Através das barreiras do tempo escrita por Celso Innocente


Capítulo 26
Anjo ou demônio?




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Na semana seguinte, na fábrica, por volta das nove horas da noite, em momento de folga em meu setor, desci para caminhar sem motivos pelo setor de produção, me deparando com Ademir, um homem que deveria ter seus trinta anos de idade, que, todos, principalmente os menores, viviam evitando-o por um simples motivo.

Quando passei por ele, que em seu momento de folga, estava sentado na muretinha próxima a seu próprio local de trabalho, ele me chamou:

— Olá, garoto. Venha cá.

Assustei-me por seu convite, porém me aproximei. Ele abriu uma caixinha semelhante as de Pastilhas Valda, tomou duas bolinhas pequenas, levando-as diretamente à boca, depois me apontando a latinha, ofereceu:

— Quer uma?

— Por que oferece drogas para criança?

— Isto aqui não é droga. É apenas um revitalizante pro nosso corpo suportar este inferno.

— Revitalizante? — ironizei. — Tá?

— Quer uma? Pra experimentar.

— Você sabe que se eu tomar uma delas, nunca mais irei parar. Por que oferece?

— Se não vai mais parar é porque é bom! Tome uma. Não é viciante.

— Por que você não pede pra Deus ajuda-lo a suportar este inferno que disse ser o trabalho e jogue este néctar do capeta no lixo?

— Você acha que se a gente pedir alguma coisa pra um deus que nem existe, ele me dará?

— Claro que não! — ironizei. — Se você pedir a um deus que não existe, não terá como conseguir, porém, se pedir a um Deus que existe, com certeza ele ajudará.

— E qual é o deus que existe? — riu ele. — Lúcifer?

— Também! — balancei os ombros. — E ele até te dá coisas. Essas que você me ofereceu por exemplo. Só que a cobrança de juros dele é muito alta e você sabe disso.

— Isso aqui eu comprei na farmácia! — riu ele. — Não foi Lúcifer quem me deu!

— Pois é! — insisti. — Sei qual farmácia você comprou. E depois, não se ofenda, mas você está sendo meu Lúcifer, ao me oferecer drogas.

— Você é bem machinho, não menino!? — ironizou isso.

— Meu pai vive falando essas coisas!

— Pois é! Cuidado, pois machinhos podem levar surras machas!

— Também concordo. Mas eu preciso ser. Tenho a responsabilidade de cuidar de mim e de meu irmão, pois ele é muito frágil.

— Ele teria aceitado minhas bolinhas, se eu tivesse lhes oferecido?

Pensei um pouco e emendei:

— Acho que não! Ele não é tão inocente. Alguma criança já aceitou?

— Sim! Várias! — riu ele.

— Mas você não as dá, não é mesmo? Só oferece.

— Como você sabe?

— Parece que eu conheço você. Não tem jeito de quem daria drogas para crianças. Acho que só prejudica a você mesmo.

— É claro que não dou isso para pequeninos! — protestou, até que de jeito nervoso, Ademir. — Se alguma aceitar eu brigo com ela.

— Se eu tivesse aceitado…

— Eu te daria um tapa na bunda!

— Acho que é bem por aí mesmo! Talvez você não seja mesmo um Lúcifer de alguém. Esteja mais para um anjo de provação.

— Anjos não existem! — negou ele convicto.

— E Lúcifer?

— Existe, claro!

— Ele é um anjo! Demoníaco… traiçoeiro… do mal. Mas é um anjo que Deus expulsou do paraíso, por ser invejoso.

— Deus e paraíso, garoto! Nada disso existe!

— Como você não acredita em Deus e acredita no diabo?

— Onde a gente trabalha? — especulou ele, apontando para dentro da própria fábrica.

— Concordo que aqui parece o inferno! — Ri. — Esse maldito fogo que até parece cozinhar a gente aos poucos…

— Isso não é nada, menino. Já que você acredita em anjos, digamos que aqui é um inferno assim, cheio de pequenos anjos tentando fugir, ou ajudar de alguma forma, rodeada de capetas tentando devorá-los.

— O quê? — não entendi sua metáfora.

— Você, por exemplo, seu irmão e muitos outros menininhos são os anjos assustados. Cada um de vocês, tentando fuga de seu demônio dominador.

— Dá pra traduzir o que quer dizer?

— Neste inferno não é lugar para crianças trabalhar, menino. Se eu fosse o dono desta espelunca demitiria todos vocês.

— Por quê? — estranhei.

— Não servir de brinquedinhos para malditos! Se um desses demônios mexe com você, hoje, no futuro você mexerá com outros…

— Acha! — franzi toda a cara.

— Claro que sim! Se alguém lhe oferecer drogas hoje, no futuro você oferecerá a outros. É um trauma. O cérebro cria um trauma e assim, a pessoa faz, muitas vezes julgando ser normal, outras vezes por vingança.

— Você demitiria as crianças! Ou seja, em vez de ajuda-las, estaria penalizando-as.

