Kiku to Higanbana escrita por Tsuchimikado


Capítulo 8
Besta irreverente


Notas iniciais do capítulo

Olá, como estão?
Esse é o último capítulo que pude escrever nas férias, então não sei quando conseguirei voltar a publicar essa história. Espero que não demore, tenho alguns planos para ela até o final do ano...

De qualquer forma, alguns avisos:
— Estou mudando o termo "Boxe" que usei no estilo que Ikari usa para "Sanshou", um dos nomes do boxe chinês e que significa "mãos livres", sendo o outro termo, "Sanda" ("luta livre"), o mais comum.
— Deixarei youkai, akuma e onmyouji com letra minúscula e sem plural.
(Ambas as alterações eu farei assim que possível nos capítulos anteriores).
— Estou pensando se devo mudar a escrita para as falas da Ene para melhor representar o dialeto de sua região (Fukuoka). Talvez não seja preciso, visto que um amigo que fala japonês me disse que muitos jovens não falam com dialeto.
— Evitarei repetir termos já vistos em capítulos anteriores no sumário!

No mais, espero que gostem do capítulo, aqui vai o sumário de termos!

— Lámen: Prato de macarrão típico no Japão.
— Senpai: O mesmo que veterano.
— Tomoe: É um símbolo comum no misticismo japonês. Se assemelha a uma vírgula e representa a forma de uma magatama.
— Zambatou: Conhecida como "espada de cortar cavalos", é um tipo de espada larga japonesa.
— Shikigamis: Familiares, seres invocados por onmyouji para que os auxiliem.
— Kouhai: O oposto de senpai, usado para descrever alguém que ingressou depois em algum ambiente estudantil ou de trabalho. Pode ser entendido como "calouro".
— Yamanba: "Velha da montanha", um youkai que representa uma bruxa que vive nas montanhas no folclore japonês.



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"Escute, Oga, a nossa alma pode se manifestar de cinco formas diferentes, os cinco elementos do wu xing, e cada um possui uma propriedade diferente: terra é alteração, metal é forma, água é fluxo, madeira é vida e por fim o nosso, fogo, é intensificação. Bem, não literalmente, tá mais pra uma forma geral de pensar, mas deu pra entender.", Ikari se lembrava durante a aula as palavras de que sua atual mestra, Makoto, lhe dissera no dia seguinte ao seu primeiro encontro, "O objetivo desse selo é treinar sua capacidade de intensificação em tempo integral, boa sorte!"

O sino tocou, todos se levantaram, se curvaram e foram liberados. Ikari caminhou, pesada e vagarosamente, até a porta da sala, assustando alguns de seus colegas.

"Olha só, ele está irritado!", "Vou me afastar, não quero me envolver", alguns pensavam enquanto olhavam para um rosto, de fato irritado. Isso de devia, entretanto, ao esforço para se manter de pé.

— Tchau Ikari, tenho missão hoje, vou na frente! - Disse Ene lhe ultrapassando enquanto saltitava de um pé para o outro. Ela virou para o rapaz e com um rosto confiante lhe mostrou o polegar - Boa sorte!

— Obrigado... - Ele respondeu, com muita inveja, à Ene. Não teve como não demonstrar um pouco de irritação.

Ene sorriu nervosamente e sentiu um suor frio escorrendo pela nuca.

— Então... É, tchau! - ela disse, retomando seu caminho.

Ikari suspirou enquanto as palavras de Makoto continuavam vindo.

"Você tem de fazer o Ki, sua energia, utilizar-se do Rei, a energia disponível ao seu redor. É como bombear água manualmente. Você tem de aprender a técnica correta para conseguir fazê-lo, o ritmo correto para manter e deve ter conhecimento do quanto precisa para não desperdiçar. Também tem todo aquele papo de aprender o que você pode e como deve fazer, mas vamos nos preocupar com isso depois. Bem, eu acho que a gente só aprende de verdade quando precisa usar!"

— Terra para Ikari... - veio uma voz ao seu lado, mas ele, ainda perdido em pensamentos, não se importou.

"Imagino se ela vai me mandar em alguma missão, mesmo estando treinando há apenas três dias...", ele se questionou até que sentiu uma mão tocar-lhe o ombro, algo que era consideravelmente incômodo em se considerando sua situação.

