Culpa e Perdão: O pior de uma mente apaixonada escrita por NightlyPanda


Capítulo 7
Capítulo 7 - Caminhos e Mentes Sintonizados




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“E as notícias mais relevantes são: Após o derramamento de sangue no velho posto da saída sul da cidade e a prisão do suposto responsável, a polícia realiza, agora de manhã, um mandato de busca e apreensão na casa de Lars Dorsey, preso em flagrante no crime e principal suspeito. Além de CEO da ACS, Dorsey é também o homem de confiança de Travis Haggeman, presidente da empresa. A polícia trabalha com a possibilidade de ser Dorsey o responsável pelos outros sete assassinatos relacionados às empresas...”

Olhei para o relógio, já eram sete e quinze. Eu tinha esquecido que nesse sábado a biblioteca ia receber o evento do lançamento de um livro de literatura que eu mal sabia o nome, muito menos quem era o autor. Ainda bem que já tinha programado esse despertador, se não ia perder o evento. Não que eu fosse pela autonomia da minha vontade, mas Ágatha tinha me posto para trabalhar na cerimônia.

Rastejei meu corpo até o banheiro e me preparei para meu banho. Eu tinha que estar na biblioteca em uma hora, não ia dar tempo nem de passar no Café da esquina para comer algo. “É bom que tenha uma mesa de lanches, no mínimo”, refletia sobre isso enquanto saía do banho. Peguei meu crachá, minha pasta e o celular e fui para a rua. Era sábado de manhã, na minha caminhada até a biblioteca eu só me deparei com pessoas indo para academia, velhinhos sentados nas mesas do lado de fora das padarias e algumas pessoas passando pelas ciclovias. O tempo estava ameno, um céu claro, algumas nuvens passeando e um vento que parecia me acompanhar. O caminho até a biblioteca não era um a longa jornada, mas era um tempo que me agradava passar comigo mesmo sem me preocupar com nada.

— Ah, Hugo, ainda bem que você está aqui. Não tão cedo como eu pensava que estaria, mas já está bom de não ter esquecido.

— Bom dia para você também Ágatha.

— Não temos tempo para isso. Eu preciso que você verifique se o microfone está conectado na caixa de som e se tudo está funcionando. Também tem que organizar os painéis com a imagem do autor segurando o livro, que ficou horrorosa, mas não sou eu que vou pagar esse mico em público e nem é o meu dinheiro que está sendo gasto com esse mau gosto todo, então ce n'est pas mon problème,— No começo eu era pego de surpreso pelas frases de efeito que a Ágatha soltava em outros idiomas, mas com o tempo já tinha me acostumado com seu talento poliglota de enfatizar suas opiniões, o que era se tornava hilário, por sinal. - pela entrada e até o segundo andar. Tem também que arrumar a mesa no salão dourado do segundo andar, onde vai ser a exposição do livro e a sessão de autógrafos, confere se os copos de água estão lá e se está tudo pronto.

— Ágatha, só por curiosidade, você saberia me dizer...

— Não! Não faço ideia de quem é o lunático do autor, muito menos o nome do livro. Olhe – Disse ela pegando um panfleto da mão de um dos funcionários. – De Miguel Sullivan, Contos e Encontros sobre o Amanhecer. Pode decorar, porque eu já esqueci. Nunca vi tanta cafonice por metro quadrado. – E saiu andando gritando o nome de um e de outro funcionário pelos salões da biblioteca.

Ela não era esse ser amargo e arrogante que o primeiro contato pudesse refletir, o fato é que, se desse para sintetizar Ágatha em uma única palavra, essa seria, perfeitamente, sinceridade. Para o bem ou para o mal. Ela não era o tipo de pessoa de muitas liberdades com qualquer um, por isso não chegaria dizendo tudo que acha sobre isso ou aquilo ou até mesmo sobre a pessoa no primeiro contato, ainda mais porque ela prezava pela diplomacia e profissionalismo nas relações interpessoais, mas também não se conteria em demonstrar todo o sarcasmo que suas expressões carregavam, mesmo que para decifrá-las e percebê-lo, era preciso anos de prática.

