Culpa e Perdão: O pior de uma mente apaixonada escrita por NightlyPanda


Capítulo 5
Capítulo 5 - Caminhos e Mentes Sentidos




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Aquele olhar, aquele toque macio sobre meu rosto molhado. Uma voz miúda no meio da calmaria parecia despertar dentro de mim. Eu fiquei encarando seus olhos e ao fechar os meus, os dedos que passeavam pela minha pele guiavam qualquer sensação que surgia em mim.

O calor do contato caminhava pelo meu rosto. Primeiro, pelas costas da mão, minha bochecha esquerda era dedilhada. De leve, como se tomasse posse, a palma havia parado com os dedos entre meus lábios, queixo e bochecha. Senti então minha respiração desacelerar e acalmar à medida que me acostumava com aquele toque. Ao abrir os olhos, foi como ter dormido em uma realidade pasteurizada e acordar em um sonho onde a perfeição era só o começo.

— Confesso que desde o primeiro momento que te vi na biblioteca fiquei me perguntando se você seria mesmo só alguém passageiro, eu tinha a sensação que não, e, pelo visto, eu estava certo. – Disse ele sorrindo para mim. Eu estava um pouco atônito e ainda não tinha me dado por mim que começara um silêncio constrangedor, com ele ali parado sorrindo para mim com a mão em meu rosto e eu todo calado.

— Eu... não sei o que dizer.

— Não precisa então, hahaha! – Ele não perdia a delicadeza no sorriso nem por um segundo, parecia nem se importar que eu estava molhando todo o banco do seu carro. – Eu não queria ter te deixado me esperando na chuva. Você está encharcado! Quer entrar em casa para tomar um banho e se trocar? Eu não quero que você adoeça.

Eu então fui tomando minha consciência de volta enquanto me analisava e via que realmente estava sem condições de ficar molhado daquele jeito. Mas eu não estava perto de casa. Fechei os olhos como quem percebe que fez a maior burrada. Ele percebeu, mas mesmo assim, apesar da cara de não saber o porquê, continuou com aquela expressão confortável para mim.

— Me desculpa! Eu estou molhando seu carro todo.

— Não tem problema algum. Não se preocupa com isso, não foi o motivo que eu falei, só não quero que você fique resfriado e adoeça. Eu te espero aqui fora, sem problema algum.

Não ia dar para continuar mentindo. Olhando para baixo, falei tão baixo que nem sei como ele conseguiu me ouvir.

— É que, bem, eu não moro aqui. – As luzes amareladas da rua naquela noite chuvosa refletiam nos vidros do carro e o deixavam igual a um espelho. Pelo vidro, observei que a expressão dele não mudara, ele manteve a mesma feição, como quem te convida pelo olhar a continuar falando. – Eu disse para gente se encontrar aqui, porque essa rua é onde fica a minha faculdade. Eu tinha aula e me senti um pouco culpado de matar todas aulas de hoje, então, eu fiz todo um plano para conseguir assistir o primeiro turno antes do intervalo, me arrumar e vir te encontrar. Teria dado certo se não fosse a chuva. E agora, enquanto eu te conto isso, eu estou me sentindo um idiota.

Ele então começou a rir e eu o encarei. Eu não tinha dito nada de engraçado, mas talvez ele tenha percebido o palhaço que eu sou. Ele ligou o carro e começou a dirigir. Eu fiquei sem entender e continuava o encarando.

— Vamos mudar nossos planos essa noite. Eu vou te levar para o meu apartamento e você vai me contando esse plano estratégico que você bolou para conseguir ir para aula e se arrumar para nosso encontro. Pode ser?

Eu não raciocinei muito, na minha cabeça só se juntava as peças de que ele não tinha me achado um idiota completo. Eu tomei um ar e expirei, olhei para a rua pelo vidro do meu lado e comecei a falar, um pouco inibido. A medida que fomos indo, eu estava falando e ele ria a cada parte que eu tomava um fôlego para continuar falando, me senti um pouco mais confortável de ir contando, não associava mais ele a toda a situação que era aquilo um encontro. Quando o carro parou, uns vinte minutos depois que saímos, ele ficou me olhando e esperou eu acabar de falar. Eu fiquei um pouco sem graça, encerrei de qualquer maneira e voltei meus olhos para ele.