— Então, Ikari, meu amigo, meu parceiro... - Disse Shun com cautela ao se aproximar - Eu notei que você tá meio tenso nesses últimos dias...

Com o comentário de seu amigo Ikari finalmente voltara para si. Estavam ambos pelo pátio em frente ao colégio caminhando em um ritmo vagaroso.

— Nem precisa me dizer... - Ikari concordou lembrando-se de dois dias atrás, quando teve de, literalmente, voltar se arrastando para casa enquanto todo o colégio o observava. Só de pensar nisso sentiu vergonha.

— Então eu tava pensando... Quer dar uma passada no fliperama? Ou talvez sair pra comer alg... Quem diabos é esse daí?

Shun interrompeu sua fala após perceber uma figura bem ameaçadora esperando em frente ao portão. Seus cabelos loiros e ferozes olhos vermelhos já o destacavam na multidão, sendo bem complementadas pelo visual de motoqueiro, desta vez com uma camisa por baixo da jaqueta.

Kenji observava os estudantes com certo desinteresse até perceber Ikari. Logo depois ele soltou um sorriso convencido e fez um sinal para que o seguisse.

Ikari afirmou com a cabeça e começou a caminhar mais rápido, mas ainda rigidamente, em sua direção, até que foi parado por Shun com um puxão.

— Espera um pouco, Ikari... - seu olhar era de preocupação - Conhece esse cara aí?

— É, mais ou menos... - Ikari disse, desviando o olhar.

— Você não tá metido em nada ilegal, né? - o olhar de Shun ficou mais profundo.

— Não, relaxa...

Ken parecia impaciente quando fez mais um sinal para Ikari segui-lo. Shun, suando frio, o soltou e disse:

— Por favor, não morra...

— Relaxa, eu não vou. - Ikari lhe respondeu em um suspiro.

"Eu espero...", complementou em seu pensamento.

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A missão parecia simples o suficiente. Um akuma foi localizado Taiyin, floresta adentro a Nordeste de Quioto. Eles deveriam fazer contato e exorcizá-lo.

"Tranquilo, hehe...", Ikari pensou, levemente com medo.

Já em Taiyin, Kenji e Ikari caminhavam pelas ruas que aos poucos se tornavam familiares. Lotado de estabelecimentos, os serviços da região diferiam dos bares e bordéis próximos do equivalente o dojô. Ali Ikari observou desde uma loja de penhores até artesanato sendo exposto aos montes. Algumas barracas vendiam vegetais próximas a quiosques de lámen. Ikari se sentia, com certeza, mais a vontade ali.

— Então, eu preciso passar em um lugar antes de irmos. - Kenji disse - Se eu tive de esperar um cabelo-bagunçado que nem você, acho que não tem problema desviarmos um pouquinho nossa rota.

"Senpai, seu cabelo também é bagunçado...", Ikari manteve o comentário para si.

— Certo... - Ele concordou.

Estavam pelo distrito no qual se localizava o quinto ramo Leste, coincidentemente onde também podia se encontrar o colégio onde Ikari estudava e o dojô onde morava e treinava.

"Talvez sejamos apontados para os ramos com base onde moramos?", a ideia passou-lhe pela cabeça enquanto acompanhava Kenji meio distraído, "Nah, deve ter sido coincidência mesmo..."

Kenji andava pouco à frente, gesticulando cheio de si enquanto apontava pra uma ou outra loja. Ikari apenas concordava com sons simples, não demonstrando muito interesse pelo que realmente era dito.

— Quantos humanos... - Ikari percebeu e terminou por soltar em voz alta.

No instante seguinte Ikari foi golpeado de cima como se fosse uma criança. Kenji, quase uma cabeça maior que Ikari, o observava de punhos cerrados e expressão irritada.

— Não me ignore, cacete! Eu tava falando disso agora a pouco!

— Ah, foi mal... - Ikari soltou em um tom baixo, passando a mão onde havia sido atingido.

— Olha aqui, Novato Oga... - Kenji começou enquanto apoiava o braço direito pelo ombro esquerdo de Ikari, gesticulando com o outro - Tenha certeza de me seguir que eu te guio pelo caminho dos fodões!

