que ela ainda te ama?

— Você acha que ela quer que a filha que a assassinou venha visitar seu túmulo?

O segundo túmulo foi o dele.

Não deixei flores, porque eu não merecia. Não cheguei muito perto, pois ele não me merecia. Eu apenas observei os dizeres da placa no chão, mas, eu não lembrava nada sobre ele, a não ser de sua morte. Minhas memórias haviam sido roubadas pelo monstro e, naquele momento, apenas vinha em minha mente seu sangue. Seu rosto branco e sem vida. Seus olhos arregalados pelo choque da morte.

Seus olhos virados para mim, e gritando de forma silenciosa que eu era a culpada.

Andei pelo gramado verde que cujo seus túmulos jaziam, apreciando as flores que haviam ali, crescidas no chão fermentado por corpos humanos podres. Era uma grande colina que eu havia escolhido para eles, meu amado e minha mãe, descansarem pelo resto da eternidade; eu sei que isso nunca compensaria. Nem minha morte compensaria.

Mas, hoje, eu havia feito o imperdoável.

Eu havia contaminado o lugar de descanso deles comigo mesma. Havia contaminado com ele. E, por causa disso — ou talvez, eu fiz para isso — finalmente reuni a coragem que eu precisava.

Eu não necessitava de um demônio para me punir.

Olhei bem para o além: os céus da colina eram belos, e o rio que percorria sua base, ribanceira abaixo, convidava-me a mergulhar. O que poderia me esperar nas águas? Quando minha carne apodrecesse e servisse de alimento aos peixes, eu poderia não esperar mais nada.

Fecho meus olhos e só então passo a enxergar meu túmulo.

Sinto a brisa fria refrescar minha pele, e por um momento, minhas feridas não doíam. O sangue que escorria de minha boca não fedia. Meus cabelos, que caíam aos tufos toda manhã, finalmente voltaram a ser belos.

A paz da morte chega a mim, mas eu não consigo alcançá-la.

Eu deveria saber.

O que me abraçava era o demônio. Ele me serpenteava como uma corda, e sua pele grudava na minha como cola. Seus olhos estavam nos meus, e a forma que ele me observava me fazia ficar, mesmo querendo fugir.

Em algum momento, eu apenas fiquei, por querer ficar.

— Por favor... Deixe-me morrer...

Lágrimas caíam sobre minha bochecha, mas isso não o cativou. Com o mesmo sorriso diabólico, ele se aproximou e percorreu com sua língua áspera como uma lixa, o caminho de minhas lágrimas, fazendo-me sangrar e gemer de dor.

— Por favor, por favor...

Ele me aperta mais em seus braços, e eu sinto que ele estava excitado com meu desespero. A cada vez que eu implorava, mais ele regozijava; a cada vez que eu soluçava, mais gostava.

— Eu acho que você não entendeu, Helena... — Ele sussurra ao meu ouvido, e seu hálito fétido me faz arrepiar em completo asco. — Isso é uma dança. E só eu vou dizer quando vai acabar.


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Notas finais do capítulo

Está perto do fim (de Helena).