— Chegamos.

Acenei com o rosto sem fazer as devidas conexões. Ainda chovia muito, mas eu não conseguia ver as gotas de água do lado de fora. Foi quando percebi que estávamos em uma garagem. A porta do meu lado abriu e ele estava em pé a segurando e esperando por mim. Desci e fiquei parado esperando por alguma orientação. Ele foi andando em direção a uma claridade do outro lado da garagem e eu o segui. Chegamos a um elevador, entramos, vi que ele apertou o último botão do painel, era o décimo nono andar. Enquanto o elevador foi subindo, fez-se aquele silêncio opressor. Eu fiquei cabisbaixo vendo minhas roupas ainda molhadas soltarem pingos de água pelo chão do elevador. Vi que ele ficou me olhando, mas percebi que recuou quando tentou falar alguma coisa. Ele então deu um sorriso de canto, silencioso, e, quase que ao mesmo tempo, as portas do elevador se abriram. O corredor não era um retângulo enorme, mas quase como que um quadrado perfeito, bem espaçoso até e as paredes eram enormes. Tinha apenas uma única porta de madeira clara, extensa, quase chegava ao teto. Considerei que devia ser o único apartamento do andar. Foi apenas quando vi ele tirando o cartão do bolso e desbloqueando a trava da porta que me dei conta da situação e tudo se conectou na minha mente. Comecei a ter um leve ataque de pânico quando me dei conta que estava ali, parado de frente para o apartamento dele. Comecei a suar frio, e, acho que por estar molhado, fiquei realmente gelado.

— Venha, sinta-se em casa. – Aquelas palavras terminaram por me congelar. Estático que estava, não conseguia forçar nenhuma atividade em meu corpo. – Hugo?

Ele repetiu meu nome umas três vezes até que eu conseguisse me arrastar para atravessar aquela imensa porta de madeira.

Do lado de dentro, fui posto de frente a uma sala enorme. Era como um salão gigantesco com as paredes altas, eram em madeira corrida, devia ser cedro, liso, combinando com uma parede azul petróleo ao fundo. A estética do ambiente era agradável, a mobília era moderna, mas cheia de personalidade. Eu não resistia ficar olhando todos aqueles enfeites, decorações, quadros e plantas extremamente bem configurados no ambiente. Eu era um estudante de arquitetura a final de contas.

— Vem comigo que eu vou pegar uma toalha e umas roupas para você tomar um banho.

Nem prestei muita atenção no que ele tinha dito, estava encantado com aquele lugar, mas pela puxadinha que ele tinha dado no meu casaco presumi que era para o seguir, então fui atrás dele, mas ainda pasmo pelo design daquele lugar. Ele foi andando até o fim da sala, fiquei admirado por ver que um paredão de vidro conectava o ambiente interno com a varando do lado de fora. Mas o clímax do meu lado nerd e aspirante a arquiteto foi a escada ao fim daquela parede de vidro, uma escada de gesso de três partes, aquilo era simplesmente uma maravilha do trabalho artístico para qualquer design de interiores. Parei para admirá-la, mas não queria me perder por aquele apartamento enorme, me dei conta de que ele já estava quase ao fim da escada e a subi correndo. Não queria dar a impressão de bobo admirado, mas acho que seria inevitável. No segundo andar, ele entrou em um quarto e eu fui atrás, mas no hall que a escada chegava, antes da porta do quarto, tinha um quadro na parede. Fiquei olhando para aquele quadro, era lindo. Era a silhueta de uma mulher, esfumaçada, toda a pintura era escura e distorcida. Mas era uma mulher, parecia envolta em uma aura, mesmo que a variação dos tons de cinza e preto darem certa dúvida, a única coisa clara era a rosa vermelha que ela segurava em suas mãos. Olhando para o rosto, era como se ela estivesse sorrindo, apesar de que mais parecia chorar. Apenas me desliguei daquela pintura quando ele me chamou.