"Se você diz...", Ikari pensou com um sorriso falso.

— Então... - Ele tentou dizer até ser interrompido.

— Então, você parece ter percebido né? Essa rua aqui também faz parte do distrito comercial, mas a maioria dos lojistas são humanos! - Ele soltou Ikari e tornou a andar - A maior parte dos humanos daqui são onmyouji. Os outros ou são afiliados a clãs e prestam serviços para os onmyouji ou são independentes.

Cuidadosamente Kenji apontou para as fachadas de loja que possuíam um emblema destacado, facilmente distinguíveis uns dos outros. Um deles parecia apenas quatro losangos unidos, enquanto outro se assemelhava à uma flor que Ikari não soube diferenciar. Um deles parecia um castelo com o sol raiando por trás enquanto outro parecia a união de três tomoes. Símbolos de clãs.

— E aqui estamos onde eu queria! - Kenji exclamou, mostrando uma loja bem grande na esquina, da qual ninguém ousava se aproximar. - Velho Ganjou, to aqui! Cadê minha espada?

— Keeeeeenjiiiii! - uma voz grossa e animada foi ouvida do fundo - Espera aí, to só terminando um serviço aqui!

— Não quero esperar! Eu também to saindo pra um serviço!

— Bwhahaha, então pode entrar e pegar seu pedido. Pode deixar o de sempre na minha mesa que eu jájá pego!

Ikari entendeu o porquê de ninguém se aproximar: O calor que emanava dali era insuportável. A loja possuía uma bancada ampla que dava para a rua, pela qual era possível observar toda a oficina de Ganjou. Nas paredes estavam presas peças de todo tipo, desde longas agulhas em suportes delicados até uma marreta cuja ponta mais parecia uma bigorna.

Observando a fachada se lia "Forja Ganjou!" e ao lado uma faixa dizia "As peças mais resistentes de Quioto!", sem evidente emblema de clã.

— Tá esperando aí por quê? - Kenji perguntou para Ikari.

— É, tá um pouco quente aí... - Ikari soltou, desviando o olhar.

— Deixa de ser fresco...

Kenji foi para a lateral e escancarou uma porta de madeira que dava para a oficina e entrou puxando Ikari. Encaminhou-se para o fundo puxou uma enorme espada cuja lâmina deveria ter pelo menos um metro e meio. Sua forma geral era como a de uma katana, porém era mais larga e espessa. Ele pegou em seu cabo, que devia ter pelo menos trinta centímetros, e usando-se do peso de seu corpo a levantou, prendendo-a com um suporte de couro nas costas.

Sem sequer parar para olhá-los, um senhor por volta de seus sessenta anos com o corpo bem trabalhado pela sua profissão, coberto apenas por uma calça simples, realizava batidas ritmadas em um pedaço de ferro quente. Um pouco pela lateral foi possível se observar seu espesso bigode sobre um sorriso enorme. Sua careca decorada com tufos de cabelo nas laterais também eram um ponto de destaque.

Ikari pensou que derreteria ali dentro.

"Essas roupas certamente não foram feitas pra esse clima...", reclamou para si mesmo, retirando a jaqueta de seu uniforme.

— Tá aqui ó! - ele jogou um bolo de dinheiro em cima de uma mesa e se dirigiu para a saída - Quarenta mil ienes.

— Bwhahaha, obrigado pelo patrocínio! - Ganjou exclamou, dessa vez se virando para encarar seu cliente.

— Patrocínio é o meu ovo! Aprenda a fazer umas lâminas descentes, velho seboso! Quarenta mil a cada dois meses, eu tenho mais com o que gastar minha grana!

— Minhas espadas são boas! - O velho disse sem perder o sorriso confiante - O que posso fazer se você enfrenta akumas poderosos?

— Faça espadas que não se quebrem que nem papelão! - Exclamou Kenji, saindo irritado da loja.

— Ah, obrigado pelo serviço! - Ikari agradeceu e virou-se para seguir seu companheiro.

— Disponha! E se precisar de algo, sabe onde me encontrar! - finalizou, retomando seu serviço.

