Através das barreiras do tempo escrita por Celso Innocente


Capítulo 31
Explicando


Notas iniciais do capítulo

Este é o penúltimo capítulo.



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— Não quero garotas! — negou Regis, convicto.

            — O que há? — estranhou Percival. — Vai se apaixonar por Gay?

            — Eu não! Não quero nada! Tenho doze anos!

 

Explicando

 

            Na segunda feira, retornando ao trabalho no período da tarde, contava novamente com a companhia do senhor Pedro e, no primeiro intervalo de folga, enquanto todos sumiram, aproveitei para esclarecer:

            — Senhor Pedro, como eu faço pra voltar?

            — Voltar pra onde? — não compreendeu ele.

            — Pro meu tempo, senhor Pedro. De onde eu fui tirado.

            — Que tempo?! — riu ele. — Tá ficando biruta igual eu?

            — Meu nome não é Arthur… e eu não sou irmão gêmeo de Regis.

            — O quê?! Claro que você é irmão de Regis! Tudo em vocês é igual! Até o jeito de falar. A única diferença é que você é mais… Como se diz… acho que vivido. Enquanto você sabe as coisas… percebe as coisas… vê os perigos… Ele parece um bichinho doce, inocente…

            — Eu vim do futuro, senhor Pedro. Não sou daqui. Não sou irmão do Regis. Eu sou ele.

            — Você tá é maluco! — ironizou o homem. — O contador de estórias aqui sou eu! Eu e o Santo.

            Santo, também era meu vizinho e trabalhava no setor de lavagem e escolha do vidro reciclado, separando-o das impurezas, tais como plásticos, metais e pedras. Geralmente, no horário do almoço, a gente o cercava para ouvir suas estórias, diferentes das contadas e repetidas por senhor Pedro.

            — Eu vim do futuro — continuei. — Primeiro para realizar o meu desejo de voltar a ser criança. E segundo, para tentar consertar minha infância, para tirar pequenos traumas de minha vida adulta.

            — Traumas? — assustou-se o homem.

            — Isso — ri, embora com jeito triste. — Ei bichinho fantástico pra atrair coisas ruins, esse menininho que o senhor chama de inocente.

            — O que são coisas ruins?

            — Adultos safados mexendo com ele! Um cara que tenta suicídio pra fazer o maninho se sentir culpado…

            — Adultos safados faz parte desse… inferno, como diz o Ademir. Tire seu maninho desta fábrica e o livrará deles.

            — Não é só aqui, senhor Pedro. Quando ele trabalhou na olaria também passou por tal trauma. As pessoas acham que é apenas uma brincadeira boba, mexer ou falar sobre erotismo com crianças, sem se dar conta que daqui a cinquenta anos, Regis ainda terá trauma sobre tais maldades idiotas.

            — Enquanto eu estiver aqui ninguém mexerá com as crianças — ficou bravo o bom velhinho. — Principalmente Regis. E mais ainda você.

            — Eu sei me defender. Não sou uma criança! — neguei convicto. — Só minha carcaça é. Adoro ser criança e é assim que me sinto. Mas não sou.

            — Para de falar asneira, menino! Você é uma criança sim! E é o meu melhor amigo. Até melhor do que o próprio Regis. E eu vou defender você sempre. Nem que eu tiver que morrer por isso!

            — Obrigado, senhor Pedro. Eu acredito de verdade no senhor. O senhor é o responsável por eu estar aqui. Como eu volto pro meu tempo?

            — Qual é o seu tempo?

            — O ano é dois mil e dezoito. Sou do futuro, como já disse e foi o senhor quem me mandou aqui.

            — Dois mil e dezoito? — riu ele. — Até lá eu já teria…

            — Cento e oito anos — completei.

            — Como calculou tão rápido?

            — Não calculei! — dei de ombros. — Eu já sabia. Vim de lá com essa informação.

            — Cento e oito anos? Não acredito que viverei tanto. Já estou sentindo o peso da idade.

            — Viverá!

— Raras pessoas vivem mais do que cem anos de idade.

— E o senhor está entre tais raras. E foi o senhor quem me mandou aqui.

            — Gosto de você, meu amigo, mas lamento informar que você tá maluquinho.

            — Eu estava na praça do centro da cidade esperando minha filha…

            — Esperando quem?

