Culpa e Perdão: O pior de uma mente apaixonada escrita por NightlyPanda


Capítulo 20
Capítulo 20 - Caminhos e Mentes Ponderados




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Hugo

Abrir a fechadura da porta do meu flat não foi nada igual abrir a fechadura daquele apartamento, nem sequer a sensação de estar “em casa”. Do lado de dentro, apenas conseguia reparar em todo o ambiente e me lembrar de cada momento em que estive lá, vivendo minha epifania e passando por um verdadeiro transe existencial. Aqui, os latidos de Naíma me traziam de volta constantemente à realidade ao meu redor. Era bom estar fora daquela aura carregada de memórias dolorosas.

Deixei o panda de pelúcia sobre minha cama e fui tomar um banho. Deixar que toda minha desorientação fosse escaldada para fora de mim pelas ferventes gotas da ducha. No vapor que se formava, senti a insegurança que ainda restava presa em minha pele esvair por entre meus poros.

De volta ao meu quarto, subi Naíma na cama e me deitei com ela olhando para o teto. Tanta coisa ainda tumultuava minha mente, e eu sequer sabia por onde começar. Mas não estava mais ansioso, sentia que estava caminhando para enfrentar tudo sem desmoronar.

Atentei meu olhar em Naíma e a vi cheirando o panda de pelúcia sobre a cama. Fiquei a vendo o estranhar e se aproximar cautelosamente até ele, tentando identificar o que era aquilo em seu território. Ela começou a cheirá-lo incessantemente na costura das costas, e eu voltava a me perder em meus pensamentos a observando. Voltei a mim com o roncar do meu estômago, ainda não tinha comido nada, e precisava urgente de alguma coisa em minha barriga.

— Hora de comermos garota. Vamos ver se tem alguma coisa para prepararmos aqui nessa casa.

Algumas fritas, patê e azeitonas, uma das melhores coisas que eu poderia desejar comer naquele momento.

Assentei-me na banqueta do piano, mas sequer levantei sua tampa. Posicionei meu prato sobre ele e fiquei olhando o céu pelo vidro da porta da varanda. Quando que eu colocaria algo sobre meu piano, eu não um leve pano para limpá-lo? Nessa noite, eu o fiz. Entre uma mordida e outra, fui reparando nas estrelas que pintavam o céu escuro e, entre uma e outra, criando laços com minha mente, fazendo minha atenção percorrer pelo perímetro que formava.

Deixei meu prato ali mesmo, não tinha terminado de comer, mas não sentia mais fome. De volta ao quarto, parei escorado sobre a cômoda de frente à cama, fiquei analisando o cenário com aquela pelúcia acomodada entre os travesseiros. Em meus pensamentos, flashes de todos os anos que estive acompanhado desse fiel totem. Do dia em que simplesmente acordei e me dei conta de sua existência, sem me recordar de como chegara até mim, apenas a sensação de que sempre esteve por perto.

Lembrei-me de quando imitava meu pai a analisar artefatos antigos, de como imaginava ser aquele panda meu companheiro de exploração em lugares imaginários, todos baseados nas histórias que ouvia das viagens dos meus pais. Das noites chuvosas em que acordava assustado com os trovões que se multiplicavam do lado de fora, e ao virar o rosto me reconfortava na carinhosa pelagem de pelúcia.

Entre uma memória e outra, ele tombara sobre a cama. Vê-lo caído no colchão me atiçou a memória para quando estava caído aos meus pés, antes dos meus sentidos serem assenhorados por um terrível coma e de mais nada eu recordar. Na madrugada do meu aniversário. A queda do meu panda no chão, as chamas que queimaram o céu, a escuridão que me fechou os olhos...

Treze anos tiveram que se passar até que eu enxergasse de novo, que eu conseguisse os abrir mais uma vez. Treze anos até que minha alma acordasse novamente.

Se eu não tivesse voltado até a casa dos meus tios, talvez eu ainda estivesse cego. Talvez ainda perambulasse pelo mundo sem sair do transe que me acortinava a vida. Quantas memórias me confrontaram as emoções nesses últimos meses. A viagem até o chalé, os frios dias nos Alpes que me duelaram a memória. Ver de tão perto tantas lembranças enclausuradas tão fundas dentro de mim. E pensando nisso tudo, a imagem de tia Teresa me descobrindo no sótão bisbilhotando as memórias que ela própria guardara, era a visão que minha mente se atinha.

Como fora profunda a nossa conversa. Ela falando sobre seu filho, meu primo Iuri que eu sequer me importei com a existência nos meus anos de confinamento em mim mesmo.

— Iuri... – Pensar nele era engraçado, porque tão pouco de sua pessoa eu recordava, mas ultimamente, ele me vinha constantemente a cabeça, como uma imagem que aprisionei em minha imaginação e a mantive retida em meus pensamentos.

Subi sobre a cama e me arredei até o panda caído. O peguei no colo e fiquei observando seus traços ainda conservados. Por nove anos, meu mais fiel amigo. E por treze anos seguidos, sequer me lembrava de sua existência. Olhava para ele e lembrava das palavras que minha tia disse, sobre como Iuri o tinha escolhido para mim. Sobre ele ter certeza que seria meu companheiro leal, que seria meu brinquedo favorito.

“Como eu posso recordar tão pouco dele?”.

Esforçava-me para conseguir trazer algo de volta, alguma coisa do passado, mas quando mais tentava, menos conseguia segurar meus pensamentos em sua imagem. A ponto de se distorcer em minha imaginação e eu nem mais saber como era seu rosto. Será que eu realmente sabia? Afinal de contas, mal me lembro dele, e tão pouco convivemos juntos. Mas eu sentia que a fisionomia de sua face estava guardada em minha memória, não pelas fotos que eu vira, mas pela presença dele que de alguma forma eu sentia ao olhar para aquele panda em meu colo.

Uma mera sombra ao fundo dos meus olhos passou. Ocupou toda minha atenção, e, quanto mais se focava em minha visão, menos eu conseguia enxergar o ambiente a minha frente. Via apenas os vultos que se delineavam, não sabia se estava delirando, mas enxergava as imagens cada vez com mais precisão.