"Viva a primavera...", Ikari pensou, já do lado de fora, aliviado apesar do suor que lhe cobria, tornando um olhar irritado para Kenji, "Qual foi a necessidade de me puxar pra lá?!"

Kenji estava de costas para Ikari e sorriu com confiança. Ele apontou com o polegar para a arma em suas costas conforme seu rosto irreverente se virava.

— Eu sei o que você está pensando, Novato Oga! Essa coisa é grande demais para ser chamada de espada, não é?

— Isso é uma zambatou, né? Eu nunca tinha visto uma antes... - Ikari comentou, observando com certo interesse.

Kenji suspirou e deixou seu corpo cair para a frente.

— Sim, é uma zambatou... - ele soltou baixinho enquanto retomava o caminho - Que sem graça...

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Demorou um pouco até que encontrassem seu caminho. Ikari seguiu Kenji por uma infinidade de esquinas e ruelas até finalmente sair em uma estrada de terra batida que dava para fora da cidade.

"Ainda bem que não deu pra suspeitar que eu tava perdido", Kenji pensou.

"Imagino se ele estava perdido...", Ikari pensou.

— Bem, segundo as instruções a saída era por aqui. - Ken disse enquanto observava um pergaminho no qual estava descrito a missão - Se seguirmos reto vamos encontrar um shikigami invocado por algum onmyouji que fez reconhecimento pela área à nossa espera, e de lá ele guia a gente. Parece fácil.

A última parte chamou a atenção de Ikari.

— Um shikigami? Como ele é?

— Sei lá... - Kenji parecia desinteressado - Varia de acordo com quem invocou, mas são fáceis de perceber na maioria das vezes...

O caminho simples, antes rodeado por casas de madeira, modestas e bem espaçadas entre si, gradualmente foi substituído por uma floresta de coníferas em menos de meia hora de caminhada. Uma brisa gentil produzia seu som por entre as copas das árvores, entre as quais ocasionalmente se observavam pequenos pássaros. No chão Ikari também pode observar uma ou outra lebre marrom, próximas aos troncos de árvore.

Kenji, sempre a frente, seguia em um ritmo que Ikari teve de se esforçar para acompanhar. Ele falava de assuntos nada associados com a missão, como uma garota que tinha encontrado no fim de semana anterior, ou um restaurante no qual havia almoçado, o que de certa forma amenizava a ansiedade do mais jovem.

"Pelo menos ele é mais amigável do que eu pensei...", disse a si mesmo.
Pararam abruptamente quando viram um cachorro, um Shiba Inu, observando-os no meio da estrada. Seu pelo amarelado brilhava enquanto os encarava com uma expressão amigável.

— Isso é... um shikigami? - Ikari perguntou.

O cachorro latiu em resposta.

— E aí, rapaz! - Kenji dirigiu-se amigavelmente ao cachorro - Mostra o caminho, to com pressa!

Ele latiu mais uma vez e entrou na mata com agilidade. Kenji correu logo em seguida, deixando Ikari para trás.

"Merda!", Ikari forçou seu corpo a seguir o ritmo deles.

Durante a corrida, Ikari percebeu que, realmente, não era um cachorro normal. Uma aura esverdeada, mística, brilhava ao seu redor. Na sua cintura estava presa uma faixa grossa de cor vermelha e suas patas estavam protegidas por pequenas tiras de pano. Nas suas costas brilhava o símbolo de uma casa, uma flor de cinco pétalas.

"A campânula do clã Abe...", lembrou-se. O símbolo do clã o qual Ikari agora era membro. Makoto havia mostrado esse símbolo em diversos cômodos do ramo onde fora alocado.

— Kumotora-senpai... - Ikari perguntou ao conseguir manter o ritmo - E agora?

— Ah, agora é só chegar lá e matar os Akuma! - Ele respondeu com um sorriso perigoso.

"Matar os Akuma", isso foi um termo se repetiu na mente de Ikari. Quando falava em exorcizá-los estava tudo bem, mas matar soava um pouco forte.

Ikari seguiu calado até atingirem uma clareira na qual se via uma simples e desgastada cabana. Possuindo shoji como portas e janelas, a estrutura parecia bem frágil, como se fosse cair a qualquer momento.