            — Eu tenho três filhos. Deixa eu concluir! Eu estava esperando minha filha sair do dentista, e para minha grande surpresa, depois de dezenas de anos encontrei o senhor, que me disse ter conquistado um grande poder mágico. Um poder que realizaria qualquer sonho. Qualquer mesmo! O senhor poderia ter usado tal poder para si próprio. Devolvê-lo à sua juventude, por exemplo. Mas não. Em demonstração de carinho para comigo e por gratidão ao ter me reencontrado depois de tantos anos, já que sempre fomos grandes amigos aqui nesta fábrica, decidiu transferir seu prémio para este loirinho aqui. Só me deu poucos segundos para decidir se topava ou não. Como não pude pensar muito e como meu desejo era voltar à minha infância, nem tanto para consertá-la, pois em cinco segundos nem deu tempo de pensar nisso, mas mesmo para revivê-la, eis que aqui estou eu. Isso já faz mais de dois anos.

            — Birutinha de tudo, meu amigo! — riu o homem. — Poderes mágicos não existem! Eu estar vivo até dois mil e dezoito! Olhe para mim. Acha que chego lá?

            — Tenho certeza que sim! Eu o encontrei lá!

            — E você não é irmão do Regis! É ele próprio?

            — Ele nunca teve um irmão gêmeo! Pode perguntar à nossos pais? Pode perguntar a ele!

            — E você veio consertar o passado?

            — Vim reviver o passado. Aproveitando que estou aqui, estou tentando consertar algumas falhas. Porém não estou conseguindo. O destino que já está escrito ninguém apaga. Por mais que eu tente nada funciona.

            — Como assim?

            — Eu não deveria estar trabalhando nessa fábrica! Estou aqui a passeio e não deveria perder precioso tempo em trabalho ingrato, servindo de chacota para adultos idiotas. Mas preciso estar perto de Regis.

            — Isso não existe!

            — Não sou criança, senhor Pedro. Meu corpo é, meu cérebro não! Já disse isso! Sou formado em telecomunicações. Venho de uma era em que, a gente possa estar trabalhando aqui e mostrar esse trabalho ao vivo para pessoas da Ásia, por exemplo.

            — Como assim?

            — Estarmos aqui trabalhando e pessoas de qualquer parte do mundo estar nos vendo no mesmo momento, ao vivo e a cores. Com áudio e vídeo perfeito.

            — Tá maluco!

            — Diga um número difícil para multiplicar.

            — O quê?! Nunca fui na escola, meu amigo!

            Pensei um pouco e decidi:

            — Quem aqui da fábrica que está viajando pros lados de Goiás?

            — Daniel — nem pensou ele para responder. — Irmão do chefe Ricardo.

            — Pois é! — decidi. — Eu nem deveria lhe dizer isso. Mas quem sabe eu consiga alterar um pedacinho do destino de alguém. Ele é meu primo. Em terceiro grau, mas é! Peça ao Ricardo pra fazer de tudo pra entrar em contato com o irmão e pedir pra ele não viajar de volta hoje.

            — Ele não virá hoje! — negou o senhor Pedro. — Eles foram pescar por dez dias e só voltarão na quarta-feira.

            — Essa era a ideia — concordei. — mas os peixes resolveram fugir.

            — Você está brincando, não é?

            — Não! — neguei sério. — Acredite em mim! Mude o destino de alguém.

            — Olha quem voltou!

            Regis acabava de retornar primeiro do que os demais para seu posto de trabalho, que já estava mesmo acumulando, devido à demora do grupinho em retornar.

            Eles sempre demoravam mesmo. E como o senhor Pedro permanecia ali conversando comigo, que também raras vezes saía, não deixava o serviço acumular.

            Nesta data porém, como ficamos conversando assunto diferente, para ele, acabou deixando o trabalho à espera dos demais.

            — Regis, me diz uma coisa… — chamou-o o homem. — Este loirinho aqui não é seu irmão?

            — Claro que é! — deu de ombros. — Impostor, mas não deixa de ser!

            — Diga a verdade, Regis — pedi. — De onde eu venho?

            — Diz que é do futuro e que na verdade ele sou eu mesmo! Não acredito muito! Mas na verdade ele é igual a eu. Até a verruguinha que eu tenho aqui — apontou para o próprio saquinho. — Ele tem igualzinha.

            — Primeiro que não se diz eu — protestei. — E segundo, troque verruguinha por verrugazinha…

            — Por isso eu não acredito que ele seja eu… mim! Pois vive me corrigindo…

            — Nesse caso não se diz mim e sim eu! — insisti.

            — …e se ele fosse mesmo… mim ou eu, sei lá, também falaria errado igualzinho a… eu!