Uma figurava distante, parecia correr em uma pradaria. Distanciava-se mais e mais de mim, até parecer estar a margem do observável. Parada, olhava ao céu sobre si, o admirava, com os braços abertos, a brisa a percorrer por seu corpo soprando seus cabelos para trás. De longe, parecia se conectar com o universo que o habitava. Olhou em minha direção, não sabia como poderia enxergar isso a essa distância, mas sabia que estava sorrindo. Veio andando até mim com os braços balançando, a alta grama tocando em suas mãos nuas e o sol refletindo sobre sua dourada pele. A cada passo que dava, a cada vez que se aproximava de mim, era como se eu já estivesse a sua frente e agora caminhava para dentro de mim. Seus olhos sobre os meus, como era angelical sua presença. Sua boca se movia, dissera algo para mim, mas não tinha voz. Em meu coração, entretanto, sua mensagem ressoava. Sabia meu nome. Iuri...

A imagem do meu quarto me voltou à vista. Ainda estava um pouco zonzo, desnorteado. Olhei em minhas mãos, vazias, não carregavam mais o panda em meu colo. Repousava caído sobre o chão.

Antes mesmo que pudesse o pegar, Naíma o abocanhou e saiu correndo com ele pela casa. Tive que apostar um verdadeiro pique-pega com ela para tomá-lo de volta. Os dentes tinham o mordido bem na costura das costas, havia um buraco ali pelas linhas que se rasgaram. Olhei para ela sem uma reação repressiva entretanto, afinal de contas, não conseguia nem sintetizar uma expressão que fosse naquele momento.

O coloquei sobre a tampa fechada do piano, ao lado do prato. Duas infrações idênticas seguidas, em uma mesma noite. Fui procurar por alguma agulha, tinha a impressão de que tinha um ali em algum canto. Revirei inúmeras gavetas até achar uma. Ia tentar reaproveitar a própria linha da costura para fechar o buraco que se abriu.

— Ai, Naíma... – Não era um grande estrago, mas acho que seria necessário mais que apenas minha vontade de consertá-lo e aquela agulha enferrujada para resolver o problema. Observei o buraco em suas costas, tentei fechá-lo com os dedos para ter noção do que tinha acontecido de verdade. Enfiei o indicador direito dentro da espuma para espaçá-la. Era uma textura estranha, mesmo que para tantos anos que ele estava guardado em meio à poeira e à escuridão daquele apartamento.

Bem no interior, não parecia ser espuma. Tentei apalpar com os dedos para identificar. Consegui segurar fazendo uma pinça com a mão e comecei a puxar para fora daquele mar de espuma amarelada.

Um papel. Um papel tão bem dobrado que formava um quadradinho de alguns centímetros de espessura. Completamente tomado pela cor do tempo. Quis desfazer as dobraduras logo, mas tive que ter cuidado para que não esfarelasse todo em minhas mãos e desaparecesse. À medida que desdobrava, conseguia ver sombras que se destoavam pelo verso. Letras, palavras, frases que tomavam toda aquela folha.

Era uma carta. Dentro de meu panda de pelúcia. Uma carta que eu jamais soube da existência. Como era terrível essa angústia que apertava em mim, a ansiedade em ler o que estava escrito e o medo em saber o que aquilo deveria significar quando lesse.

Caro Hugo,

            Está chegando perto do seu aniversário e eu não consigo imaginar o que essa data deve significar agora para você. Mas consigo compreender que o que você passa deve ser uma das coisas mais difíceis de se enfrentar nesta vida. Eu não quero que você ache que escrevo palavras sem honestidade, porque eu intendo em dizer tudo que aqui escrevo. E quero que saiba que eu sinto muito, eu realmente sinto.

Eu sei que nossos encontros eram rápidos e ocorriam tão esporadicamente que você não deve ter grandes lembranças de mim, mas eu guardo sentimentos muito ternos por sua existência. Lembro até hoje do dia que fiquei sabendo que você tinha nascido e que finalmente eu teria um primo, quem sabe um dia um grande amigo, alguém que fosse pra mim um verdadeiro irmão.

Você aceitou o conselho do meu pai e acabou por se isolando do mundo que vivia. E eu não o culpo. Meu pai é extremamente racional, se ele o sugeriu isso, foi por ter acreditado que seria o mais fácil para você. Ele só quer o seu melhor. E acho que nesse momento foi o melhor mesmo. Não seria bom para você ficar com suas emoções amordaçadas na casa da vovó. Ela é ótima, mas não saberia o reconfortar para que você seguisse em frente. Acho que ninguém saberia, isso é algo que você precisa fazer da forma que julgar adequada para si mesmo.

De todo modo, eu quero deixar apenas alguns registros da minha vida para você nesta carta, para que quando você a leia, você saiba um pouco mais de mim do que da última vez que nos vimos.

Eu completei 16 anos em Janeiro desse ano e já vai dar um ano que estou morando em Paris. Queria trazer você aqui. A Noruega é um bom lugar, espero que você esteja gostando daí, mas nenhum lugar do mundo é tão vivo como Paris. Essa cidade é uma obra de arte que respira, Hugo. Estou morando com mais alguns rapazes em um pensionato, você iria adorar os conhecer. São todos franceses, mas suas famílias são do interior, cada uma de um vilarejo mais afastado que a outra. Nós todos estudamos no mesmo colégio. René e Pierre são de Saint Emilion, eles são amigos desde que nasceram, suas mães eram amigas de infância, assim como seus avôs, e também como suas bisavós. Os dois querem fazer engenharia na faculdade, são apaixonados por máquinas e computadores. René é mais espirituoso, mas Pierre é igualmente fraterno com os demais.

Augustin é de Ornans, um excelente amante da gastronomia. Sonha em ser chef. Vez ou outra, os meninos catam algumas coisas da horta de uma vizinha, sem que ela saiba, claro, para que Augustin cozinhe para nós. A comida dele é tão boa, me faz lembrar a de mamãe. Mas a dela é insuperável, por óbvio.

Henri e Theodore são primos, moravam em Argentant antes de virem para Paris. A relação dos dois é a de dois irmãos, Henri é alguns meses mais velho, mas quem toma conta de suas irresponsáveis ousadias é Theodore. Às vezes me pego olhando para os dois e me lembro de você, de quando corríamos pelas pradarias do rancho do vovô por horas sem fim, soprando os dentes-de-leão no campo e depois indo pescar. Os dois são excelentes violinistas, mas nenhum acha que leva jeito para música. Como são tolos. Acho injusto como podem ter tamanho talento, e sofrerem por números e equações matemáticas por prazer.

