Através das barreiras do tempo escrita por Celso Innocente


Capítulo 24
Aliciamento de menores




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— Prefiro mais a putinha de sua mãe! — me esforcei para escapar. — Ou sua irmãzinha caçula, se você tiver!

Sei que minha frase foi muito forte e que qualquer pessoa me daria um forte murro na cara ao ouvi-la, mas ele nem ligou. Era mesmo mais do que um moleque, infantil demais.

 

Aliciamento de menores.

 

No mesmo dia, poucos minutos depois das oito horas da noite, eu já me depararia com a sequência deste drama, já conhecido pelas marcas do tempo em minha memória de cinquenta anos no futuro.

Em momento de folga em meu setor, desci até o trabalho de Regis, para tomar por alguns minutos seu lugar, enquanto ele tivesse um tempinho para… ir ao banheiro talvez, ou simplesmente ficar a toa.

Neste momento, o grupo onde Regis trabalhava até o dia anterior, parou por um momento para descanso.

Quando Pedrinho, que estava trabalhando apenas de bermuda curta, sem camisa, deixou sua pazinha de peneira sobre a mesa de ferro, Dorival, imitando o carrasco de Regis, abraçou o menino pequeno, mordeu seu peito, alegando:

— Que lindo! Você tem um físico perfeito!

Beijou o rosto do garoto, depois sua nuca, que apavorado não conseguia sequer se defender, sentindo as lágrimas brotarem dos olhos inocentes.

Eu não tinha nada com isso, mas meu sangue ferveu rapidamente dentro de minhas finas artérias, jogando as duas garrafas quentes sobre o cretino, gritando:

— Seu desgraçado do capeta! Pare de mexer com crianças!

Por sorte (dele), ele conseguiu se esquivar e as garrafas se despedaçaram no chão de concreto armado.

Dorival deixou o menino e grudou em meu pescoço, gritando:

— Eu vou arrancar sua calça e fazer uma marca com garrafa quente em sua bunda, seu moleque metido a valentão!

Todo mundo da fábrica, inclusive o encarregado, parou seus afazeres e correram para saber o que estava se passando por ali. Ao qual, enquanto Pedrinho teria sumido dali e Dorival me soltara, protestei chorando:

— Será que aqui tem algum homem adulto de bem, que possa defender as crianças de serem molestadas por estes… demônios?

O encarregado se infiltrou entre todo mundo e simplesmente me falou:

— Você está causando problemas demais. Suma daqui e volte amanhã cedo para conversar no escritório, pra ver o que eles farão com você.

Ninguém falou nada. Todos se afastaram para seus deveres e eu, ainda chorando, só disse alguma coisa para o maninho, depois lentamente me afastei para o pátio, tomei a bicicleta de papai, que ele nos emprestara para ir ao trabalho e me retirei.

As dez horas da noite, quando todos saíram para a rua, levantei-me da beira do muro externo da fábrica, onde estava sentado, tomei a bicicleta que teria deixado deitada no chão e assim que Regis chegou, retornamos para casa.

As nove horas da manhã seguinte, sozinho, já estava no escritório da fábrica, onde apenas uma moça da contabilidade me disse:

— Pode voltar normalmente no trabalho em seu horário. Está tudo certo. Seu dia não será descontado.

Nem respondi ao que ela me falou, voltando normalmente para casa, sabendo apenas de uma cruel verdade: todos eram omissos.

Durante o horário de trabalho, as crianças me elogiavam por minha valentia, ao qual tentei incentivar:

— Vocês não podem deixar estes crápulas mexerem com vocês! Eles fazem vocês de brinquedinhos! Isso é pecado.

— Eles não mexem muito com a gente! — negou Luís Augusto, de seus treze anos de idade. — Eles adoram mexer com meninos pequenos. Aqui na fábrica, no nosso horário tem três assim, você, seu irmão e Pedrinho.

Já os adultos, inclusive o molecão do Fabrício, me incentivavam:

— Este meu frangotinho é valentão! Não mexa com ele!

— Isso mesmo! — franzi o nariz. — Não mexa comigo! Muito menos com meu irmão! E menos ainda com Pedrinho, que é o menorzinho.

— É por isso que eu te amo! — riu ele. — Você tem muito cunhão!

— Engano seu. É exatamente do mesmo tamanho do que o de qualquer garoto de minha idade.