Pus me logo a fazer tudo o que ela tinha mandado. Comecei fazendo um caminho com os painéis do autor e do livro, da entrada da biblioteca até o salão dourado. Ágatha estava certa, eram de um mau gosto lamentável. “Ce n'est pas mon problème”, recordei da voz dela em minha cabeça enquanto arrumava aqueles painéis, os risos que vieram após essa lembrança foram incontroláveis.

Estava a conectar o microfone e o ajustar na caixa de som, quando percebi uma moça desnorteada no meio do salão, tropeçando de um lado para o outro sem saber o que fazer. Ela me viu e veio andando em minha direção.

— Bom dia senhor, desculpe incomodá-lo. Mas eu vou fazer a cobertura desse evento para o Portal de Notícias da Escola de Literatura da cidade e eu não consegui me informar ainda direito sobre como vai ser o evento. Eu estou certa de que a direção da Escola de Literatura mandou os detalhes da minha presença, será que tenho que pegar algum crachá de identificação? Tem algum lugar reservado aos jornalistas? O evento está no horário para começar às nove ou terá algum atraso? – Pelos céus, essa mulher era uma metralhadora automática de palavras, ela disse uma centena de palavras sem nem tomar fôlego, eu senti como se fosse a mim que ela estava entrevistando. – Ah e o meu nome é Helga.

— Eu... – Olhei para trás e vi que Ágatha apontou subindo as escadas. Assim que ela me viu conversando com essa jornalista, ela fez um sinal de não cruzando os dois braços e voltou escada à baixo sem nem mesmo se virar. – Eu vou me certificar na secretaria sobre a identificação e o lugar dos jornalistas no salão. O evento começa as nove, mas o autor ainda não chegou. Pode ficar à vontade aqui, que eu já volto. – A contornei e fui me esquivando para a secretaria, no térreo. Assim que dei uma distância de uns seis metros dela, já estava a chegar na escada, ouvi sua voz cortando o salão.

— Senhor, qual o seu nome?

— Me chamo Hugo. – Respondi e me virei correndo para a escada. Fui até o térreo para saber de algo sobre o que ela tinha me perguntado. Cheguei na secretaria e perguntei para o rapaz que estava no atendimento se ele sabia de algo sobre os crachás de identificação. Ele me mostrou uma caixa com um monte e uma planilha com os nomes. Procurei pelo nome dela na lista e no meio daqueles crachás.

— Helga, esse mesmo. – Peguei o crachá e a lista e subi para o salão dourado. Quando cheguei no primeiro andar, vi Ágatha e fui perguntar sobre os jornalistas e aonde eles ficariam no salão.

— Eu não faço ideia. Essa garota veio falando um milhão de palavras por segundo, eu quase surtei ouvindo. Nem sabia que esse evento iria ter jornalistas de verdade. Arranja um canto para eles e age como se já fosse o definido.

Subi para o segundo andar para entregar o crachá para ela. Enquanto subia as escadas, olhei para o relógio, faltavam cinco minutos para as nove e nada o autor. Lá no salão dourado, vi a moça sendo ignorada por todos que passavam. Chegava a ser engraçado como ela zig-zagueava de um lado para ou outro procurando com quem falar.

— Helga! – Acho que antes mesmo de terminar de chamar seu nome ela já vinha em minha direção atirando suas palavras ao ar. Andei até ela com o crachá em mãos e comecei a falar sem dar tempo para ela responder. – Aqui o seu crachá, os jornalistas vão ficar ali, no canto à esquerda da mesa onde vai ficar o autor. Eu recebi a informação de que ele está chegando – “Mentiroso” pensei comigo mesmo. – então você já pode ir se preparando para fazer suas anotações e funções jornalísticas. Tem essa lista com seu nome aqui, você assina e assim que vir outro jornalista chegando – “Se é que vai vir mais algum”, eu estava ficando igual a Ágatha. – você entrega para ele assinar e diz para pegar o crachá lá na secretaria, no térreo.