E por fim, Antoine. Ele é um grande amigo meu. Nós não éramos tão próximos assim, mas andamos desenvolvendo uma certa conexão nesses últimos meses por conta da arte. Ele é um poeta único no mundo. Um dia questionou-me como que era possível eu pintar tão bem, que deveria ter feito aulas de pintura desde muito novo. O respondi que não era talento algum, eu apenas emoldava em imagens o que via com os olhos. Mas ele, ele tornava imortais emoções em suas palavras. Fazia possível enxergarmos sentimentos que não conseguíamos ver, mal sentir, e tão somente usando a magia das palavras que arquitetava em seus versos. Ele é alguém incrível, gostaria muito que ele te conhecesse, porque também acho você uma pessoa única nesse mundo, Hugo. Antoine vem de Gordes, sua família é muito simples. Mesmo sendo um exímio artista, ele apenas se dedica a suas líricas nos mais curtos intervalos de tempo, está sempre estudando, porque quer dar uma vida melhor a sua mãe e irmã.

 Bom, estou de férias do colégio. Minhas aulas voltam em algumas semanas. Papai quis me trazer para Rússia, para que não ficasse só em Paris. Mas não estamos em Moscou e eu não vejo a hora de ir visitar a vovó e o vovô. Papai precisou vir olhar algumas questões de negócio em um porto que eles estão financiando em Novy Port. Essa cidade tem metros quadrados de área Hugo, e eu não estou brincando. É um nada, como a maior parte desses vilarejos aqui na região da Iamália-Nenétsi. Da Rússia, eu gosto da minha casa em Moscou e dos teatros em São Petersburgo. Além dos museus, é claro.

Eu estou escrevendo essa carta com o que me vem à mente olhando para este panda. Verdade, não mencionei, mas eu o trouxe comigo. Não julguei por bem deixá-lo jogado em qualquer canto. Talvez eu o devolva a sua casa quando for visitar os nossos avós. De todo jeito, vou deixá-lo em um local onde possa te entregar depois. Acho que vou inclusive deixar essa carta com ele, para quando você o ter, encontrar uma surpresa minha para você. Eu não vou postar esta carta para você, nem mandar o panda junto, porque acho que agora você ainda está à deriva sem saber bem aonde vai atracar. Mas não se preocupe, Hugo. Eu vou sempre estar por perto para te ajudar. Nós somos família, de sangue e, mais forte que isso, de coração.

Minha mãe quer muito te ver. Ela queria tanto te buscar para comemorarmos o seu aniversário juntos, no nosso chalé nos Alpes. Papai acha que não é uma boa ideia o tirar de seu cosmos agora, ele acredita que temos que esperar você querer partir para outro destino. Espero que o próximo seja um lugar de muito aconchego.

De seu primo e amigo,

Iuri Górki.

Segunda-feira, 13 de Agosto de 2007. Novy Port - Iamália-Nenétsia, Rússia

Iuri. O fato de me lembrar tão pouco de você me irritava em proporções que não conseguia expressar. Como poderia alguém que tive tão pouco contato escrever algo tão pacificador para mim? Nesse momento, eu não conseguia conceber o motivo pelo qual me ausentei da vida por tanto tempo. Como pude ser tão mesquinho, tão egoísta e egocêntrico. Senti um ódio fervente alagar meus pulmões, como se afogasse minha respiração nesse acesso de fúria interno que me invadia.

Naíma latiu, parada em minha frente. Olhei para ela, encarando seus delineados olhos redondos, percebi que me aquietava em meu respirar. Eu não poderia ter feito de outro jeito. Não teria conseguido sobreviver se não tivesse sido assim. Naquela época, eu não tinha como colocar minhas emoções alinhavadas com meus sentimentos de agora. A cada inspirar, fui me acalmando e aceitando tudo o que aconteceu, deixando que todo e qualquer pensamento que passava por mim, apenas sublimasse.

De novo o rosto de Iuri. Poucos minutos atrás e eu sequer conseguia ter uma imagem nítida de sua feição, e agora, fechava os olhos e tudo que via era uma aura que, mesmo sem forma completa, me fazia enxergá-lo.

Alguém que se importou verdadeiramente comigo, a ponto de me deixar esse registro, essa carta que apenas eu poderia encontrar. Como eu queria saber que poderia sair desse flat nesse momento e ir até você, encontrá-lo em Paris e o abraçar em agradecimento. Bom, estou agradecido, e queria que soubesse disso, por ter se importado comigo, por ter me transmitido tamanha harmonia nesta carta. Mesmo que não possa o abraçar agora, eu quero que saiba que a ti eu serei sempre grato, Iuri. Obrigado.

Ambas as mãos ainda seguravam aquela folha amarelada. O cheiro mofado do papel que sobreviveu ao tempo não foi capaz de me afastar das letras ali escritas.

Passava os olhos aleatoriamente pelos espaços daquela carta, algo ali me energizava com a sensação da calmaria que antecede a guerra.

Foi quando observei. Iamália-Nenétsia. Já tinha visto esse nome, mas onde? Esforcei meu cérebro a ordenar que todas minhas sinapses se concentrassem em voltar-me essa memória. Iamália-Nenétsia... Iamália-Nenétsia... Iamá...

Esse nome estava sendo recalcado de minha memória, mas eu sabia de onde o conhecia. Minha pesquisa sobre Yar-Sale. Ficava nessa região. As manchetes que tinha lido na biblioteca dos jornais russos, também mencionavam sobre esse local. Mas porquê Iuri estaria lá? Por que tio Henry tinha negócios justo lá? Essas meras coincidências me irritavam com as variáveis aleatórias que o universo atirava por aí. De toda forma, por mais trivial que fosse essa informação, sabia que não escaparia minha atenção tão cedo. Precisava pesquisar sobre isso.

Cacei o notebook pelo apartamento. Quando o encontrei debaixo da minha cama, o liguei e fiquei batucando meus dedos ansiosos até que estive inicializado. Pesquisei na Internet sobre a cidade de Novy Port. “Metros quadrados de área” e realmente não tinha mentido, Iuri. Um minúsculo vilarejo às margens do rio Ob, desaguando no mar de Kara. O mesmo rio que corria por Yar-Sale, ambas a uma distância de pouco mais de uma centena de quilômetros. Apenas isso, informações geográficas, mas nada de muito relevante.