— Penalizando coisa nenhuma! Criança tem que estudar! Tenho certeza que todas as crianças que aqui estão, não tem mais do que a quarta série escolar. O que serão no futuro? Fabricante de garrafas, para trabalhar neste inferno de fogo e de prostituição infantil! Veja seus braços e seu peito. Cadê os pelos?

— Ãh! — estranhei. — Não é minha hora! Tenho onze anos.

Ele levantou sua própria camisa, mostrando seu peito e seus braços, que como os meus, não tinha nenhum pelo.

— Será que também não é minha hora? — Ironizou ele.

— O fogo queimou… tudo?

— Como você disse, este inferno nos cozinha aos poucos. Será que daqui a poucos anos a gente terá saúde?

Balancei os ombros como quem não sabe respostas.

— Se fosse para trabalhar crianças neste inferno, eu só permitiria que fosse no setor que você trabalha, que teria um alambrado, onde elas permaneceriam fechadas e nenhum adulto poderia chegar perto de tal lugar.

— Credo! — achei engraçado. — Seríamos como bichos presos em uma jaula?

— Pelo menos estariam protegidos — deu de ombro, Ademir.

— E você diz que não acredita em Deus!

— Cadê ele?

— Mas acredita no diabo! Cadê ele?

— O meu é o fogo que queima meu peito. O seu se chama Fabrício Monteiro. Que por ironia é o mesmo de seu irmão — ironizou, se levantando. —Agora vou enfrentar o meu.

Seguiu ele os companheiros de equipe, que retornavam para sua atividade normal. Eu, entendendo muito bem o que ele queria dizer, aleguei:

— Viu só como anjos existem! Você é um deles!

Ele olhou para trás e ainda em sorriso irônico alegou:

— Cuidado, pois o diabo às vezes se veste de anjo para cativar anjinhos indefesos.

— Não o diabo você!

Eu já conhecia Ademir da própria fábrica. De fato, ele era uma pessoa calada, que quase nunca saia de seu setor de trabalho. Sempre fazendo o que fez nesta ocasião, sentando-se solitário na muretinha e tomando uma ou duas de suas bolinhas estimulantes, que eu não sabia direito o que vinha na verdade ser. Só sabia que era droga.

Quase nenhuma criança conversava com ele, pois o temia. Mesmo os adultos conversavam pouco e ele talvez preferisse que fosse mesmo assim.

No setor ao qual eu trabalhava, todos os adultos passavam constantemente. Menos ele… até então.

Depois de termos conversados como dois adultos, ele passou a ir até meu setor, apenas uma vez ao dia; me cumprimentava, olhava sua planilha de produção diária e retornava para seu cantinho; muitas vezes, depois de caminhar uns dez metros pelo corredor, olhava para trás como a me convidar para acompanha-lo, o que eu nunca fazia, mesmo porque só poderia deixar meu trabalho em momentos de folga, que não tinha horários pré-estabelecidos, acontecia sempre quando não tínhamos atividades.

Numa dessas visitas, coincidiu com minha folga e então o acompanhei até um banco próximo, onde, sentando-nos, lhes disse:

— Sei que todos os dias quando aparece aqui, me convida para conversarmos. Acho que você gostou deste machinho!

— Eu gosto de todo mundo!

— Mas gosta mais de mim! Nunca sequer conversou com, por exemplo, meu irmão.

— Se ele topar falar comigo…

— Por que você evita as pessoas?

— Eu não as evito! — riu ele. — Elas me evitam! Têm medo das minhas drogas. Que não são drogas!

— Você gosta de conversar comigo, ou não?

— Tanto faz! — Deu de ombros.

— E por que me convida todos os dias?

— Porque você é um menino diferente. É mais esperto do que os outros! É mais vivido do que muitos adultos.

— Também acho! — ri convicto. — Sou mais esperto do que você, por exemplo!

— Por que é tão convencido?

— Não uso drogas!

— Pode ser! — riu ele. — Mas eu não me vendo para safados!

— Eu não me vendo para… safados! — protestei nervoso, franzindo a cara. — E nem deixo os outros se venderem! Se alguém mexer com meu irmão, enfio um gargalo de garrafa na barriga do cretino.

— Será?!

— Já que você protesta contra tais cretinos, por que se omite ao presenciar que eles façam maldades com indefesos?

— Não cabe a mim!

— Cabe, sim senhor! — fiquei nervoso. — Cabe a todos os adultos de bem desta fábrica, defender as crianças que correm riscos diante dos safados que não deveriam estar aqui!

— Quem não deveria estar aqui era vocês, as crianças!

— Já sei! Deveríamos estar na escola! Mas não estamos! Por quê? Porque precisamos ajudar nossos pais no sustento de nossa casa!

— Precisa uma ova! — negou ele, também com revolta. — Não é meio salário mínimo que paga a inocência perdida, neste lugar de demônios disfarçados de santos.

— Inocência perdida? — franzi o nariz.

— Você é esperto, garoto! Sabe muito bem do que estou falando! Pegue seu irmão, peça demissão dessa espelunca e vai ficar em sua casa. Vá brincar na rua! Volte pra escola! Até que ano você e seu irmão estudou? Quarto?