— Aqui, pode usar essa toalha. E toma esse conjunto de pijama de moletom, tá meio frio e ele é muito confortável. É... a cueca... pode usar essa. Tá no pacote, eu juro que não usei ainda, pode ficar tranquilo. – Ele disse meio rindo, meio sem graça. Mas eu, ao menos, fiquei extremamente desconjuntado com aquilo tudo. Disse que não precisava, que eu ficava com minha roupa mesmo, mas ele insistiu muito e foi me puxando até o banheiro. Pelo que percebi, aquele era o quarto dele e eu estava sendo arrastado até o banheiro do quarto dele. Ele me soltou e foi ligar a banheira. Quando começou a encher, ele se virou para mim, pegou as coisas da minha mão, pois sobre a bancada, perguntou se precisava de mais alguma coisa.

— É... não, obrigado, está ótimo.

— Eu posso te fazer companhia no banho se quiser.

Confesso, minhas pernas fraquejaram nesse momento. Eu exalava desespero e o quão sem jeito tinha ficado. Acho que ele ficou preocupado e riu.

— Estou só brincando. Mas qualquer coisa você me chama. – Passou a mão bagunçando meu cabelo e se dirigiu para a porta. Assim que passou por mim, ele parou, olhou para o chão e me chamou. – Hugo?

— Sim? – Respondi me virando para ele. Não sei descrever direito, mas a sensação foi de conforto e um impulso harmônico em meus lábios. Os braços envolvendo minhas costas e aquele rosto quente encostando com o meu. Não sentia mais o frio da roupa molhada. Na verdade, sentia um frio que ia se esquentando, um calor que ia se esfriando, passeando pelo meu corpo e emanando dos meus lábios, de pouco a pouco fui me entregando completamente aquele momento. Ele então se afastou e sorriu, segurou meu queixo com seu dedão levemente forçando meu lábio inferior, e saiu fechando a porta.

Algo em mim estava inquieto demais para que eu ficasse ali parado. Comecei a me despir e entrei na banheira. Fui ajeitando meus pensamentos no lugar, tentando compreender o que estava acontecendo comigo. Não tinha explicação alguma, a realidade estava bem diante dos meus olhos. Eu tinha acabado de ser beijado e pela primeira vez na vida senti meu coração pulsar dentro de mim. Me afundei dentro da água e tampei meu rosto com minhas mãos, não queria que o mundo soubesse que eu estava rindo como uma criança boba no auge da felicidade. Não era um sentimento surreal, era um sentimento que transcendia explicações, mas era bem real. Todos meus poros arrepiaram quando passei os dedos pelos meus lábios, a ideia de que alguém, não um alguém qualquer, mas de que ele tinha me beijado, despertava um certo fulgor em mim.

Saí do banho e me enrolei na toalha. Fiquei me encarando pelo espelho no banheiro e não conseguia conter a dúvida associada ao prazer que estampava meu rosto. Olhei para as roupas que ele me deu e só naquele momento percebi que ele tinha me entregado um pijama. Ele queria que eu passasse a noite ali. Fitando aquele conjunto de moletom cinza, a sensação do beijo me voltou e a ideia de que talvez se repetisse me deixou eufórico e entorpecido. Saí do banheiro segurando minhas roupas molhadas sobre a toalha. Percebi que ele não estava no quarto e, então, fui procurá-lo pelo apartamento. Quando virei a porta do quarto, me dei de frente novamente com a imagem daquela mulher pintada no quadro. A reparei e fiquei novamente encantado com aqueles traços. Uma luz ao fundo do ambiente me chamou a atenção e fui até lá. Por aquela porta de correr oriental vi um vulto dentro do cômodo. Gentilmente a empurrei e o olhei parado de frente para a janela.

— Desde que você aceitou ter esse encontro comigo eu fiquei pensando na oportunidade de te trazer até esse lugar. Eu gosto de o chamar de atelier, mas é apenas o lugar onde eu desenho meus doujinshis e algumas outras coisas. Venha aqui, deixe-me te mostrar.