Mesmo ele tendo escrito que estava lá porque tio Henry tinha negócios no porto de Novy Port, não conseguia casar bem em minha mente as improbabilidades desses lugares.

Precisava de uma imagem de Iuri, precisava me certificar de seu rosto. Tinha algumas poucas fotos guardadas por aqui, fotos que foram dadas pra mim por minha avó, e que eu sequer fiz questão de abrir o pacote quando ele chegou no internato. Não era tempo para mágoas e arrependimentos, mas era inevitável essa constrição que me apertava o peito. Olhei nos armários, nas gavetas da escrivaninha, em todas as cômodas e até na sapateira. Não encontrava o bendito envelope.

Em uma velha pasta ao fundo de alguns livros e cadernos no canto mais despercebido de meu guarda-roupa, encontrei o envelope ainda fechado, com as palavras escritas por minha vó no verso lacrado. “Para meu querido Hugo, para que recorde de sua família”.

O aperto começava a ser sufocante. Trouxe o envelope para cima da cama e o abri. Umas vinte fotos em seu interior. Meus pais, meus avós, meus tios e até algumas pessoas que eu não reconhecia. E lá estava ele, Iuri. Devia ter uns 12 ou 13 anos, talvez, mas não mais que 15. Essa foto era anterior ao incidente.

Levantei-me e fui até minha cômoda, arredei algumas camisas e peguei a foto que estava por debaixo delas, a foto que trouxe do chalé dos meus tios. Voltei para a cama e a coloquei ao lado da foto de Iuri. Não era ele. Por mais que na foto que eu trouxe se tratava de uma criança de uns 8 anos, eu tinha certeza que não era Iuri.

Iuri era loiro, tinha os cabelos lisos, mas que se ondulavam como as nuvens, penteados para trás, com um movimento estético que trazia a mais bela ternura ao seu rosto. O qual por si só já era uma escultura barroca, ossos tão fortes, traços extremamente marcados e delineados pelo rosto, mas que se suavizavam em perfeita harmonia, como se pelo mais árduo mármore fosse entalhada a mais meticulosa demonstração da pele humana, em sua perfeita sensibilidade. Os olhos claros, mudavam entre o verde e um amarelado que deixava seu rosto ainda mais dourado, pareciam refletir o próprio poder de Midas. Puxara os olhos de tia Tereza, abertos, alinhados em impecável simetria, sorriam por natureza.

Sua pele dourada também era atributo materno, mas sobre ela recaíra a opacidade da branca e gélida pele russa de seu pai. Ele tinha a maioria dos traços de tia Tereza, o largo sorriso curador, as pequenas linhas que o davam a mais bela essência da humanidade, o brilho do olhar e a sensibilidade sedutora em apenas ficar parado de pé. Mas a triste seriedade que refletia ao fundo de seu olhar, a sobriedade de seu porte, era bem parecido com tio Henry.

E em nada se equiparava ao menino da foto. Aquele magro garoto parado em um quarto escuro, os cabelos curtamente aparados, mas mesmo assim, negros como a noite. A tristeza que era sua própria sombra, a ausência completa de apego pela vida, a mecanização de apenas estar ali. Não parecia em nada com Iuri. Não o era, sob aspecto algum.

Mas quem seria? E por que estaria naquele sótão, no meio de tantas memórias familiares de tia Tereza e tio Henry? E ainda que eu não fizesse a menor ideia quem seria aquele corpo simbolicamente frágil, parecia que sabia, porque queria responder a essa pergunta de qualquer forma. Mesmo sem conseguir.

Juntei todas as fotos dentro do envelope, o devolvi a seu esquecido canto ao fundo do meu guarda-roupas e fiquei aquietado sobre a cama pensando. Apenas possibilidades aleatorizadas pelo universo. Mesmo assim, não conseguia deixar de pensar em como estava cada vez mais sem rumo com essas coincidências.

Talvez seria o tio Henry quando criança? Bom, não tinha como saber, mas achava que não o era, a foto não parecia ser tão antiga assim. Tinha que ser alguém próximo a ele e a tia Teresa. Estava começando a ficar entediado de pensar sobre o assunto, caí de costas sobre o colchão e, com os braços cruzados na testa, fiquei a observar o lustre no teto. Sem me ater a qualquer pensamento, sentia o enorme vazio da existência, imobilizado pela completa ausência de significados.

Tamanha minha inócua imersão que não me dei conta de que Naíma tinha voltado, por conta própria, para cima da cama. Era a primeira vez que subira sozinha, que se preparara para pular do piso ao almofadado do colchão, sem sequer latir para me chamar a atenção. Vi ela parada ao meu lado, mesmo com a visão perdida da imagem que via. A tristeza que se enraizava em mim não era mais pelo sentimento de revolta por ter ficado distante, mas pela incapacidade, pela dúvida e pela ausência de respostas.

Do meu estado alheio fui retirado quando meu celular começou a tocar. Demorei um pouco para achá-lo entre os travesseiros. Não tinha voltado completamente à razão, atendi a chamada supondo que sabia quem era, mesmo sem ter certeza de ter visto o nome no visor do aparelho.

— Nolan?

C’est moi.

Nolan era como incenso que acalmava a energia que circulava dentro de mim. Sua voz tinha essa capacidade quase mágica de apaziguar todo meu sistema, de me trazer harmonia quando eu me perdia no fundo de minhas tormentas. Só que dessa vez, eu apenas ouvia o som de sua voz, mas não a sentia.

— Eu sei que deve ter muita coisa passando na sua cabeça agora, e os céus sabem o quanto eu relutei para não lhe atrapalhar nesse processo, mas eu queria me certificar se você estava bem.

— Você não me atrapalha nunca, Nolan. Eu estou bem.

— De verdade?

— Sim senhor! – Não tinha a concentração suficiente para rir de modo confiante, mas um áspero som saiu de minha garganta, eu não queria falar que estava tão impactado após voltar de lá.

— Uhm, okay. Eu quero que você me avise qualquer coisa que precisar, me ligue a qualquer hora que queira, Hugo. Não quero que você ache que não tem apoio. Eu vou deixar você voltar para o seu mundo agora, mas amanhã gostaria de te pegar aí para almoçarmos, está bem? Eu te pego por volta das onze.

— Okey dokey.

— Boa noite, Hugo.

