Através das barreiras do tempo escrita por Celso Innocente


Capítulo 30
Saudades




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— Se você me ameaçar mais uma vez, vou enfiar sua própria arma em sua barriga e arrancar suas tripas pra fora, seu moleque encrenqueiro.  

    

Saudades.

 

Naquela mesma tarde, mamãe me encontrou sentado sozinho no banco de madeira encostado no muro do lado de fora de nosso quintal.

Ao perceber meu semblante triste e preocupado, ela sentou-se ao meu lado e, como nunca fazia, me abraçou carinhosamente perguntando:

— O que há, meu menino especial? Por que você nunca se sente feliz?

Senti os olhos se encherem de lágrimas. Aproveitei seu abraço, me segurando forte nela e emendando:

— Eu queria voltar para minha família.

— Nós somos a sua família.

— Eu sei! Mas depois que a gente se casa, acaba constituindo outra família e esta precisa da gente. O mais importante, a gente precisa dela.

— Você disse que queria voltar pra sua infância. Cá está você.

— Parecia lindo este meu sonho. Só que eu não contava que encontraria diversos enroscos e também não imaginava que sentiria saudade de minha esposa e filhos.

— O que são… os… enroscos?

— Quando almejava voltar para minha infância, achava que estaria voltando para uma época em que era feliz e nem sabia. Só que eu não imaginava que para defender meu eu, passaria por dramas como voltar a trabalhar em uma fábrica, onde a predominância é o trabalho escravo infantil e de quebra, recheada de… pedófilos.

— Por que você fala tão complicado? — especulou-me ela. — Não consigo entender nadinha do que você fala.

— Em meu mundo, as duas coisas que citei são condenadas com cadeia. Lá, crianças não trabalham. Só estudam e… brincam. Quer dizer, deveriam brincar, porém são escravas de jogos eletrônicos.

— Como são os seus filhos?

— Ah! Eles são especiais — dei leve sorriso, embora ainda triste. — O mais velho é como eu. E, apesar dos vinte e cinco anos de idade, parece mais um menininho de nove. Nunca leva nada a sério.

— Com certeza ele quer ser criança também.

— Não! Ele também, como eu, tem saudades da infância serelepe que teve. Porém, o que quer mesmo é ser adulto e brincar como criança — pensei um pouco. — E é muito inteligente. Com exceção de a bíblia, eu nunca vi ele ler mais nada, mas está sempre a par de tudo o que acontece. Não há nada que a gente fale que ele não saiba com muita propriedade.

— E a menina?

— Ela é a xodozinho da casa. Tinha que ser! É a caçula. A mãe faz tudo o que ela quer. Só falta dar comida na boca. Por outro lado, isso não é bom, pois ela acaba se tornando dependente de tudo e é teimosa. Às vezes ela precisa de algo… Ajuda com tarefa escolar por exemplo. Pede a minha ajuda, mas nunca dá muito certo, porque ela não aceita contrariá-la e a gente acaba brigando.

— Você briga com sua filha?!

— Modo de dizer, mamãe! Não é briga de verdade! Só opiniões contrárias. Ela não aceita que eu saiba mais do que ela. Às vezes brinco com ela dizendo que sempre fui nerd.

— Ah! Assim como Regis! Ele é ingênuo e te chama de chato porque você quer impor ideias. E o outro menino? Como ele é?

— O do meio? É igualzinho ao vovô Alfredo.

— Como assim?

— Quase não fala nada! Jeito carrancudo de poucos amigos. Vive trancado em seu mundo.

— Então ele é igual ao seu pai!

— Pior do que papai! Igual ao finado vovô, mesmo! Até os dez anos de idade ele até brincava, depois disso, só vive no mundo da tecnologia moderna, preso em um computador.

— O que faz um computador?

— Tudo o que a senhora quiser imaginar. No meu tempo ele dominará as crianças e até os adultos. Imagine nossa família sentar juntos à mesa para uma refeição. Cada um de nós terá um pequeno aparelho eletrônico na mão. Ninguém conversará entre si. Muitas vezes até mandaremos uma linda mensagem dizendo, um beijo… ou um abraço. Pô! Estamos um do lado do outro. Jogue esta porcaria eletrônica fora e de um beijo de verdade em quem está ali do seu lado.

— Parece triste.

— Não parece! É triste!  As pessoas sairão para jantar em uma lanchonete e não conversarão. Nem prestarão atenção na beleza de se estar junto com quem se gosta. Se tornarão verdadeiros escravos desta “bendita” tecnologia.

— Fico imaginando um mundo assim — riu ela.

 — A senhora também viverá em um mundo assim. Cinquenta anos está ali mesmo. É por isso que eu almejava voltar pra minha infância. Só que não adiantou muito. Só minha carcaça é de criança. Eu continuo um adulto que ao voltar pra essa época acabei nem aproveitando muito, pois me intriguei com os perigos que cercaram minha idade de inocente. Mesmo assim, gosto disso, gosto desse corpinho infantil. Só que eu preciso voltar, mamãe. Estou com saudades da minha turminha.

— Eles devem ser muito especiais. Você ainda nem falou de sua mulher.

— Ela é muito boa mulher. A conheci com treze anos de idade. Brava! Mas, como dizem, late, late, mas nunca morde ninguém. Com as crianças ela não é igual a senhora, que nunca ameaça, mas a varinha verde trabalha bastante. Ela, pelo contrário, ameaça o dia todo e nunca faz nada. Foi assim com meu filho mais velho, foi assim com meu filho do meio. Agora está sendo assim com a caçulinha. O dia todo ela diz, eu vou te pegar. A menina nem liga, pois sabe que é só da boca pra fora. O menino do meio um dia remedou ela, fazendo os mesmos gestos que ela fazia ao dizer que iria surrá-lo; ela ficou muito brava e ele continuou com seus gracejos. Resultado… nada!