Ele sentou em um banco de frente a uma grande tela de computador. Na mesa, uma prancheta digital se estendia e ele pegou uma caneta de desenho digital e começou a rabiscar alguns traços na prancheta. Observei que eles apareciam na tela do computador e fiquei vendo aqueles riscos tomarem forma, compondo um rosto que, segundo a segundo, se aperfeiçoava. Levou pouco menos de meia hora para que um croqui completo de um rosto estivesse desenhado naquela tela, do meu rosto. Eu o olhei encantado, admirado pela perfeição dos traços que ele desenhou em tão pouco tempo.

— É magnífico! – Disse sem conseguir tirar os olhos da tela.

— É só um croqui, rabiscos e nada mais. Mas obrigado pelo elogio. Tem tanta coisa que eu gostaria de te perguntar, tanta coisa que eu quero te ouvir falar sobre o doujinshi que você acompanha.

— Bom, eu estou aqui, então... disponha.

— Hahahaha. – Ele riu e me olhou com aquela expressão harmoniosa e convidativa dele. Percebeu que eu estava segurando a toalha com as roupas molhadas e logo as tomou de minha mão. – Vamos por essas roupas para secar e ir comer alguma coisa, você deve estar com fome. O nosso plano era ir até um Café, mas eu te garanto que posso cozinhar algo agradável para nós dois.

Na cozinha, ele foi abrindo os armários e tirando um monte de coisas e dispondo sobre a bancada. Era uma cozinha arejada, com um conceito aberto e uma linda bancada de ônix iluminado, uma pedra riscada em tons de branco, amarelo e marrom, que percorria todo o espaço central da cozinha, formando uma ilha, e se conectava com a parede gélida e os armários pretos. Na parede oposta, um grande painel do horizonte de um penhasco roubava toda a cena, apesar das jardinagens dispostas no chão da parede. Realmente ele era uma pessoa de um gosto fantástico.

Sentei-me em um dos bancos atrás da bancada e o fiquei vendo cozinhar.

— Eu até posso oferecer alguma ajudar se quiser, mas eu não sou, digamos, pródigo na cozinha.

— Está tranquilo Hugo. – Disse ele sorrindo. – Você será de grande ajuda se me contar o que pensa do meu doujinshi.

— E o que você quer saber, especificamente?

— Tudo! Hahaha.

— Bom. O que eu posso dizer... Esse não é o primeiro doujinhsi seu que eu leio. Mas os outros eu lia mais por diversão, porque eram releituras de outros mangás, então eram bem curtinhos, mas igualmente bons. Na verdade, eu só me dei conta de que te acompanhava a um bom tempo depois que fissurei nesse doujinshi e comecei a reparar quem assinava os outros, vi então que já tinha lido alguns dos seus trabalhos. Mas esse doujinshi, Culpa e Perdão: O Pior de uma Mente Apaixonada, é simplesmente espetacular. A trama, o enredo, você constrói os personagens e os descontrói em cada capítulo. O ocultismo no amor entre os personagens, transita em algo entre a luxúria e pesar, é como se cada vez que você dá uma peça para seus leitores, o quebra-cabeça se aumenta no dobro. E o seu estilo de desenhar... ah como eu me perco depois de ler lembrando dos rostos dos personagens, são tão bem confeccionados, tão bem traçados, você consegue demonstrar a emoção deles através da imagem de um jeito único, inigualável. É como se viesse de dentro sabe, até parece que a leitura se faz ao contrário, que a cada página, estou sendo lido, e não o inverso. É difícil de explicar em palavras claras, mas é purificador ler esse doujinshi, para mim pelo menos. E ele está ficando famoso, mais cedo ou mais tarde alguma grande editora vai te propor transformar ele em um mangá oficial.

Ele estava de costas para mim, cortando alguma coisa no balcão. Quando ele parou com a faca, seu rosto ficou reto em direção para a parede. Ele então disse.