Pobre Nolan, deve ter ficado imaginando incontáveis teorias ao me ouvir tão evasivo assim. Mas eu me sentia cansado, não com ele, mas comigo mesmo, com todo esse dia, que eu mal conseguia movimentar meus lábios para falar qualquer coisa.

Não eram nem dez da noite. Meu corpo estava parado naquela cama havia umas duas horas, e mesmo extremamente sonolento, eu não dormia. Continuava a olhar para o teto, sem sintonizar em nada. Minha mente era uma como o mar que infindavelmente quebra suas ondas na praia, eternas marolinhas indo e vim para o oceano. Aos poucos, na claridade do lustre ao centro do teto, minha visão foi se apagando, enquanto percebia na luz um rosto se distanciar de mim.

Iuri... não. Ele...

— Eu sei que a vista daqui de cima é encantadora, mas eu me arrumei todo para vir almoçar com você e você nem me deu bola.

— Ãnh? Ah Nolan, me desculpe. – Eu nem me dei conta de que ele estava tentando conversando comigo. Fiquei olhando por entre os vidros das janelas e analisando todo o horizonte da cidade do alto do prédio que era o restaurante.

— Você tem certeza que dormiu bem?

— Dormi sim, Nolan. Peço desculpas. Mas desse momento em diante, você terá minha total e incondicional atenção. E por sinal, você está maravilhosamente belo hoje, eu não tinha o elogiado antes porque, mesmo assim, não está nada aquém do que você geralmente está. Mas foi meu erro, você merece ser elogiado a todo instante, estou certo que Narciso se sentiria horrivelmente feio se visse o seu reflexo no lago.

— Não precisava da ironia, mas eu vou aceitar o elogio.

— Eu intentei em dizer cem por cento do que eu disse.

— Bom, você estava tão distraído que acho que nem percebeu quando o garçom veio nos atender, acabei pedindo o mesmo para nós dois. Espero que goste de truta do mar grelhada.

— Está ótimo.

Nolan era atencioso, mas mais que isso, ele se importava em entender a situação. Seus olhos procuravam nos meus qualquer abertura para me impulsionarem a falar.

— Desculpe mesmo, Nolan. Ontem eu fiquei exausto depois de voltar do apartamento. E acho que ainda estou um pouco desgastado de ter vivido aquilo.

— Hugo, eu vou ter que fazer uma tatuagem bem na minha testa implorando que você pare de se desculpar comigo. Você nunca faz nada de errado. E eu compreendo perfeitamente, você enfrentou de vez um passado que você tinha obstruído do seu presente. Não é uma experiência fácil, não mesmo.

— Você fala com certa propriedade de causa. Acho que também não deve ter sido fácil para você, na sua juventude.

— Eu ainda sou bem jovem, tá bom! – Ele riu me repreendendo, mas a verdade é que Nolan também não havia tido o que se pode considerar a melhor das infâncias. Eu não sabia a fundo os detalhes, e tinha certo receio de perguntá-lo, mas só pelo fato dele ter perdido os pais e ir morar em um orfanato, não deve ter sido nada feliz. – E eu nunca me importei muito com o que o destino guardou para mim.

Nolan era impressionante. Mesmo não sendo a pessoa mais detalhista quando respondia sobre a sua vida, seu olhar não era nada evasivo, me explorava por inteiro, me chamando a entregar-me por inteiro, para que não ficasse nele o foco da nossa conversa.

— Com licença, cavalheiros. – O garçom finamente vestido veio nos servir. Parecia ser o próprio chef da cozinha, se não fosse pela boina que usava em conjunto com os demais garçons do restaurante. – Uma entrada de burratas wilthsire para dois e duas trutas do mar grelhadas. Aqui estão as taças dos bellinis de morango e baunilha.

— Muito obrigado! – Respondemos nós dois em cordial sintonia. A comida parecia deliciosa, a arquitetura dos pratos era quase hipnotizante, a ponto de que admirá-los era plenamente capaz de me saciar.

Peguei minha taça, bebi um pouco daquele coquetel espumante. O sabor da baunilha gaseificada com morango era divino. Nolan puxou um pedaço daquela burrata cremosa, era pecaminoso o jeito no qual o queijo escorria e formava ligas ao ser puxado.

— Você disse que ir ao apartamento foi desgastante. Mas teve algo em específico que drenou suas forças?

— Eu não... acho que não. – Aquela era uma pergunta ardilosa. Porque na verdade, toda a situação foi exaustiva. Entretanto, o que realmente sugou toda minha energia foi ler a carta de Iuri. E por alguma razão, eu não estava tão confortável assim em contar isso para Nolan. – Eu só não esperava que seria intenso dessa forma.

— Compreendo. – Disse ele engolindo o pedaço de burrata que mastigara. – As coisas vão se ajeitando na sua cabeça aos poucos. Você não precisa correr para que tudo se acalme dentro de você. Com o tempo, tudo vai se colocando no seu devido lugar.

— Eu espero...

Eu tinha plena ciência de que fora minha culpa que Nolan estava envolvido nessa história, que eu fora quem o pediu para que me acompanhasse até lá ontem, e eu estava feliz que não tive que ir até aquele apartamento sozinho. Só que eu não me sentia confortável em falar desse assunto com ele agora. Não sabia bem o porquê. Apenas não queria ter que falar das sensações que tive visitando aquele lugar, de como imergi completamente dentro daquela experiência, das visões que tive, das sensações que senti, das emoções que vivi. Não queria ter que falar de ter visto meus pais, da minha epifania ao pensar em Iuri e ao ler sua carta. A carta. Definitivamente não queria ter que falar da carta. Não agora. Não com Nolan. E não saber o porque me sentia dessa forma começou a me irritar.

De repente a imagem de Iuri me veio à cabeça, as fotos que vi na casa de Nolan e no sótão com tia Teresa. Só serviram para me deixar ainda mais irritado com tudo e tratei logo de fechar minha mente para qualquer tipo de pensamento que ousasse buscar recordações dessas fotos.

— Hugo, você está de recesso da biblioteca essa semana por causa da dedetização, certo?

— Sim, porquê?

— E suponho que não esteja a faculdade sendo dedetizada também, está?

— Erhh... acho que... não.

— Então o senhor ainda tem aulas?

— Tenho... Mas não precisa se preocupar! Eu estou longe de ter problemas por faltas, e ninguém sequer vai dar falta de mim lá.