Pouco depois, Carlinhos, que trabalhava no escritório, chegou até meu setor, me chamou de lado, perguntando:

— O que aconteceu aqui ontem à noite?

— O que aconteceu é que nesta fábrica tem um bando de safados que querem fazer das crianças seus brinquedinhos.

— O que aconteceu com meu irmão?

— Quem?! — Estranhei, antes de me lembrar que de fato Pedrinho era seu irmão.

— O que aconteceu com Pedrinho? Ele é meu irmão.

— Se eu fosse você eu tirava ele dessa fábrica! Ele não tem nem dez anos de idade! O lugar dele não é aqui no meio de pedófilos. O lugar dele é na escola e quando não, brincar como criança que ele é.

— Ele quer trabalhar! Não fui eu quem mandou. O que aconteceu com ele?

— O que aconteceu com ele, é o mesmo que acontece comigo e meu irmão. E outros garotos que eu nem saiba. Tire ele desta fábrica!

— E você? — ironizou o rapaz. — Também vai sair?

— Preciso defender meu irmão.

— Pois é! O meu também vai ficar! Obrigado por você ter defendido ele.

— Infelizmente eu não estarei por perto outras vezes que ele precisar… e mais infelizmente ainda… os outros adultos acharão engraçado ouvirem crápulas chamando-o de… bonitinho.

— Melhor do que chama-lo de… feinho! — riu o rapaz.

— Pois eu prefiro dispensar tal elogio.

É®Ê

            Uma hora após o jantar, como fazia sempre, Ricardo, o encarregado geral aparecera na fábrica para visita.

            Passou por dentro da área de produção, conversou assuntos quaisquer com alguns funcionários, depois subiu até o setor de classificação, me convidando para seguir com ele até uma área deserta.

            — O que aconteceu ontem à noite? — perguntou-me.

            — Eu atirei duas garrafas quentes contra uma pessoa — respondi secamente. — Sorte dele que não acertei.

            — O que esta pessoa fez pra você?

            — Esta? Pra mim? Nada! — dei de ombros. — Fez para um menininho pequeno.

            — Então tal atitude de revidar caberia a tal menininho — ironizou o chefe.

            — Eles têm medo! Até meu irmão tem!

            — E você não tem?

            — Tenho sim! Tenho medo das consequências. Esta por exemplo.

            — Você sabe que, você é meu primo. Quer dizer, seu pai é meu verdadeiro primo. Seu vovô é meu tio. Meu pai é tio de seu pai.

            — Sei disso!

            — Pois é. Seu pai me pediu para dar serviço a você e seu irmão aqui na fábrica. Eu não quero precisar dispensar vocês dois. Por isso, pra nosso bem, não crie problemas com os demais funcionários da fábrica.

            — O senhor já conversou com… Dorival?

            — Pelo que eu saiba, foi você quem o… agrediu?

            — O senhor acha certo ele morder a nuca ou o peito do… Pedrinho, por exemplo?

            — Ele só estava brincando! — ironizou o homem.

            — Isso se chama aliciamento infantil.

— Você é um cara culto?

Balancei os ombros como quem diz “isso não importa” e prossegui:

— Em um tempo no futuro, brincadeiras assim o levaria para a cadeia, sem chance de sair.

            — Para de exagerar, menino. É apenas brincadeira dele.

            — O Fabrício deixou meu irmão completamente nu no meio de todo mundo.

            — O Fabrício é mais criança do que você!

            — Peça pra eles pararem com esse tipo de brincadeira com crianças! Criança não é brinquedinho de safados!

            — Façamos de conta que nada aconteceu ontem à noite. Está bem? Volte ao trabalho.

            Ricardo já se afastava, quando ainda o chamei e ele se voltou para mim, ao qual, nervoso lhe disse:

            — Se ele tornar a brincar assim, comigo, ou com qualquer criança perto de mim, eu faço o mesmo que fiz ontem. Então o senhor poderá me mandar embora junto com meu irmão. Ao meu pai eu explico a razão.

            — Você é mesmo valentinho, menino — riu ele, voltando para o interior da área de produção.

É®Ê

Na tarde de domingo, só de calça-curta, estava sozinho na rua empinando um papagaio de papel (ou pipa, como diz as crianças do futuro), quando de repente parou diante de mim, em sua carroça puxada pela negra Princesa, o casal de vovôs adotivos.

— Olá, Arthur — Chamou-me o senhor Manoel. — Estávamos com saudades e passamos pra dizer um oi.