Entreguei tudo para ela e sai dali antes que ela pudesse perguntar mais alguma coisa. Deu nove horas e percebi uma enorme quantidade de pessoas subindo para o salão dourado e se organizando em seus lugares. Por incrível que pareça, haviam mais jornalistas. Olhei para Helga e vi que ela estava extremamente contente em ter o que fazer passando as informações que eu havia lhe dito para eles. Ela até os acompanhou até o térreo. Já haviam se passados dez minutos, quando vi Ágatha apontando na escada com uma comitiva de homens de terno. O autor havia chegado. Todos levantaram para ovacioná-lo e o cumprimentar. A medida que a mesa onde ele iria expor o seu livro foi se formando, todos foram sentando em seus lugares. Vi no canto onde tinha definido como o lugar dos jornalistas, Helga com seu computador a mãos pronta para fazer todas anotações. A animação dela era cativante.

A exposição começou e enquanto o autor falava sobre sua vida, o que o levou a escrever aquele livro, os contos nele e tudo mais, eu peguei meu celular para passar o tempo. Resolvi mandar uma mensagem para ele.

“Bom dia ^_~ Tudo bem?”

No meio tempo que esperava uma resposta, peguei um exemplar do livro para folear e me inteirar sobre o que era aquilo tudo que estava acontecendo. Li a contracapa do livro, “um chamado à infância, do lúdico ao cômico, os devaneios de um escritor que conta a grandiosidade dos pequenos momentos que a vida nos dispõe.”

Eu estava me sentindo a encarnação do espirito de Ágatha, mas eu precisava concordar, nunca havia lido tanta cafonice na vida, um mau gosto que chegava a ser hilário.

Meu celular vibrara e eu dei graças aos céus por poder ler outra coisa para me esquecer daquela descrição de contracapa mais brega do mundo.

“Acordar e ler um bom dia seu com certeza faz o dia de qualquer pessoa melhor! Eu estou exausto, o trabalho ontem foi muito puxado. Mas estou bem, bem melhor agora. E você? O que está fazendo?”

“Eu estou trabalhando. Tá tendo um evento de lançamento de um livro de contos aqui na biblioteca e eu fui escalado para ficar aqui #_# Deus tenha piedade da minha pobre alma.”

Continuei foleando o livro. Fui para o índice ver o nome dos contos. Quando se pensa que já tinha alcançado o limite do chulo, esse tal de Miguel realmente tem um dom para ser cafona. Cerejas da alvorada; A luz que não tinha no meu quarto; O não-namorado de Amanda; O riso que chorava, “Se há alguma divindade presenciando esse momento, ela deve estar se contorcendo de tanto rir de algo tão brega assim... Que chocho isso”. Segurei o riso tão forte que tive que fingir um engasgo para disfarçar. O celular tinha vibrado novamente.

“Não está aproveitando o evento? Está chato? Eu posso ir aí fazer ele melhor... ^_<”

“Isso aqui tá uma convenção de gente que já desistiu da vida e escreve coisas bregas e ridículas para roubar dinheiro dos pais das crianças que precisam comprar isso para as aulas de literatura. Vou te mandar o nome do livro e de alguns capítulos, e da contracapa também. Tente não morrer com tanto mau gosto.”

Eu não resisti com a resposta dele, era um gif de um gatinho revirando os olhos. Eu tentei disfarçar bebendo água. Recebi uma mensagem, mas não era dele.

“Meu querido, me diz qual o seu distúrbio para conseguir rir numa sessão de depressão coletiva dessas? Tá todo mundo ligando mais para você rindo olhando o livro que para o autor lá na frente. Até o infeliz já percebeu isso.”

Olhei para Ágatha e vi ela fazendo uma cara de indagação para mim. Realmente, todos estavam me encarando. Eu estava sentado no lado direito da mesa, na frente de todos. Deixei o livro aberto no meu colo e coloquei o celular no meio dele. Acho que todos tiveram a ideia de que eu estava rindo do livro. Tive essa certeza quando o autor olhou para mim e disse a todos que “assim como o jovem que está lendo o livro ali demonstrou, os contos não são todos baseados num lirismo lúdico, mas também em um humor irresistível para todas as pessoas”. Eu olhei desorientado para ele e fechei o livro rápido. Não foi a melhor das atitudes.

Ao fim da exposição, todos que compraram o livro se organizaram para ganharem um autógrafo e conversarem um pouco com o autor. Eu aproveitei a confusão que se instaurou no salão e fui me despistando até o depósito. Peguei meu celular para continuar conversando com Nolan, eu ainda tinha algum tempo até ter que voltar para o salão.