— Eu não sei nem o que dizer depois disso. Espera. – Ele abriu uma porta no canto da parede e entrou para o cômodo. Saiu de lá com uma garrafa de vinho e encheu duas taças. – Um brinde, pelas belas palavras que você disse e por essa noite que só está ficando melhor.

Brindamos e ele ficou me encarando. Passou a mão pelo meu rosto, eu mal conseguia ficar de pé quando ele fazia aquilo, me sentia tão idiota por isso. Essa fraqueza que ele despertava em mim, mas era incontrolável, era impulsiva. Voltou então para o fogão e continuou o trabalho por lá.

— Sabe, eu nunca pensei em publicar esses doujinshis como mangás, na verdade, eu não quero. Gosto de os desenhar e escrever por prazer, sem a obrigação de levantar a responsabilidade de uma editora. Posso ficar um tempo sem desenhar se não me sentir bem e inspirado e isso é problema meu, apenas. Não acho que eu vá algum dia tomar por trabalho essa vida de mangaká.

— Sério?

— Sim. Me sinto mais à vontade assim, sinto que minha liberdade artística é mais respeitada. E também porque histórias como a minha não tem muito valor comercial no mundo das grandes editoras, uma história entre dois homens em um mangá publicado por elas só sai hipersexualizada, com relacionamentos abusivos, estereótipos ridículos dos papéis de cada um no relacionamento. Hoje em dia está mudando, tem umas histórias bacanas no mercado. Mas mesmo assim, ainda muito sutis, muito padronizadas. Não é o que eu quero. Eu quero escrever e desenhar o que eu sentir confortável, sem ter alguém me impondo nada.

— Entendo. Isso é bem verdade. Mas está mudando mesmo. De todo modo, admiro sua determinação em se manter fiel a si mesmo e a sua originalidade, isso chega a ser louvável nos dias de hoje. Contanto que você continue a escrever e desenhar seus doujinshis, eu ficarei bem feliz.

— Eu tenho uma inspiração boa para continuar agora. – Ele virou para mim e, sorrindo pelos olhos, piscou e voltou sua atenção ao fogão.

 Fiquei apreciando aquele vinho por um tempo. Era um vinho realmente muito bom. Passado algum tempo, ele me convidou para sentarmos à mesa para comermos. Quando ele trouxe as panelas, o cheiro estava tão bom que minha barriga, deselegantemente, roncou.

— Tenho certeza que a espera vai valer à pena, hahahaha. –  Eu estava com fome o suficiente para ter ficado sem graça naquele momento.

Ele então pegou os pratos e arrumou a mesa, me senti um pouco inútil sem fazer nada, mas estava um pouco deslocado sem saber o que poderia fazer. Me sentei e esperei ele se sentar, fiquei mais sem jeito ainda quando ele serviu meu prato. Não sei porque, mas ele estava extremamente cordial e sendo absolutamente simpático comigo. E eu não vou negar que gostava daquilo, era bom ser bem tratado.

— Experimenta e me fala se o sabor está bom. Eu não vou negar, eu sou confiante, acho que está bacana isso aí.

Era um risoto de mignon e shiitake e nada no mundo poderia combinar mais com aquele vinho malbec, estava bem saboroso. Eu comi e estava muito feliz por estar tendo aquela refeição ali com ele. O meu cotidiano estava se alterando naquela noite de uma forma que eu jamais preveria.

— Está delicioso. De verdade. – Disse com a boca ainda cheia e soprando porque estava quente. – Você é uma pessoa de múltiplos talentos.

— Eu tento. – Disse ele levantando e balançando sua taça com vinho. – Mas confesso que é bem melhor quando tem alguém para dividir. Tem mais sabor.

— Mas esses talentos não podem ser todos de hobbies. Você trabalha com alguma coisa que envolve esses múltiplos dotes? – Não queria parecer o intrometido, mas precisava de alguns pontos de ação para não ficar aquele silêncio ditatorial enquanto ele me encarava.