— Uhm, de toda forma, você não pode ficar matando aulas assim. Ainda mais na reta final do seu curso. Eu não quero que você fique com problemas na faculdade por causa disso.

— Não se preocupe, Nolan, hoje mesmo eu vou para a aula, se isso for o fazer ficar mais tranquilo.

Suas perguntas estavam completamente vazias de propósito. Na verdade, parecia que ele distraía minha atenção enquanto conseguia o que queria apenas de olhar para mim, ou que se preparava para conseguir em suas próximas jogadas.

— Ótimo, eu mesmo vou levá-lo à faculdade hoje.

— Nolan, não há a menor necessidade.

— Não há, mas eu quero. Daqui nós vamos para o meu apartamento. Quando tiver na hora de te levar para a faculdade, passo com você no seu flat, você pega o que precisa e vamos para te deixar na faculdade.

— Para que vamos passar no seu apartamento então? Não é melhor irmos direto para o meu?

— Estamos mais perto do meu, e eu quero me aproveitar um pouco de você antes... digo, da sua companhia. – Aquele sorriso, era como olhar diretamente nos olhos do pecado e aceita-lo de bom grado.

Eu olhava para seu sedutor olhar e me perdia na sacralidade de sua beleza. Como era belo, Nolan. Eu me sentia cada vez mais e mais apaixonado por ele, mesmo que você um martírio conseguir verbalizar esse sentimento. Esquecia completamente o rumo de nossa conversa.

— Hugo, eu já ia me esquecendo. Você mencionou tanto seus tios esses últimos dias, como eles estão?

Eu não esperava por uma pergunta desse tipo vinda de Nolan. Na verdade, era tão estranho pensar nele se importando com assuntos tão banais que acabei sentindo um pouco de receio, me despertando completamente para o momento ao meu redor.

 - Eles estão bem, eu acho.

— Você não anda tendo notícias, nada sobre a recuperação da sua tia?

— Eu não estive em contato com eles nos últimos dias. Na verdade, eles devem ter voltado para Moscou, quando estava lá ouvi uma conversa de que tia Teresa tinha que fazer os exames de acompanhamento lá. Por que a curiosidade?

— Por nada. Só que você falou tanto deles nesses dias, e acabou não mencionando mais nada sobre eles, acabei lembrando e quis te perguntar. Afinal de contas, você os reconheceu bem rápido naquela foto na estante do apartamento do seus pais. O homem na foto, seu tio, correto? E qual o nome dele? Heitor... Terry... Gerry... He...

— Henry.

— Isso! Henry. Henry... qual é mesmo o sobrenome da sua família, Hugo?

— A gente não tem o mesmo sobrenome familiar. Eu tenho o do meu pai, que é Costello. Iuri e tia Teresa adotaram o sobrenome da família da mãe do tio Henry. Górki, o sobrenome deles.

— Verdade, você tinha mencionado mesmo o sobrenome dele.

— Mas tem algum motivo que você quis saber qual o sobrenome dele?

— Motivo algum, já lhe disse. Mera curiosidade. Você me disse ontem enquanto estávamos no apartamento dos seus pais. Eu tentei me lembrar agora e não consegui, por isso perguntei.

Ele estava me fazendo essas perguntas genéricas, sem sentido aparente. Por um momento tive medo de que ele se entediara comigo e apenas tentava ser educado, perguntado trivialidades quaisquer. Mas esse não era Nolan, ele fazia essas perguntas apenas porque se importava comigo, e ele era muito atencioso, se importava com o que eu falava, por isso tentou guardar essas informações.

Pensar nisso me fez esboçar um suave sorriso de canto, ao que ele percebeu e sorriu de volta para mim. Céus, como era possível esse homem?

O silêncio que imperou entre nós fora intercalado pelas mordidas profundas na comida que nos era servida. Por toda refeição permanecemos em silêncio, mas sem distrair o olhar um do outro, era como se conversássemos por telepatia, sentia que Nolan conseguia entrar em minha mente e ouvir cada um de meus pensamentos. Quando dei por mim, tive a sensação de que ouvia ele chamar meu nome quando passava muito tempo seguido olhando para meu prato, então dirigia meu olhar para ele.

— O que você quer comer de sobremesa? – Não tinha pensado ainda, mas era importante ter um doce nesse momento.

— O cheesecake que passou por nós agorinha a pouco parecia bem apetitoso.

Ele fez um breve sinal com os dedos da mão, sem suspende-la por completo no ar, e logo o garçom que atendia nossa mesa estava anotando o que Nolan pedia.

Esse almoço era uma aflorada expressão de ternura, e Nolan fazia muita questão de que tudo estivesse na mais perfeita ordem. Mas eu não conseguia me sentir entregue, por mais que evitasse devanear ou lançar minha mente por além dos vidros que nos cercavam nesta torre, simplesmente não atracava na presença do presente.

Comemos nossa sobremesa, e Nolan bem que tentou aproveitar do aumento da minha glicose para tentar me quebrar a tensão um pouco, estava claro para ele que eu não me sentia totalmente confortável. Pobre alma, se importava tanto em me fazer sentir a perfeição em sua presença, que acaba por me deixar tenso achando que eu o dava extremo trabalho, e que logo, logo ele se cansaria de mim. Saímos do nosso lugar acima das morna temperatura que se dispunha sobre a cidade, mas antes que descêssemos pelos infindáveis andares, Nolan deixou uma gorjeta com o garçom e o agradeceu pelo excelente atendimento, ele nos olhos atordoado, não acreditou quando viu o maço de notas enfileiradas, provavelmente era quase o valor de seu próprio salário, se não fosse maior.

Quando desci do carro, o frio da terra que envolvia as paredes de concreto do subsolo que ficava a garagem do prédio me fez lembrar da primeira vez que desci nesse prédio com Nolan. E aqui estava eu de novo, e nem tinham se passados tantos dias assim. Só que a sensação era que eu e Nolan nos conhecíamos a tantos anos, que era difícil separar a ideia dele de tudo que se passava na minha cabeça.

— Venha, vamos descansar um pouco. – Nolan me puxava pela manga da minha camisa, me chamando para o acompanhar em direção ao elevador. Já de dentro do apartamento, eu observava aquele espaço com a mesma admiração que tive da primeira vez que passei meus olhos por essas paredes. Era tão belo, aquela sala em cedro, com a única parede em azul petróleo sob perspectiva, criava uma dimensão completamente embriagante. Tudo era tão coeso nesse apartamento, a mobília, que mesmo moderna e tecnológica, comungava perfeitamente do ameno clima que as parede de madeira criavam, transformando as sombras das portas que se abriam por entre as paredes da sala, como verdadeiras passagens por onde se expandia o cosmos criado por esta conjunção de atmosferas, era a caverna de Platão aplicada à arquitetura.