— É ali? - Kenji perguntou para o shikigami, que latiu positivamente em resposta. Ele virou-se para o cachorro e levantou o polegar em aprovação - Beleza, liberado!

O shikigami latiu mais uma vez e, com uma expressão amigável e o rabo abanando, se desfez em uma aura esverdeada.

Ikari estava agachado, com um joelho apoiado no chão para recuperar o fôlego. Ele olhou para a cabana e conseguiu sentir uma inexplicável sensação ruim, arrepiando seus pelos do braço.

"Akuma são youkai que perderam a racionalidade... Eles atacam indiscriminadamente Humanos e youkai...", ele repetiu para si mesmo, buscando reunir motivação.

Mas inevitavelmente pensou em Yuuki. Sua cicatriz queimou.

"Até que ponto eu não estaria agindo como ele? Está tudo bem em mata-los assim? O que realmente os torna diferentes dos youkai? Ninguém parece se importar muito...", continuou até olhar para o lado e se espantar com a visão de Kenji, extremamente irritado, encarando-o.

— Escuta aqui, Novato Oga... - Kenji falava pausadamente e com um sorriso sinistro - Não me ignore quando eu estiver falando com você...

— D-desculpe, Kumotora-senpai! - Ikari, ainda surpreendido, tropeçou com as palavras.

— Escuta aqui. Eu, senpai. Você, kouhai. Você vai aprender a não ignorar um senpai... - Era possível ver veias pulsando em seu rosto.

— Sim, desculpe mesmo, é só que eu estava preocupado... - Ikari não conseguiu terminar a frase, sendo levantado do chão por Kenji, que segurava por trás da gola de sua camisa. Uma aura amarelada o cercava, circulando como poeira, o elemento da terra.

"Espera, ele tá conseguindo me levantar fácil assim?", Ikari se surpreendeu, sequer tentando lutar contra.

— Você vai aprender na marra! - Kenji exclamou, arremessando-o na direção da cabana. Ikari voou em um arco enquanto gritava, passando exatamente pelo meio de um shoji.

— Uau, quantos pontos será que isso vale? - Kenji posava como um jogador de golfe, protegendo os olhos do sol. Ele exibia um sorriso de pura maldade com seus dentes afiados.

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— Mas que merda... - Ikari disse, limpando sua roupa enquanto, vagarosamente, se levantava. - Tudo bem que eu agi errado, mas isso é um pouc...

Ele não conseguiu terminar, sua nuca se arrepiou e prontamente o garoto se virou. Atrás de si se encontrava uma senhora que cozinhava algo em uma panela. Com seu kimono amarelo e cabelo preso em um coque, ela não passava de uma modesta mulher na casa dos seus setenta anos.

— Minha nossa... - Ela não era muito boa em fingir surpresa. - O que você faz aqui, jovenzinho?

Ikari não disse nada, apenas encarou a mulher.

— Veio me matar? - Ela despreocupadamente mexia no caldeirão. - Você é um onmyouji, não é?

— Eu... Vim te exorcizar... - Ele engoliu em seco.

— Eu vou morrer se você fizer isso...

Nesse momento Ikari baixou a guarda, o que quase lhe custou a vida. Em fração de segundos a senhora se transformara e partira para o abate. Seus membros se alongaram, suas costas se encurvaram, suas unhas cresceram, longas e curvas como sabres, e seus dentes se tornaram afiados.

Por reflexo, Ikari elevou o antebraço, reforçando-o com seu Reiki, e protegeu-se de um corte, machucando superficialmente seu antebraço. Caso contrário provavelmente seu pescoço seria atingido.

"Isso foi por muito pouco...", ele pensou, sentindo uma ardência no local da ferida. "Eu tô muito pesado!"

— É uma pena, eu pensei que sua guarda estivesse baixa... - A velha dizia em uma voz sinistra, duplicada, enquanto espreitava ao redor de Ikari, que a acompanhava com a guarda levantada e com um olhar afiado.

A cabeça da velha começara a crescer, bem como seus dentes finos, longos e afiados. Uma aura negra emanava de seu corpo, dando uma impressão de que ela era ainda maior, mesmo que conseguisse chegar aos dois metros quando de pé.