— Pode se dizer que sim. Mas definitivamente não esse tipo de habilidade. Trabalho em uma empresa responsável por criar e reformular novas empresas para o mercado, sou diretor e chefe executivo, fico mais nas negociações de bastidores, então precisa sempre de um talento ou outro para conseguir alcançar a meta no fim do dia. Cozinhar e desenhar são atividades para relaxar e esquecer do trabalho. – Percebi que ele estava levemente mais sério, fiquei com medo de ter sido inconveniente em algo. – Mas não vamos falar dessas burocracias entediantes. Me diga, senhor universitário, estuda o quê?

— Eu faço Arquitetura e Urbanismo.

Ele me olhou curioso, querendo que eu entregasse mais cartas. Ele tinha um olhar que era desafiante e ao mesmo tempo impositivo, acho que era a combinação ideal para o charme sedutor que ele possuía.

— Então ninguém melhor que você para me disser o que está achando desse apartamento. A decoração e a estrutura, quais suas críticas?

— Eu não sou nenhum profissional. – Sorri desconcertado. Ele me incentivou a dar um parecer, eu não queria parecer puxa saco, mas tinha realmente ficado apaixonado com tudo aqui. – Já que você insiste... Eu fiquei impressionado com o gosto, acho que posso colocar assim. – Ele me olhou surpreso. – Não que eu tivesse algo em mente quando você abriu a porta, mas eu não esperava esse gosto tão peculiar. Essa mistura de retrô e moderno, mas de um jeito nada ortodoxo, foge da tentativa de equilibrar o contemporâneo com vintage, fica meio que uma linha tênue em cada aposento, uns mais tendenciosos que outros, e no geral, fica uma verdadeira escapada pelo tempo, você tem bastante coisa no estilo dos anos vinte, uma decoração clean anos oitenta e uma jardinagem completamente futurista por todo o apartamento, além da paleta de cores e a combinação de pedras, madeira e gesso, sempre seguindo a parede de tinta, com tons bem escolhidos, diga-se de passagem. Acho que a impressão de moderno vem do uso de vidro na medida certa, para também não ficar enjoativo, e arejar bem o ambiente, como na sala. Além das pinturas que você tem nas paredes, aquela no hall antes do seu quarto, eu fiquei impressionado com ela, é linda. Acho que em resumo, você é uma pessoa de um gosto fenomenal, é confortável e coeso, mas tira a harmonia do charme e da sedução. Se não pareceu muita bobagem, minha impressão foi essa.

Ele levantou e veio em minha direção, se abaixou e ficou no nível da cadeira que eu estava sentado. Novamente ele me beijou. Dessa vez, eu não deixei apenas me entregar ao momento, mas me fiz presente e a par da situação. Aquilo era como desconectar do mundo e conectar em uma dimensão psicodélica, onde a alma se expressava ao invés da razão e dos meus confusos pensamentos.

— Não é apenas nos móveis e decoração desse apartamento que eu sei ser sedutor, sabia. – Disse ao pé do meu ouvido. Aquela voz miúda e calma fomentava ainda mais o instinto em mim, me tirava a razão ao ouvir aquilo.

Ele me levantou e eu me encostei contra a parede. Senti meu pescoço ser tomado por aquela posse de movimentos dominantes e selvagens, mas que acalmavam todos os nervos em meu corpo. As mãos passeavam por minha cintura como em uma valsa, e no conduzir dos passos, era exatamente como se uma música guiasse meu corpo. Ele foi descobrindo meu rosto com seus beijos até se alinhar seus olhos aos meus. Novamente meus lábios foram tomados. Ele então me abraçou e me disse para subirmos.

Fomos caminhando em direção a escada. Eu subi uns dois degraus à frente dele quando senti que meu corpo foi puxado para trás e ao perceber, eu pairava sobre o ar em direção a ele. Me segurando em seu colo, como se marcasse território em meus lábios, o único sentido desperto em mim era meu olfato, pois aquele perfume envolvente inundava aos demais enquanto ele me tomava em seus beijos. Subi a escada carregado e abri os olhos ao ser deitado sobre a cama. Ele me colocou alinhado no centro daquela cama macia, senti lentamente meu corpo afundar um pouco no colchão enquanto ele se dispunha sobre mim.