— E você? Castiga alguns deles?

— Não com surras! Amo meus filhos para espanca-los!

— Eu também amo meus filhos, mas tenho que corrigi-los.

 — Irá mudar esta postura brava, ao se deparar com os netos. Terá… — calculei rapidamente. — dez netos vivos. Carregará meus filhos no colo. Brincará com cada um deles…

— Deus te ouça.

— Ele já ouviu, mamãe! Isso está escrito… e ninguém irá apagar.

— Por que você diz dez netos vivos? O que acontecerá?

Eu e minha boca que não sabe medir palavras.

— É que… — atrapalhei-me. — Sei lá! Serão dez! Minha esposa, por exemplo, perderá um bebê na gestação…

É claro que ocultei algo terrível. Mamãe perderá um de seus netos aos sete meses de vida. Será que eu conseguiria alterar drástico destino?

— É engraçado conversar com meu filho pequeno, sobre os filhos dele — riu mamãe. — Ainda mais que ele quer ser padre.

— Regis não será padre! — fui incisivo. — E já tivemos uma conversa assim. Este seu filho se casará e terá três filhos. E é deles e minha esposa que sinto saudades hoje. Eu queria voltar a ser criança. Cá estou eu… querendo voltar para meu mundo adulto.

— Se você se for, eu sentirei a sua falta.

— Eu continuarei aqui. No corpo peralta do Regis. Por favor, mamãe, não use tanto sua varinha verde. Use mais o seu abraço como o de hoje. Garanto que ele educa muito mais.

— Até parece que você apanhou tanto assim em sua vida conosco!

— Lembra do dia em que a senhora bateu bastante na minha irmã, porque ela jogou cascas de cana pela janela da vizinha?

— Claro que lembro! Arte grave e ela precisava apanhar!

— Por que não bateu em mim também?

— Ora! Quem fez tal peraltice foi ela!

— Quem disse pra senhora?

— Ninguém! — se perdeu, mamãe. — Foi ela!

— Claro que não foi ela! — ri, sapeca. — Eis aqui o dono de tal travessura, que saiu impune enquanto a menina levou a maior surra da vida.

— Foi mesmo você?

— Por que eu e o Regis quase nunca apanhamos, enquanto os demais apanham por quase nada?

— Você não faz tantas travessuras! Sempre foi um bom menino. Sempre me ajuda em tudo! Apesar de trabalhar na olaria e agora na fábrica de garrafas, nos momentos vagos me ajuda em tudo. Você se lembra de quando eu ia trabalhar na roça e o Regis, com oito anos de idade ficava em casa cuidando do almoço e dos irmãos menores?

— Foi antes de eu chegar de volta aqui, mamãe! Mas claro que me lembro! Fazia almoço inclusive pro papai, que trabalhando na construção sempre almoça às onze horas.

— Então! Você! E o Regis, sempre foram tão puros!

— O Regis é santo, mamãe?! — ironizei. — Só se for santo do pau oco![1]

É®Ê

Na manhã de sábado, Percival retornara ao trabalho normalmente e sem que praticamente ninguém lhes perguntasse sobre o ocorrido tomou parte de sua função, trabalhando com seu jeito cansado.

            Em momento de folga em nosso setor, antes que o maninho Regis desaparecesse com os demais, chamei-o, deixando minha parte por terminar.

            — Venha aqui!

            — O que houve? — estranhou ele.

            — Sei que você quer fugir do Percival, mas não adianta. Vamos lá falar com ele.

            — Eu não! — assustou-se.

            — Você não, por quê?

            — Não quero!

            — Ouça bem! Não é culpa sua. E ele sabe disso.

            Um tanto desconfortável, Regis me acompanhou, seguindo juntos até o setor do homem, que continuava, fatigado, exercendo suas atividades de tomar vidro reciclado com um grande garfo forjado de dez dentes, jogando dentro de um grande funil, que os despejava em uma forma cilíndrica que girava dentro de uma caixa de água, com objetivo de lavagem.

            — Senhor Percival… — insinuou Regis, quase inaudível. — Eu não tive culpa.

            — Do que você tá falando, menino?!

            — Do que aconteceu ao Roni.

            — Claro que você não teve culpa! — enfatizou o homem, parando o trabalho. — Ninguém teve culpa, a não ser ele mesmo.

            — Como ele está, senhor Percival? — interferi.

            — Está bem! — olhou sério para o maninho, percebendo que ele ainda se sentia culpado. — Não se preocupem! Se ele tivesse morrido eu faria festa no mesmo dia.

            O maninho se espantou ao ouvir aquela alegação e o homem concluiu:

            — Claro! Foi ele quem quis morrer! Não fui eu quem quis mata-lo.

            Embora estranhando a atitude de tal homem, Regis suspirou aliviado.

            — Sabe, menino… — continuou o homem. — Eu gosto de você. Aliás, de vocês dois. E você não é obrigado a se apaixonar por um… gay. Procure uma garota.

            — Não quero garotas! — negou Regis, convicto.

            — O que há? — estranhou Percival. — Vai se apaixonar por Gay?

            — Eu não! Não quero nada! Tenho doze anos!

 

[1] A expressão "santo do pau oco", usada para designar pessoas falsas, surgiu provavelmente em Minas Gerais, no final do século XVII. Era o Período Colonial, o auge da mineração no País. Para driblar a cobrança do "quinto", o imposto de 20% que a Coroa Portuguesa cobrava de todos os metais preciosos garimpados no Brasil, santos em madeira oca eram esculpidos e, posteriormente, recheados de ouro em pó. Lógico que Regis não tem nada a ver com isso.


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