            — Acontece que o eu em seu corpo tem apenas diploma do quarto ano escolar. Enquanto que o eu em meu corpo tem diploma de formatura de verdade. E não é apenas um!

©®©

Embora o senhor Pedro tenha falado alguma coisa a respeito de nossa conversa com Ricardo, ele, talvez nem tentou entrar em contato com o irmão que teria ido pescar e por isso, mostrando que de fato a gente não vai conseguir alterar um destino já preparado, na viagem antecipada de retorno, a caminhonete que usavam para viajar, quebrou em cima da ponte do Rio da Prata, na divisa de Goiás com São Paulo. Era início de noite e o irmão Daniel, tentando reparar alguma coisa em sua traseira, incorretamente escura, por falha na sinalização, um caminhão carregado não conseguiu frear a tempo, prensando tal homem entre os dois veículos, vindo a ter morte instantânea.

            A notícia chegou na fábrica quase dez horas da noite.

            — Você de fato sabia? — especulou-me o senhor Pedro chorando.

            — O que eu faço pra ir embora pra minha vida, senhor Pedro? — especulei inconsolavelmente.

            — Você veio mesmo de outra época? O que mais você sabe? Por que não evitou?

            — Porque eu não consigo! Antes dele viajar eu pedi pra ele não ir. Como ele achou graça, rindo na minha cara, pedi a ele que, acontecesse o que fosse, não viajasse de volta hoje. Sabendo que ele não me atenderia pedi pra ele sinalizar o local com muito cuidado e que nunca fosse ele a entrar na rodovia para tentar reparar o veículo. No fundo eu já sabia que ele sequer se lembraria da recomendação de um menininho bobo. Avisei o senhor, que avisou o irmão dele… O destino está escrito e eu não consigo alterá-lo. Trabalho com Regis, com único intuito de protege-lo, mas não consigo.

            — A partir de hoje, o que você me falar será lei — alegou tal homem, ainda chorando, se sentindo tão culpado quanto eu também me sentia.

            — Eu quero voltar! Vim aqui pra tentar ser feliz ao reviver minha infância, mas não consigo. Não, sabendo o que vai acontecer e eu não poder fazer nada pra evitar.

            — Diga o que vai acontecer amanhã e eu acreditarei.

            — Amanhã não é novidade… — ironizei querendo rir por entre os olhos marejados. — Esta fábrica não irá funcionar e haverá um funeral.

            — Isso até eu acerto! — riu ele, também entre lágrimas. — Se você realmente quer voltar, como você chegou aqui por um desejo, então voltará pelo mesmo desejo.

            — Mesmo que eu estivesse feliz aqui, eu teria mesmo que voltar. Como está minha família lá no futuro?

            — Então volte! Não que eu queira! Pelo contrário. Sentirei muito a sua falta.

            — Cuide de meu irmão por mim! Ele é muito… inocente. Não deixe pessoas de má índole se aproximar dele. Quem sabe o senhor consiga tirar um pouquinho de meu pequeno trauma de adulto.

            — Se você realmente ir embora, prometo que cuidarei de seu maninho como se fosse mesmo meu… filho.

            — Eu sei que cuidará. Porque assim já está escrito. Mas minha pergunta continua sendo, como faço para voltar ao meu tempo?

            — Primeiro você terá que perdoá-los — alegou calmamente o bom senhor.

            — Perdoá-los? Quem?

            — Todos eles! Desde o rapazito lá do sítio, até os que se encontram aqui na fábrica.

            — Acha, senhor Pedro! É impossível!

            — Não é! E é o único jeito de você voltar. Já que foi o motivo involuntário de ter vindo aqui.

            — Não foi esse o motivo! — senti lágrimas. — Vim aqui para ser feliz ao reviver uma infância distorcida por crápulas.

            Pensei um pouco e continuei:

            — Como sabe do rapazito do sítio? Nunca falei sobre isso com ninguém.

            — Quem sabe o Regis.

            — Jamais! Ele tem traumas e jamais fala sobre estas coisas. Não posso perdoá-los! Não consigo.

            — Não! Você consegue.

            — Não sou igual Jesus Cristo, senhor Pedro, que ao estar ridicularizado pregado em uma cruz cruel, sendo zombado por milhares de pessoas, conseguiu olhar para o céus e pedir para que Deus os perdoasse. Eu sou muito fraco pra isso.

            — Na verdade você já os perdoou — riu irônico o homem.

            — Claro que não! Eles mexeram com meu irmão!

            — Ninguém mexeu com seu irmão!