Partindo do pescoço, senti um estremecer pontar em mim enquanto o canto do meu ombro se esfriava naqueles lábios. Eu tenho uma trilha de pintas do pescoço até o ombro, não eram muitas, mas foram sendo colecionadas por aqueles beijos até o canto de minha orelha direita. Era uma sensação de controle e pose, ao mesmo tempo domínio e dominação, como se ele tomasse conta de meus sentidos sem que eu pudesse lutar contra, mas ao mesmo tempo toda a força do meu corpo restringia minha vontade de resistir, mas me impunha a provocar, a brigar por aquilo, para que fosse mais. A intensidade daqueles beijos mudava à medida que ele tomava conta de todo meu respirar com seu próprio ritmo. Suas mãos passeavam por minhas pernas e alternavam para que uma sempre segurasse minha cabeça e tornasse dócil e afetuoso aquele momento. Os beijos desencadeavam em mim uma sensação de segurança e adrenalina, como se estivesse prestes a despencar de um enorme penhasco, mas ansioso por cair.

Após cada beijo longo, ele me beijava rapidamente e olhava dentro dos meus olhos, como se enxergasse em minha alma para ver se tinha conseguido chegar até ela, e, quando teve a certeza de já estar lá, me virou na cama para que eu ficasse sobre ele. Começou então a levantar a minha camisa e a dedilhar meu corpo, subindo seus dedos por minha barriga, costas, tórax, até chegar ao pescoço e tirá-la por completo. Me sentou por cima de seu colo e segurou minhas mãos em sua camisa para que eu fizesse o mesmo. Eu me entreguei ao momento e fiz como ele, tirei sua camisa e comecei a beijar seu pescoço, passando minhas mãos por seu tórax, percebendo cada espaço entre um músculo e outro. Ele então segurou suas mãos ao redor de minha cintura e conduziu para que caísse lentamente de costas no colchão da cama com ele por cima de mim. Eu só conseguia deixar que ele me conduzisse enquanto sentia nossas respirações se alinharem. Seu corpo descamisado sobre o meu, senti aquelas costas começarem a molhar, como o primeiro orvalho da manhã nas folhas das árvores, enquanto eu segurava com uma das mãos por detrás de seus ombros e com a outra sobre sua cintura. Ele então mordeu levemente minha orelha esquerda e me puxou de volta para ficar sentado sobre seu colo, me virou e me deitou virado para a cabeceira da cama.

Ainda sobre mim, senti suas mãos passando por minha virilha e começarem a descer por minhas pernas, logo, puxando minha calça para baixo. A dele já estava abaixada para até o começo da coxa. Naquele momento, uma certa insegurança fechou minha garganta e me impediu de respirar. Enquanto ele me beijava o pescoço eu segurei suas mãos antes de abaixarem minha calça e o beijei. Ele forçou para continuar e eu virei meu rosto. O encarei.

— Me desculpa... eu... eu não... – Algumas lágrimas desceram pelo meu rosto e eu comecei a ter minha voz fraquejada. – Eu não queria parecer tão infantil quanto estou prestes a parecer. Não queria te dar a ideia errada, eu quero muito. Mas ainda não estou pronto. Me desculpe.

Ele me olhou, passou suas mãos pelo meu rosto, enxugou minhas lágrimas, me beijou e me deu um abraço forte.

— Hugo, não tem nada que se desculpar. Tudo no seu tempo. Eu que peço perdão se forcei alguma atitude com você.

— Não! – Respondi sem fôlego. – Você não forçou nada! Eu só... eu queria. Eu quero, mesmo. Mas eu não consigo agora, eu não tô preparado agora.