“Eu confesso que eu quase destruí toda a divulgação do livro por causa desse gif >—< Como eu só quero fugir daqui e ir para casa.”

“Quais são os seus planos para mais tarde? A gente podia marcar algo... Prometo que faço compensar todo o tédio que você tá tendo aí agora!”

“Olhe senhor, eu não tenho nada planejado e eu acharia bem bacana sair com você de novo.”

“Eu te busco na sua casa por volta de umas dezoito então. Sua noite vai ser tão incrível que você vai até esquecer que esteve trabalhando nesse lançamento.”

“Okey Dokey ^_~”

Sentei em cima de uma caixa no canto do depósito e fiquei pensando sobre sair à noite com ele. Na verdade, fiquei pensando em toda essa situação de me envolver com ele. Despertava um sentimento de vontade em mim que eu não sabia que era possível sentir. Eu não me lembrava de pensar em alguém com um sorriso no rosto assim.

Saí do depósito e fui voltar para o salão, no caminho, um dos funcionários da biblioteca me parou e disse que Ágatha estava surtando a me procurar pela biblioteca. Confirmei o recado recebido e voltei para o salão. Ainda estavam todos na fila de autógrafo. Uma mão me puxou pelo ombro.

— Eu vou ter um troço aqui se esse evento não acabar, e para melhorar você ainda me some. Eu nem vou me dar ao luxo de te perguntar onde estava, estou abstraindo tudo hoje. Mas corre e pede para servirem as mesas com os lanches para ver se esse povo desempaca de pedir autógrafo e vai comer. Porque aquela jornalista que está sobre efeito de sérias drogas já veio me perguntar umas mil vezes quando que eles vão ter tempo entrevistar o autor, se já não bastasse o tanto de pergunta que ela fez para ele na mesa. Dá seu jeito se liberar o lanche e de por os dois perto para conversarem enquanto todos comem, que depois vai todo mundo embora.

— Sim comandante. – Bati em continência para ela e saí. Fui até a cozinha da biblioteca e me certifiquei de pedir a alguns funcionários para que me ajudassem a subir com a comida do lanche e a preparar as mesas. Assim que estava tudo pronto, pedi para uma das meninas que me ajudou para pegar o microfone e avisar a todos que estava servido o lanche. Foi um efeito dominó. Primeiro umas três pessoas foram comer e, logo mais, todos estavam atacando as mesas com a comida.  Vi Helga no meio da multidão e a chamei, disse que o autor estaria recebendo os jornalistas para entrevista-lo agora e eles foram que nem um bando de abutres sobre uma carniça no encostamento da estrada. Pobre homem, nem teria tempo de comer com o tanto de pergunta que essa menina o faria.

Após servir a comida, pouco a pouco as pessoas foram se despedindo e indo embora. Eu e Ágatha tivemos que ir acompanhando o autor e Helga conversando até a saída, como pastores que guiam suas ovelhas pelo pasto. Toda vez que um deles parava de andar, Ágatha batia o pé no chão e seguia andando ao lado deles.

— Quem quer que tenha aceitado essa ideia inútil de fazer esse lançamento na biblioteca, está demitido. – Disse Ágatha fechando as portas da biblioteca por dentro e se escorando nas mesmas até sentar completamente no chão.

— Err.... eu acho que foi sua mesmo.

— Ache alguém para por a culpa e dê o aviso de demissão então. – Disse ela rindo sarcasticamente. – Ah, se essa biblioteca não fosse filantrópica. Pelo menos esse dinheiro arrecadado vai para alguns projetos de alfabetização e leitura, o esforço valeu a pena. – Mesmo parecendo a encarnação de Satã, Ágatha tinha uma alma angelical e cuidadosa. – E mudando de assunto, vai almoçar aonde Hugo?

— A eu não sei, quer ir almoçar em algum lugar?

— Vamos naquela churrascaria que abriu? Depois desse dia de hoje eu mereço comer até explodir.

— Vamos sim, vou só lá na sala pegar minha pasta e já volto.

— Me encontra na garagem, que eu já vou indo pro carro. Certifica de que está tudo fechado e apagado. Agora só volto aqui segunda.