Nolan voltou descendo as escadas do segundo andar, me olhando com desentendimento por eu não o ter acompanhando até o quarto. Olhei para ele e depois para o sofá. A sensação da noite em que cheguei de viagem da Suíça e estive ali com ele me tomou o corpo. Lembrar de seus dedos percorrendo meu corpo, eu sentado sobre ele o chamando a me fazer seu, controlando seus ímpetos para que buscasse refugio em mim. Seus lábios mapeando meu pescoço, sua respiração sobre minha pele ditando o ritmo do pulsar do meu coração.

Balancei a cabeça tentando disfarçar o nervosismo que me tomou por ter tais cenas em minha mente. Fui até o sofá e me deitei recolhido no recôndito do almofadado, olhando incitante em direção aos degraus nos quais ele estava parado. Desceu um por um, caminhando o braço estendido por trás sobre o corrimão, trazendo os dedos dedilhando pelo metal até serem suspensos no nada.

Como o mais astuto dos felinos, veio se esquivando entre os móveis, pausando a caminhada e buscando me domar com seus olhos. Mal já sabia ele que eu jamais ousei em relutar, ou talvez ele sempre o soubera e estava apenas se divertindo mais com a fácil conquista. Não sei se consegui terminar de piscar meus olhos quando ele já estava sobre mim, com seu corpo detendo cada reação do meu, suas pernas entrecruzadas com as minhas, suas mãos segurando minha cintura, seus olhos equilibrados paralelamente com os meus. Prontos novamente.

Levantei um dos braços e passei delineando os traços de seu rosto. Era tão belo, e como eu amava aquele rosto, como amava o homem que o tinha. Não era apenas belo, era estonteantemente belo, e a sua conditio sine qua non era a alma que o habitava, não seria tão belo assim se não recebesse Nolan em seu interior. A beleza não era meramente física, refletia a beleza interior do encanto que o era.

— Podemos ficar deitados?

— És Zeus e castiga-me como se fosse eu Tântalo em pessoa. Impede-me de me saciar, mesmo colocando meu sustento a minha frente. – Ele então tombou seu corpo ao lado do meu, e com as mãos sobre o topo de minha cabeça, deslizando os dedos por meus cabelos, suspirou profundamente, em enorme contragosto. – Tão perto e, ainda assim, tão longe.

— Você não cometeu pecado algum para que fosse castigado, Nolan.

Encostados face a face, conectados pelo ponto médio de nossas testas, adormecemos mansamente sobre o sofá. Como sentia leve minha alma. Era possível que eu a tirasse para fora do corpo carnal e a deixasse subir eternamente à procura da morada dos Deuses.

Nolan aparentava estar cansado, não devia ter dormido bem noite passada. Não mexeu um músculo sequer quando me levantei do sofá após acordar. Fui até a cozinha pegar um copo de água e voltei para a sala. Apoiado na estrutura do sofá, debrucei meus braços sobre as costas do mesmo e fiquei observando Nolan dormir. Tão entregue ao sono que aproveitava. E ainda tão belo. Admirei sua beleza por algumas dezenas de minutos, era hipnotizante o efeito daquele homem adormecido a minha frente.

Voltei para guardar o copo na cozinha, de repente, tive a sensação de que ouvira algo ser derramado. Olhei ao redor e não vi nada no chão da cozinha. Cheguei até a porta da sala, tudo estava no lugar. Caminhei até Nolan dormindo no sofá, continuava profundamente perdido em seus sonhos.

A escada para o segundo andar destacou em minha visão, então fui até ela, em um caminhar vagaroso. Subi até o quarto de Nolan, a porta aberta denunciava a perfeita organização que se encontrava tudo ali. No pequeno hall eu encruzilhava todas as saídas para os cômodos superiores, fiquei novamente de frente com a pintura da mulher em sombras esfumaçadas, segurando em suas mãos a rosa vermelha, único ponto de cor que fugia das tonalidades de preto, cinza e branco. Quando olhei em panorama a imagem pintada, lembrei que aquela silhueta de mulher era uma pintura da mãe de Nolan, foi quando o sufoco na garganta me tomou mais uma vez.

Desatinei minha atenção do quadro quando percebi a porta oriental aos fundos sendo empurrada pelo vento. Era a do atelier, então me veio à mente que provavelmente a porta da varanda não tinha sido fechada e era o barulho do vento empurrando a porta que eu tinha ouvido.

Entrei no atelier e vi que tinha razão. A porta da varanda estava aberta, e o vento invadia ali como os guerreiros gregos ao saírem do cavalo em Tróia. Tão bravo percorria o ambiente que havia derrubado um dos vasos de flores, derramando a terra do vaso ao chão, com algumas das camélias amassadas sob o barro do vaso. O coloquei novamente de pé e juntei com a mão a terra, colocando-a de volta e ajeitando o pequeno arbusto em seu interior. As flores que se amassaram eu as arranquei e voltei com elas da varanda para dentro do atelier.

O cavalete vazio, nenhum sinal de ter sido usado nos últimos tempos. Assentei-me na banqueta em frente a ele, fiquei pensando em como devia ser estonteante observar Nolan rabiscar por uma tela branca, dando vida às imagens que percorrem em sua mente, e então criando a mais bela obra que a humanidade já contemplou. As gotas de tinta que respingavam nele seriam as próprias bençãos oferecidas pelos céus por tamanho potencial criativo. Eu ficava em estado de delírio apenas de imaginar.

Levantei-me e me dei conta que haviam alguns quadros enfileirados na esquina das paredes traseiras do atelier, todos virados contra o ambiente, com as telas em contato com o frio da tinta que cobria os tijolos e o cimento da parede. Devia ter umas três telas, estavam cobertas com um fino lenço, que apenas tampava a parte de cima delas. O removi parcialmente, apenas descobrindo a primeira tela, e a virei para mim. Eu não sei qual a sensação me percorreu o corpo, mas senti que seria impossível emanar qualquer palavra sobre o impacto que me foi defrontado.