— E não tem nada de errado nisso, fica tranquilo. – Ele me beijou e me deitou sobre seu ombro, abraçando-me. Naqueles braços eu me sentia completamente envolvido, aquecido como se eu estivesse virado para uma lareira. Ele puxou a colcha da cama e jogou sobre nós. Senti seus lábios beijando minha testa e me fiz confortável sobre seu peito, deitei meu rosto ali e o abracei de volta. Eu não queria pensar muito na minha atitude, mas tinha ficado feliz que ele tinha me compreendido. Nunca adormeci tão confortável e rápido assim em minha vida.  

Acordei naquela manhã com o clarear do dia. Percebi aqueles braços me envolvendo e aos poucos as memórias da noite passada me vieram a mente. Cobri meu rosto com a colcha e me ajeitei de novo sobre seu tórax, ele reforçou o abraço sobre mim.

Na minha cabeça a única coisa que se passava, como em um loop infinito, foi o envolvimento que tivemos na noite de ontem. Eu ainda estava meio incrédulo, mas sabia que era tudo verdade, o que me alegrava muito. Ri enquanto deitava sobre ele e acho que o fez acordar.

— Bom dia Hugo. – Disse ele com uma voz rouca e adormecida.

Eu então me virei para ele, olhei aqueles olhos puxados fechados, e o beijei.

— Bom dia Nolan.

— Só mais cinco minutos e eu vou arrumar café para a gente. –  Eu voltei a o abraçar e me deitei novamente sobre seu ombro. – Mas isso não quer dizer que são cinco minutos dormindo, pode ser cinco minutos com você me beijando.

Tudo isso, todo esse momento, era tudo tão ímpar. Eu queria poder dizer que parecia tudo um sonho, que achava surreal que estivesse vivendo isso, mas, justamente por estar, eu me apeguei a qualquer traço de realidade daquelas emoções que vinham desse ponto da minha vida. Seja essa a razão, quem sabe, pela qual eu estava tão entregue e profundamente alinhado com o que acontecia, sem indagar ou refletir muito a cada segundo, mas apenas tentando viver aquela fórmula de felicidade que era extremamente o oposto do que eu vivia no cotidiano. Eu não sabia nada sobre as intenções e motivos por trás daquele homem deitado junto comigo. A realidade é que eu não me importava muito com isso, mesmo que algo em mim tentasse achar uma razão, eu apenas queria me integrar na dinâmica das suas ações.

Assim que levantamos, ele me disse que iria tomar um banho e que eu podia ficar à vontade. Peguei a blusa do pijama que estava jogada no chão e a vesti, desci da cama e comecei a andar pelo apartamento. Resolvi voltar para o atelier e conferir com atenção o lugar onde ele criava os doujinshis. Era um cômodo esteticamente harmônico, alguns bonsais armados na parede decoravam aquele interior de madeira, paralelo a essa parede, uma porta envidraçada dava para uma pequena varanda. A bancada da varanda era toda coberta por uma espécie de jardim de flores, camélias vermelhas perfeitamente cuidadas. Elas harmonizavam do lado de fora todo o clima de vida e criação que aquele espaço tinha. Ainda no atelier, deparei com um pequeno armário escondido no canto atrás de algumas telas em branco. Puxei-as com cuidado e fiquei vendo aquele móvel, parecia bem antigo. O pinçar da curiosidade era tão forte que não resisti por ver o que havia naquelas gavetas. Nada demais estava nas gavetas superiores, algumas tintas, pincéis, material de pintura e alguns rascunhos de desenhos. Abri uma pequena gaveta no meio do móvel e dentro dela tinha uma caixinha, entalhada, estava fechada por um lacinho de fita vermelha. Queria muito abrir para ver o que tinha dentro, mas fiquei receoso de depois não conseguir fazer perfeitamente o laço para parecer intocado. A impulsividade da dúvida e a vontade de conhecimento, Perséfone e Astréia que guiam os virginianos sabem que eu não poderia resistir. Desatei aquele laço com a maior delicadeza e o segurei esticado entre os dedos. Dentro daquela caixa tinha um monte de pétalas ressecadas, já deviam estar ali por anos. Estavam em cima de algo, arredei algumas pétalas e vi que era uma foto.

— Hugo?


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