— Você é o ingrediente certo que faltava pra minha sopa! - Ela afirmou.

"Ikari, tenha em mente que mesmo um akuma simples ainda pode ser perigoso para um novato.", ele se lembrou de outra das lições da mestra. Comparando-se youkai com humanos comuns, akuma seriam os onmyouji. Eles são mais fortes, mais rápidos, mais letais.

"E é por isso que não posso vacilar por um segundo sequer...", pensou com uma calma que até mesmo o assustou.

Ele concentrou toda a energia em seus punhos, como estivera fazendo nos últimos dias, e quase pôde sentir as faixas negras se formando ao redor, mas ainda não era o suficiente. Ele inspirou fundo e decidiu lutar com o que tinha.

Mais uma vez a inimiga avançou em linha reta com um corte horizontal. Sua grande envergadura no casebre permitiu que Ikari passasse desajeitadamente por debaixo, contra-atacando com um soco no braço. A velha guinchou de dor, mas não parecia se abalar.

O ritmo estava difícil de controlar. Ikari se movia como um boxeador, como um praticante de sanda, mas seu peso tornava seus passos desajeitados. Ocasionalmente era impossível de desviar, então tinha de recorrer à uma defesa na qual sempre saía machucado, ainda que amenizasse os golpes como pudesse.

Sentiu os braços fraquejarem levemente com os cortes, então assim que o próximo ataque veio desvirou para o lado e devolveu com um poderosos chute semicircular, carregado com seu reiki, afundando o peito do pé no rosto da velha.

Ela estava começando a fraquejar também, e conforme o garoto sentia confiança, também sentia um sorriso se formar em seu rosto.

— Vamos, pode vir pra cima! - Ele instigou, levando sua franja para trás, e sua oponente pareceu morder a isca - Eu vou quebrar esses seus dentes!

Ela veio, então, com seu rosto projetado para a frente e cercando-o com as garras em cada lado. Ikari sorriu com ainda mais confiança.

"Vamos lá, eu consigo", se motivou, assumindo uma postura mais solta.

O sanshou da vespa mandarina em muito se assemelhava ao sanshou tradicional, com sua guarda fechada, postura básica e um bom manejo dos movimentos tal qual o boxe, adicionando chutes, cotoveladas e joelhadas. Ele se destacava, porém, por incorporar princípios que iam além do contra ataque.
Jeet kune do, "o modo de interceptar o punho", princípio usado por ninguém menos que Jun Fan, conhecido como Bruce Lee, na elaboração do estilo de Kung Fu de mesmo nome. Mais do que um simples contra-ataque, um modo de lutar baseado na filosofia taoista. "Se sua vida está em risco, você não para e pensa, você age".

O mesmo princípio era utilizado aqui: um golpe reto, simples, prezando a velocidade e se aproveitando do movimento inimigo antes que ele te atinja. Ikari deu um passo à frente em vez de recuar e reunindo tudo o que tinha chutou o rosto da velha com a planta do pé. Seu golpe foi além de esmagar o rosto da adversária, ele pôde sentir dentes e ossos se quebrando.

No instante seguinte o corpo fora projetado para fora da casa como um jato. Até mesmo Ikari se surpreendeu com a velocidade que conseguira se mover. Quando a adrenalina passou, ele seguiu para fora atrás da akuma.

"Que merda, eu só tenho essa camisa...", se queixou, enrolando o que sobrou das mangas rasgadas e meladas com sangue. Assim que chegou onde o monstro se contorcia de dor, encontrou-se com Kenji, que calmamente se encaminhava para ele.

— Oh, essa foi boa, novato! - Ele exclamou, quando pareceu perceber algo - Uma yamanba? O que faz aqui tão longe da montanha, velha de merda?
Sua pergunta, porém, foi tarde demais, pois seu corpo já se desintegrava em um líquido negro, como tinta nanquim. Em instantes não restava um traço sequer de sua existência. Ikari parecia confuso.

— É isso que acontece quando matamos um akuma... - Ken comentou com nojo - Eles são tão manchados pelo yin que seu corpo desaparece nessa poça nojenta em vez de deixar um cadáver...