Fui até a sala dos funcionários e peguei minha pasta. Saindo da sala, quando já ia apagar as luzes, vi que tinha uma cópia do livro, que fora lançado hoje, em cima da mesa. Aquele livro já tinha me causado embaraços demais por um dia. Conferi todas as portas e luzes, o que me levou uma meia hora, porque a biblioteca é enorme. Cheguei na garagem e entrei no carro de Ágatha.

Estacionamos na churrascaria. Saindo do carro, fomos até a entrada, pegamos nossas comandas e fomos procurar um lugar para sentar.

— Senhora, senhor. – Disse um garçom colocando os pratos à mesa. – Vocês querem pedir algo para beber?

— Traga sua garrafa de vinho com o maior teor alcóolico, por favor. E para você Hugo? Estou brincando, ele vai me acompanhar no vinho. Duas taças, por favor.

Encarei ela com a maior cara de julgamento e não poupei minha fala de repressão.

— Meu bem, quem você acha que vai voltar dirigindo? Vai beber por quê?

— Minha mãe morreu biruta em um asilo e acho que você não é a encarnação dela. Eu vou comer tanta carne nesse rodízio que não vou nem sentir o álcool, e também, é um pulo até a minha casa e até a sua também. Fica tranquilo e aproveita, que hoje é por minha conta. Não se acostuma que isso é raro. Acho que aquela louca falando mil palavras por segundo tirou meu raciocínio do lugar.

Se eu não soubesse que a mãe dela era viva, ficaria extremamente preocupado agora. Esse humor desvirtuado, não é qualquer ser humano que consegue manter por uma vida. O almoço correu tranquilo, comemos tanta carne que eu mal sabia diferenciar mais o sabor de outra coisa. Ao fim do almoço, pedimos dois cheesecakes de frutas vermelhas de sobremesas para finalizar.

— Hugo – Olhou para mim enquanto revirava o creme de sua sobremesa no prato. – Eu andei percebendo. Desde o dia que eu fui na sua casa, de lá para cá já tem algum tempo que você está diferente. Eu não me lembro de ter te visto sorrindo aleatoriamente desde que nos conhecemos e isso é uma cena que se repete quando te vejo pela biblioteca. Alguma chance de você estar, digamos, mais disposto com a vida?

— Nada escapa aos seus olhos não é, Ágatha.

— Você, melhor que ninguém, sabe do que alguém de virgem é capaz.

— Touché. - Disse levantando a taça a ela. – Sim Ágatha, mais disposto, mais motivado, quem sabe até mais vivo um pouco.

Ela me lançou aquele gélido e inorgânico olhar de esfinge que ela faz quando quer entrar na sua alma sem deixar qualquer rastro e bisbilhotar por todos seus segredos. De alguma forma, era quase impositivo responder àquele olhar.

— Eu tinha lhe dito que talvez existisse a possibilidade de ter um sentimento em mim por alguém. Pois bem, se é o que tua curiosidade quer saber, esse sentimento é bem mais que uma possibilidade.

— Ora, ora... bom, eu espero realmente que seja algo que esteja te fazendo feliz. – A expressão amórfica que ela mantinha se transformou em algo conivente com meus sentimentos. O espírito cuidador de Ágatha era realmente algo reluzente. – Você merece uma estória feliz Hugo. Merece uma vida mais terna e suaves. E eu sinto que você está no caminho para tê-la.

Terminando nossa refeição, fomos de volta ao carro no estacionamento e Ágatha me levou até o meu flat. Fiquei impressionado enquanto ela dirigia, nem parecia que ela tinha bebido um litro de vinho. Finalmente em casa, me atirei em minha cama. Estava exausto. Fui ver as horas e já eram vinte para as dezesseis, eu tinha pouco mais de duas horas para meu encontro com Nolan. Uma parte enorme de mim queria descansar e dormir, mas eu sabia que, se deitasse ali, não acordaria hoje.

Fiquei estirada na cama sem força alguma para levantar, mas me obrigando a ficar de olhos abertos para não dormir. Eu queria começar a me arrumar, mas me tinha estático, deitado, olhando para o nada, como se a gravidade fosse tão forte que eu sentisse ela me puxando para baixo e não me deixando levantar. Fiquei assim um bom tempo, acho que uma meia hora. Só levantei quando um vento gelado entrou pela minha janela e me deu energia de pular para fora da cama.