            Estranhei o que ele mencionara e cobrei bravo:

            — Desculpe, senhor Pedro, mas o senhor está ficando maluco?

            — Maluco eu! Por que achas isso?

            — O senhor viu e vê o que acontece todos os dias aqui nesta fábrica. E ousa dizer que não mexem com meu irmão!?

            — Não! Com seu irmão não! Regis não é seu irmão! Foi você quem disse! Mexem com você.

            — Pois é! Voltei à minha infância pra ser feliz. Havia me esquecido de que teria que reviver tudo novamente. E o pior, que não conseguiria alterar nada!

            — Não mexa no passado pra não alterar o presente. Pois com certeza terá consequências drásticas. Lembra-se, foi você mesmo, um mero menininho de doze anos de idade quem disse isso.

            — Não — neguei com ajuda dos ombros. — Não sou filósofo! Copiei de alguém.

            — Mas é real — riu ele.

            — Não consigo perdoá-los.

            — O que você foi fazer na casa do Rony?

            Pensei um pouco e emendei rangendo os dentes:

            — Tentar evitar com que o cretino não pulasse pendurado com uma corda no pescoço.

            — Qual o motivo pra isso, se não o perdoasse?

            — Não tenho motivos pra precisar perdoa-lo. Ele jamais fez algo errado com meu irmão.

            — Com seu irmão, de fato não!

            — Nem comigo! — protestei convicto. — Ele sempre me respeitou.

            Pensei um pouco e emendei:

            — Claro! Ele se apaixonou por este loirinho bobo aqui. Mas e daí? Amar não é pecado! O erro dele foi só se apaixonar pela pessoa errada…

            — O que você recomendou para o Mauro?

            — Como assim? — não entendi.

            — Ele mexeu com… não seu irmão, mas o Regis, que é você mesmo e pior… com o próprio sobrinho. O que você recomendou a ele?

            — Para dar um tempo e tentar se reconciliar com sua família…

            — Isto não seria… perdoar?

            — Sei lá! Como o senhor sabe disso?

            — Conversas intermináveis, meu querido amigo. Lembra? Conversamos muito! — fez uma pausa. — E o Ademir?

            — O que tem ele?

            — Não vai perdoá-lo também? Afinal ele lhe ofereceu drogas! Ele não acredita em Deus! Só no capeta.

            Mostrei certo sorriso irônico e insinuei:

            — Acho que ele é o que mais acredita em Deus nesta fábrica.

            — Acho que tens razão – concordou o bom velhinho.

            — Ele nunca deu drogas para crianças!

            — Então você nem precisa perdoá-lo?

            — Não! Talvez seja ele que tenha que me perdoar. Por julgá-lo.

            — Maurício…

            — Só um moleque bobo no corpo de um adulto — ri. — Já disse isso!

            — Que adora mexer contigo! Que aliás, é o oposto dele! É só um adulto esperto no corpo de um… moleque bobo!

            — Não sou um adulto esperto! Prefiro mesmo ser o moleque bobo.

            — Dorival?

            — Tinha que ir pra cadeia! — franzi a cara. — Em meu tempo ele iria, com certeza.

            — Então você os condena? Todos devem ir para dois infernos! Caso consiga escapar do inferno da Terra, que é a prisão, com certeza não escaparão do inferno eterno, idolatrado por Ademir.

            — Eu não condeno nada! Só me revolto! Queria consertar minha infância e não consegui.

            — Conseguiu sim! Só precisa aceitar que conseguiu. Assim você voltará ao seu tempo e não mais carregará o trauma que carrega lá.

            — E eles… inclusive o Dorival, que abusa de um inocente, ficarão impunes?

            — Ninguém fica impune de nada! A própria vida cobra o mal que você faz aqui neste mundo! Volte ao seu tempo e o viva intensamente. Viva um momento de cada vez. Evite viver de passado ou de futuro. Recorde sim seu tempo de infância, em que era de fato feliz sem saber que era, mas procure viver o presente. Esqueça seus traumas e serás muito feliz. Mesmo não sendo mais a criança que almejava ser eterna em seu ser.

            — Lindas palavras, senhor Pedro. Obrigado por cria-las e compartilhá-las comigo.

            — Não são minhas, garoto! Não tenho o dom de ser célebre! Só as copie… da vida.

            Se calou por um instante e disse triste:

            — Que pena que não o reencontrarei mais nesta fábrica.

            — Me reencontrará sim! No corpo de meu… quer dizer… do Regis.


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Notas finais do capítulo

Agora só falta o desfecho deste drama.



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