Os olhos de Ikari se arregalaram quando percebeu outra yamanba nas costas de Kenji em um furacão de folhas. Ikari demonstrou o início de um grito de aviso, mas garras longuíssimas penetraram pelas costas do mais velho, atravessando até a frente. Esta parecia ainda mais velha e perigosa que a anterior.

— Então você matou minha aprendiz, coitada, nem sabia usar magia ainda... - Ela disse com um sorriso no rosto, o qual se desmanchou logo que sentiu pressão em suas garras.

Kenji segurava sua unha, com um fiapo de sangue escorrendo-lhe pelas brechas da mão. Um sorriso irritado e olhos vermelhos brilhantes se destacavam em seu rosto.

— Sua filha da puta... - Ele disse em um tom ameaçador, mas controlado. A aura amarelada em forma de poeira se concentrava novamente ao seu redor - Essa jaqueta era nova!

Seu grito ecoou, seus olhos se tornaram mais e mais selvagens e todo o seu pelo, incluindo seu cabelo, se eriçou. Uma torrente visível de eletricidade tomou conta de seu corpo, passando para a akuma, que gritou em agonia. Ikari teve a impressão de que até mesmo os dentes dele pareciam mais afiados.

Ela recuou, contorcendo-se no chão. Fumaça subia de sua pele e quimono queimados.

— Regra número um para matar Kumotora Kenji-sama! Não chegue perto! - Ele disse, soltando a tira que prendia sua zambatou. - Regra número dois, não me irrite! Você infringiu duas delas, agora você vai morrer!

— Não zombe de mim, pirralho de merda! Eu estou viva há mais tempo até mesmo que seus pais! - Ela conjurou o que parecia uma chama roxa em sua mão e tentou lança-la em ambos.

Kenji, porém, foi mais rápido, e com um movimento de seu corpo inteiro desceu a espada, decepando com facilidade o braço da velha. Em um movimento desesperado ela usou o tornado de folhas de outrora para sair dali.

O onmyouji apenas riu enquanto mostrava um ofuda amarelado com inscrições negras.

Receba e use a ira do relâmpago, use-o para decapitar meus inimigos! kyu kyu nyo ritsu ryo!— ele exclamou, prendendo o pedaço de papel em sua espada.

Assim que a yamanba reapareceu ele não perdeu tempo e correu em sua direção, arrastando a espada com apenas uma de suas mãos.

— Morra! - Ele exclamou. Conforme se aproximava, a eletricidade que seu corpo emitia parecia ser absorvida pela lâmina, que brilhava com uma mistura de amarelo e azul. A inimiga mal teve tempo de reagir, Kenji desceu sua lâmina, cortando-a ao meio, com a eletricidade queimando quase instantaneamente o que sobrou.

Assim se fixou a imagem de Kumotora-senpai na mente de Ikari. Um irreverente que agia como uma completa besta no campo de batalha. Era assustador, e ele agradeceu por ser seu aliado.

— Bem, vamos voltar... - Kenji disse com simplicidade. - Dever cumprido...

Ikari estava sem palavras, demorando para voltar a si.

— Ah, sim, claro! - logo ele o seguiu.

— Mas antes, espere um pouco... - Disse o outro, pousando sua espada e sua jaqueta no chão. Logo ele rasgou a camisa simples que usava por baixo e a amarrou para estancar o sangramento. - Merda, isso doi...

Foi apenas por um instante, mas Ikari percebeu a enorme tatuagem que possuía no lado esquerdo. Ela vinha desde a parte da frente, passava pela lateral e terminava em suas costas. Não ficou claro o que era exatamente, mas ele pensou ter visto uma fera coberta de eletricidade.

Ele também percebeu que não sentira tanta piedade para com os akuma quanto pensou que teria.

 


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Notas finais do capítulo

O que acharam, gostaram?

A arte dessa vez foi uma comission que fiz a uma amiga, a qual vocês podem encontrar como Mari-N Artworks. Muito obrigado, a Ene ficou muito fofa no seu traço! Eu corri para coloca-la aqui, ainda que ela mal aparecesse nesse capítulo!



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