Comecei a me arrumar e fui até meu guarda-roupas separar o que vestiria, o dia não estava tão frio, mas começara a esfriar à medida que o sol ia se pondo. Separei uma camisa listrada de manga e um moletom preto com uma estampa de um rosto de um panda bem psicodélico, planejei usar de modo a deixa a gola e a manga da camisa listrada aparecendo por fora do moletom. Peguei uma calça branca e minha bota de cano preta, eu estava um meio termo entre disco e boliche anos oitenta. Fui tomar meu banho e fiz cada ação que envolveu o banho o mais em câmera lenta possível, eu não resistia a um bom banho quente, era impossível ser rápido. De banho tomado e roupa trocada, arrumei meu cabelo, passei um perfume e estava pronto. E ainda faltava uma hora e dez para ele chegar. Olhei para minha cama e resisti à tentação.

Fui até minha escrivaninha e liguei o computador. Abri a internet e fui fazer qualquer coisa para passa o tempo. Nem dei muita atenção à página de notícias que abria no navegador. Fui ler meu horóscopo e ele dizia que o dia envolvia boas energias para atividades a dois, o que me deixou feliz. Não que eu fosse o mais crente do mundo em astrologia e coisa e tal, mas eu gostava de ler esporadicamente e deixar uma leve dúvida ao ar sobre a materialidade dos efeitos dos astros na vida das pessoas. Um certo misticismo e saber alternativo davam um pouco de graça a chatice e monotonia da realidade.

Continuei minha navegação pela internet. Nada muito promissor. Lembrei então de algo que me entreteria significativamente até Nolan chegar: assistir vines. Me agradava bem ver esses vídeos, principalmente os de idosos rabugentos e de crianças estranhas. Chegava a perder a noção do tempo assistindo, e havia tanto tempo que eu não assistia a algum vine, devia manter esse hábito mais frequente, ajudava a fazer os dias passarem mais rápido enquanto eu me entregava ao ostracismo do nada.

Dito e feito, enquanto assistia aos vídeos na internet, uma mensagem de Nolan falando que estava saindo de casa chegou. Desliguei o computador e fui me certificar de que estava pronto. O nervosismo e a ansiedade começavam a me pinicar. Andei até o banheiro para me olhar no espelho, escovei os dentes de novo para dar uma certeza, certifiquei-me de estar tudo certo e desci para a portaria do prédio. No hall de entrada, fiquei sentado em um sofá esperando ele chegar.

“Estou para aqui em frente.”

  Saí da portaria e vi ele parado em seu carro em frente ao prédio. Descendo a escadaria, percebi que a noite seria muito fria.

— Boa noite! – Disse entrando e sentando, completamente sem o menor jeito, no carro.

Ele ficou me esperando sentar por completo no banco e puxou meu pescoço. Eu ainda não estava tão acostumando assim com essa ideia de beijar alguém, mas era irresistível quando se tratava dele.

— Agora sim, boa noite! – Completou afastando seus lábios e rindo. – Você está tão lindo, eu achei que sairíamos casualmente, eu me arrumei tão simples e você aí, deslumbrante.

Ele era um verdadeiro Don Juan, estava impecável da cabeça aos pés, num charme e carisma envolvente, seduzindo em cada palavra. Esse homem não fazia sentido.

— Você tá à fim de ir em algum lugar específico?

— Eu não pensei em nada Nolan, aonde você quiser ir, está ótimo.

— Então eu sei exatamente aonde vamos, especialmente por causa desse seu look. – Falou rindo e foi logo ligando o carro. No caminho, fomos conversando sobre trivialidade quaisquer da vida. Eu sentia como se qualquer assunto que falasse com ele, tinha uma conexão ótima e não ficaria chato nunca. Ele realmente ouvia com atenção e o falar dele era cativante, aquela voz grave, levemente rouca, era magnético e apaixonante só de estar ao lado.