— Oi, senhor Manoel! Oi, dona Marcelina — fiquei feliz de verdade. — Que bom que os senhores vieram!

Amarrei a latinha de linha em pequena árvore e subi em sua carroça, dando um abraço saudoso nos dois.

— Eu também estava com saudades. Depois que mudamos de trabalho não vimos mais os senhores.

— A gente continua morando no mesmo lugar — gracejou o homem.

— É verdade — concordei. — A gente é que fica vagabundo. Prometo que irei visita-los sempre.  

— E o Regis? — perguntou-me dona Marcelina.

— Aquele safadinho está lá dentro. Espere.

Saltei da carroça e avistando o maninho brincando sozinho de caminhãozinho no quintal, lhe chamei:

— Regis, olha quem apareceu aqui!

Ele olhou para nós e de onde estava simplesmente falou:

— Oi, dona Marcelina e senhor Manoel! Tudo bom?

— Tudo bom, coisa nenhuma, moleque! — reclamei. — Venha cá cumprimentar direito quem veio ver você.

Ele abandonou seu brinquedo e enquanto se aproximava, convidei nossos visitantes:

— Desça um pouquinho. Vamos entrar pra conhecer minha mãe e meu avô verdadeiro. Ele sempre nos visita aos domingos.

Regis acabou de chegar, cumprimentando:

— Oi!

— A gente estava com saudades de vocês — alegou dona Marcelina.

— Eu também estava com saudades — alegou ele. — Eu vou na casa deles, Arthur?

— Se você quiser! — fui incisivo. — Creio que eles aceitarão!

— Eu posso ir, dona Marcelina?

— Meu filho! — Se emocionou ela. — É a maior felicidade que você possa dar a esta vovó.

— Se quiser ir conosco é só embarcar em nossa carruagem mágica — entusiasmou-se o senhor Manoel.

Em menos de um segundo o maninho já estava no meio do casal de idosos, perfazendo assim três pessoas felizes.

— Você não irá conosco, Arthur? — convidou-me o senhor Manoel.

— Não agora! — neguei. — Estou sujo, sem camisa e com a pipa lá nos céus.

— A carruagem mágica espera você se aprontar.

— Irei depois! Buscar o maninho!

— Sei vir sozinho! — protestou Regis.

— Mesmo assim irei busca-lo.

— Você avisa a mãe que eu fui na casa de dona Marcelina?

— Claro! — ri. — A não ser que eu queira ver você tomar chá de varinha verde.

É®Ê

Início da semana seguinte.

Agora nosso turno de trabalho se invertia, iniciando nossas atividades as cinco horas da manhã. Vê lá se isso é hora de criança de onze anos de idade começar a trabalhar! Deixa o estatuto da criança e do adolescente saber disso[1]!

Tanto para mim quanto para Regis, tudo bem, a gente já estava acostumado a começar às vezes até antes desse horário no emprego anterior. E nós dois até preferíamos este horário por vários motivos: era mais fresco para o trabalho, principalmente para Regis, que continuava no setor mais quente da fábrica; teríamos toda a parte da tarde e noite livres em casa para podermos fazer aquilo que a criança mais gosta, brincar na rua com sua turminha em início de noite; dava menos preguiça, pois no horário da tarde a gente ficava triste ao saber que os demais companheiros já estariam com a missão cumprida, enquanto a gente ainda estava iniciando…

É claro que os aliciadores de menores também mudaram de horário conosco e mesmo que não mudassem, na outra equipe também teria os seus próprios.

E mesmo depois de me mostrar como valente e meus constantes protestos, parecendo que pedia socorros a adultos que se mantinham omissos, talvez como a quem diz “não é comigo, não é problema meu”.

Tanto eu, quanto Regis e principalmente Pedrinho, por sermos os mais novos (embora existisse outros de nossa faixa etária, como meu quase vizinho José Pereira) continuávamos sofrendo o mesmo tipo de brincadeiras ridículas.

 

[1] No Brasil o estatuto que rege os direitos da criança e do adolescente só seria então promulgado em 13 de julho de 1990, com a lei 8069. Tal estatuto rege que até aos 12 anos de idade o cidadão é considerado criança e entre 12 e 18 anos, considerado adolescente. Antes desta data o que valia era o código de menores assinado em 12 de Outubro de 1927 pelo presidente Washington Luís. Porém, embora estivéssemos então na era do regime militar, ninguém respeitava a criança como sendo cidadã.


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