— O que importa? Você aconselha que eu tome meu irmão e suma daqui. E os outros?

— Que se dane os outros! Cuide de você e seu irmão!

— Isso é egoísmo de sua parte anjo! Penso em mim, mas não penso nos demais.

— Pra você ver! Não tenho parte anjo! Nem acredito neles! Que se dane os outros! Não posso fazer nada por eles! Nem por você eu posso! Então lhe dou conselhos, porque parou pra falar comigo. Se o Pedrinho vir falar comigo, o aconselharei também. Se o Carola vir, farei o mesmo…

— O Carola!? — estranhei. — Por quê?

— Ele também tem seu capeta molestador. Ou pensa que isto é privilégio só seus?

— Mas o Carola trabalha em sua equipe!

— Minha equipe não é formada só por mim!

— Só que ele, estando em sua equipe, você deve protege-lo!

 — Até tento. Só que estou falando em vão, porque nem ele e nem você aceitarão meu conselho.

— Aquele safado do Dorival continua abusando do Pedrinho. Eu sou só uma criança e não consigo fazer nada. Você é um adulto, sabe o que acontece e não faz nada. Por quê?

— Sei o que acontece com Pedrinho. Sei o que acontece com seu irmão… com você. Com Carola, Com Bentinho… E eu não faço nada, porque se for fazer, acabo fazendo o que você falou, enfio um pedaço de garrafa quebrada na barriga do filho da puta e aí vou pra cadeia. O que ganho com isso?

— Então se torna omisso.

— Como todos!

— Mesmo que inocentes sejam abusados.

— Depois, embora revolte, não é tão grave assim. O máximo que fazem é mexer nos genitais dos meninos, incentivando-os a serem… machinhos.

— Não é tão grave porque não é com seu filho! Você tem filhos?

— Você tem?

— Se eu pudesse te responder isso!

Ele se levantou e ao sair, disse:

— Você tem sorte em trabalhar neste setor. Já que não vai aceitar meu conselho, por que não traz seu irmão pra cá?

— Teria que trazer o meu irmão… e todos os meninos que você acabou de citar, além de precisar também colocar o tal alambrado que recomendou e ficarmos presos iguais macaquinhos de zoológico.

— Talvez o macaquinho de zoológico possa sobreviver a uma era de extinção — riu ele. — traduzindo, a extinção da pureza de nossas crianças. E só para que saiba, eu tenho filhos. Dois. O mais velho tem a sua idade.

E para demonstrar minha sorte naquele setor, no mesmo dia, José Carlos que trabalhava na área de classificação, por algum motivo ignorado resolveu se demitir, com isso o encarregado direto me convidou:

— Arthur, acho que você seja o mais indicado para passar para a classificação. É um serviço mais leve, só que exige atenção especial, pois se trata de separar o produto bom dos defeituosos. Você acha que dá conta deste trabalho?

Acenei que sim.

— Então é só mudar de lado.

Fiz o que ele mandou e então passaria para tal área, que de fato consistia na qualidade do produto final, além de registrar a produtividade dos funcionários comissionados da fábrica, o que seria uma responsabilidade a mais.

O encarregado já ia se afastando, quando resolvi perguntar:

— O senhor colocará outra criança em meu lugar?

— Com certeza. Vou providenciar.

— Poderia colocar o meu irmão?

— Seu irmão!? — pensou um pouco. — Ele já tem o trabalho dele na fábrica.

— É que eu queria trazer ele pra perto de mim. Ele é muito inocente e eu preciso olhar por ele. Se estiver perto fica mais fácil.

— Ele é muito pequeno e eu quero colocar aqui um menino maior, que tenha forças para carregar as gavetas de aço.

— Ele é igual a mim! — protestei. — E virá pro meu lugar!

— Você não carregava as gavetas pesadas, carregava?

— Não! Mas… meu irmão trabalha na produção e pessoas safadas mexem com ele. Eu não gosto!

— Se ele sair de lá, vou ter que pôr outro no lugar dele. Aí as pessoas mexerão com este outro.

— Se você colocar um menino maior de doze anos, não vão mexer com ele, pois eles só abusam dos pequenos.

— Eu preferia colocar o maior de doze anos aqui, pois teremos doze anos de força.

— Eu ajudo o meu irmão a carregar as gavetas.

— Você continua querendo tomar o meu lugar! Está bem! Vou ver o que faço.

Já no dia seguinte, Regis começara a trabalhar conosco, o que o deixara bastante animado, pois, além de separado de adultos, também era longe do calor infernal, além de ser um serviço onde se andava menos, com certeza cansando menos, pois a esteira de onde se recolhia as garrafas para a mesa, colocando-as para classificação estava a apenas um metro de distância.

E como os outros seis meninos eram maiores de doze anos de idade, por si mesmos, dispensaram meu maninho da atividade mais pesada: carregar as gavetas de aço. Me liberando automaticamente da tal promessa em ajuda-lo.


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