Eu olhei para fora da janela e estávamos chegando perto do shopping na orla do lago da cidade. Era um lugar lindo, eu só tinha vindo no lago há muitos anos, quando eu era muito novo, nem me lembrava direito. Entramos no estacionamento ao fundo do shopping. Quando saí do carro, estremeci um pouco, pois estava ventando muito. Ele percebeu que eu estava tremendo um pouco e veio me abraçar de lado. Fomos andando assim até a entrada do shopping na parte detrás. Eu fiquei um pouco sem reação, não por estar abraçado com ele em público, mas eu nunca tinha dito esse tipo de demonstração de afeto. Ele percebeu que eu estava um pouco sem jeito e beijou minha cabeça de lado.

— Nós vamos ao cinema?

— Não senhor! Estamos indo num lugar mais legal ainda. Espera um pouco e você vai ver Hugo.

Descemos para o subsolo pela escada rolante, eu não acreditei quando vi. Estava de frente para a pista de patinação de salão.

— Isso é sério? – Eu soltei sem crer. – Eu... eu não levo o menor jeito para isso, eu vou cair com certeza.

— Eu te seguro. – Disse ele piscando para mim. – Eu tinha lembrado desse lugar, achei que seria bacana te trazer aqui. Mas se você não quiser, nós vamos a outro lugar.

— Não, não é isso. Não tem problema nenhum, eu só não estava esperando por isso. Mas é uma ótima ideia. E eu super vou entender se você não quiser mais me ver depois do show de horrores que vai ser eu todo destrambelhado patinando, sério.

— Deixa de ser bobo Hugo, a gente vai junto! Vou estar lá contigo.

Fomos até a entrada, só que tinha uma fila enorme para entrar. Ele olhou no relógio e de volta para a fila.

— Você quer ir comer alguma coisa antes? Porque ninguém merece essa fila, aí a gente vai na praça de alimentação e volta para aqui.

— Pode ser. – Disse fazendo dois joinhas com os dedões, com um olho fechado. Eu mesmo não entendi porque fiz aquilo, mas me senti bem sendo meigo com ele.

Chegando na praça de alimentação, ele perguntou o que queria comer. Eu disse que o que ele quisesse, porque no fundo eu era bem fiel ao que comer em praças de alimentação, e não queria que ele ficasse assustado com isso. Mas ele forçou muito para que eu dissesse o que queria, então eu falei que eu adorava comer nuggets e a cara de normalidade que ele fez foi mais constrangedora para mim do que se ele achasse aquilo um absurdo. A fila estava grande, o shopping estava tão cheio naquele sábado à noite.

— Hugo, tá quase na nossa vez de pedir, você quer já ir vendo se acha uma mesa para gente, porque tá tão cheio aqui. Eu vou atrás de você assim que pegar o pedido.

— Mas eu tenho que pagar também.

— Nada disso, hoje é por minha conta.

—Não, não, não Nolan. Não acho isso justo. Você já fica me buscando de carro e gastando gasolina, eu vou pagar sim.

E esse bate e volta de nãos durou até a moça do caixa forçar a garganta para percebermos que era nossa vez de pedir. Ele fez o pedido e quando eu fui entregar meu cartão, minha mão foi bloqueada igual um passe de vôlei. Eu olhei sério para ele, mas sem efeito algum. Fiz uma cara de “isso não vai ficar assim não”, mas ele pegou meu queixo e balançou e eu me senti igual a uma criança derrotada na birra. Saí então para procurar uma mesa enquanto ele esperava o pedido ficar pronto.

Vi uma mesa na área da baia de vidro que dava vista para o lago e fui andando até ela. No caminho até a mesa, uma mão me encostou no ombro.

— Hugo?

Eu me virei para ver quem era, mas a sensação daquela mão no meu ombro me energizou de uma forma estranha.

— Coordenador Roger?

— Pode me chamar só de Roger, não estamos na faculdade mais. O que você faz aqui? Está tudo bem?

— Eu... eu.... – Eu não sabia o porque estava sem reação, mas a presença daquele homem não me trazia boas lembranças. Eu não imaginava ver ele aqui. – Eu estou bem. – Continuei dessintonizado, de certo modo, ele ali trazia aquele Hugo antes de conhecer o Nolan de volta a mim, e eu não gostava daquela sensação. Ele continuou com a mão em meu ombro.

— Está tudo bem aqui Hugo?

— Nolan?


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