Era incrível! Inexplicavelmente incrível. Não havia conformação alguma, apenas ideias abstratas coloridas pelas tintas, e o enorme borrão expandindo do centro da tela, era vinho? Eu não sabia explicar a confusão de formas e tons que se amontoavam na tela de seda branca, sabia apenas apreciá-la, e poderia fazer isso pela eternidade.

Nolan era surpreendente. Tenho para mim que eu poderia instigá-lo a me contar qual a sensação que passava por seu corpo quando ele fez aquela obra de arte, e ficar o ouvindo falar pelo resto da minha existência. Era arte, ele, assim como a pintura.

Por mais que me doía ter que voltar com a tela para seu lugar, me pareceu ser melhor deixar tudo do jeito que estava antes que Nolan acordasse e me surpreendesse no atelier mais uma vez. As alinhei como estavam e peguei o pano que as cobria parcialmente por cima.

Ajeitei as telas e me pus logo para fora dali, cerrei a porta do atelier para o hall e desci as escadas para a sala. Nolan ainda dormia tão terno e suave sobre o sofá. Pensei em me aconchegar por detrás dele, mas olhei as horas no relógio digital na parede e vi que já eram quase seis horas da tarde, precisava começar a arrumar para ir para a faculdade. Tinha ainda que passar em casa para trocar de roupa e pegar minha mochila, mas não conseguia juntar coragem para acordar Nolan.

Cortei a sala e a copa, fui até a cozinha e pensei em deixar um lanche preparado para ele quando acordasse. Não ia arriscar cozinhar nada para acabar colocando fogo no apartamento. Mas me esforcei ao máximo para fazer o melhor sanduíche de atum e patê de alho, que já estava pronto na geladeira e usei para incrementar no sanduíche. Peguei uma caixinha de chá branco com lichia na dispensa e esquentei a água na chaleira, nenhum acidente até então. Consegui montar tudo em um planejamento estético sobre a bandeja, mas precisava de um pano para decorar ao lado do prato.

Cacei por algum nas prateleiras da cozinha, mas não achava nada que servisse, nem na dispensa. Fui até a copa e a sala, tentei abrir delicadamente as portas dos armários, sem que os rangidos fossem estridentes demais de modo a acordar Nolan. Achei uma gaveta dentro da arca da copa, com alguns panos e forros. Puxei um paninho branco, mas um lenço vermelho veio junto e caiu sobre o chão. Era um lenço lindo, rubro carmesim, na seda mais bem trabalhada, parecia até ser um único fio que deu forma ao todo. Em uma das diagonais extremas do lenço, um bordado tão delicado sob o mesmo tom de vermelho, talvez levemente mais opaco, que quase não dava para percebê-lo, a não ser passando pelo dedo e sentindo a textura e o relevo. Era uma flor, parecia muito as camélias geométricas que Nolan tinha no atelier. Peguei o pano e o lenço e voltei para a cozinha.

Ajeitei o pano por cima do prato e o lenço em uma dobradura no copo transparente com a camélia que eu arranquei do vaso que caiu. Ergui a bandeja e caminhei para a sala, ia ter que acordá-lo, só esperava que ele não era do tipo que acordava assustado, para que não me fizesse derrubar tudo.

Aproximei-me do sofá, um leve sussurro pronunciando seu nome e nenhum retorno. Então me assentei no braço da lateral esquerda do sofá, alinhei a bandeja no colo e a sustentei com uma mão. A mão livre, passei sobre a cabeça de Nolan e comecei a acariciar seus negros cabelos. Ele se afundava mais e mais na minha mão, aceitando plenamente a carícia, mas nada de acordar. Passei meus dedos pela pele de seu rosto, até o máximo que consegui esticar meu braço em seu pescoço.

De repente então senti ele segurando minha mão em seus lábios, a beijando e me puxando.

— Nolan, não me puxe. Eu vou derrubar tudo em você desse jeito.

— O quê?  - Disse ele abrindo a boca e se ajeitando para se assentar no sofá. Esticou os olhos entreabertos para mim, viu a bandeja com o lanche e sorriu, mas de repente, seu sorriso sumiu e sua expressão fora sugada para uma exposição intimidatória de espanto. – Hugo, o que é isso?

— Eu preparei um lanche para você, eu tentei...

— Onde você arranjou esse lenço e essa flor?

— Ãhn? – Eu não entendi bem o porque ele estava me questionando tão seriamente sobre isso. O que tinha demais naquele lenço junto da camélia? – Você deixou a porta da varanda do atelier aberta, eu então ouvi um barulho de algo caindo e fui lá ver, um dos vasos tinha caído e umas flores se amassaram, eu tive que arrancá-las, mas essa eu ajeitei na bandeja para o seu lanche. Eu procurei um pano para enfeitar a bandeja. Mas me desculpe, eu não devia ter mexido nas suas coisas, eu não tive a intenção de desrespeitar você e sua casa, eu...

— Hugo! – A expressão de repressão era ainda mais nítida em seus traços, todas as linhas de seu rosto se intimavam a opor autoridade a sua posição. Eu fiquei gélido e estático ao olhar para ele daquele jeito. O ouvir chamar meu nome nesta entonação derrubou completamente minha paz de espírito. – Eu já lhe disse antes... E não quero ter que falar isso de novo. Pare de pedir desculpas, você não fez nada de errado. Eu acho que ainda estava meio sonolento, confundindo um pouco a realidade, acho que sonhei com esse lenço, por isso perguntei. Não quis parecer rude, me perdoe se eu fui. – Ele beijou a palma da minha mão, ainda a segurava.

Ficou de pé e tomou a bandeja do meu colo, a colocou na mesinha de centro e se voltou para mim. Passou a mão sobre os cabelos despencados em minha testa, aliciou a pele do meu rosto e me beijou. Eu ainda não estava revigorado, minha reação era a mesma, estático e assustado. Não consegui captar bem o que tinha acabado de acontecer, mesmo que fez todo o sentindo que eu o acordei no meio de um sonho e que ele ainda não estava completamente consciente. Só que, mesmo assim, mesmo com o beijo que eu recebia, não consegui retirar da minha mente a imagem da apreensão que restava amontoada na sua face.

— Vamos, vamos comer esse lanche na cozinha. Depois eu vou te levar para a faculdade. – Ele foi andando com a bandeja na minha frente e parou uns passos após, se virando para mim e me chamando para acompanha-lo. – Vamos?


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