Culpa e Perdão: O pior de uma mente apaixonada escrita por NightlyPanda


Capítulo 21
Capítulo 21 - Caminhos e Mentes Movidos




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Nolan

O impositivo silêncio da madrugada me incomodava. Fazia com que ficasse cara a cara com meus pensamentos em um infinito campo de batalha, onde indiferente do cenário, impossível era que eu saísse vitorioso.

Tudo tão calmo do lado de fora. Em minha mente, um turbilhão de soldados marchando prontos para o combate.

“Por que ele tinha que ser sobrinho do Górki?”.

Ah, Hugo. Hugo, Hugo, Hugo. Como eu pude não perceber que a oferenda era alta demais, o sacrifício fácil demais. Mas tinha um custo. E esse custo, como eu não pude prevê-lo? Minha mente sofria o pior dos flagelos, só de pensar na hipótese de aproximá-lo de todo esse caos, sinto-me lançado na arena aos leões. E eles estão famintos.

“Você não merece esse azar na sua vida, Hugo”, mas eu sou egoísta o suficiente para não abrir mão de você. Eu não tinha como deixá-lo, mesmo que agora eu sabia que mais do que nunca ele corria grandes riscos. Não por ser sobrinho do Górki, não por isso. Mas agora estávamos todos sob os mesmos trilhos, uma hora tudo pode se chocar, e não saber se eu seria capaz de te proteger desse embate, era meu verdadeiro martírio. Porque uma hora esses mundos podem ambos apontarem no mesmo horizonte, e isso era tudo que eu mais temia na vida.

Eu não quero mentir para você, mas em situações como essa, a verdade é o grande problema, a grande dor. Eu não posso simplesmente ignorar todo um passado sombrio e achar que seria como contar uma briga de família, um acidente de infância, um segredo de criança. Crianças não matam, ao menos, não é o que deviam.

“E ele? O que ele fará quando souber disso? Será que já sabe? Céus, ele sempre sabe...”, mas não dessa vez. Ele tinha esse dom nato de capturar a verdade seja onde fosse o menor cubículo que ela estivesse escondida. Mas isso com os outros. Isso com qualquer um, não comigo. Estaria claro se ele soubesse. Talvez não estivesse mais aqui se fosse o caso. Definitivamente, ele não sabe.

Não sabe e nem tem como saber, ao menos por agora. Hugo não o disse nada enquanto estava lá, ele teria me dito se tivesse falado algo do tipo com seus tios, eu teria percebido. E ele não é o tipo de homem que perguntaria isso diretamente para Hugo. Além do mais, ele não teve porque ter monitorado todos meus passos para descobrir que eu estou junto de Hugo. Mas quando souber? Ele me chama de filho, diz que sou a sua vontade reinaugurada. Tenho total acesso à sua pessoa, mas quando descobrir que eu me envolvo com seu sobrinho? Seu familiar, de sangue! O que ele fará se souber que coloquei Hugo em minha vida e com abertura a descobrir sobre quem é de verdade o homem que ele chama de tio Henry?

Eu preciso evitar que ele descubra, preciso manter a cabeça calma, não pensar em Hugo sob hipótese alguma quando na presença dele, tão somente ouvir sua voz já deve ser capaz de me fazer bloquear minha mente por completo.

Por que eu estava surtando com isso? Justo eu, que sempre analiso tudo tão friamente, tão calmo na intempérie, já enfrentei tufões, oceanos em revolta e vulcões, nunca sucumbi ao desequilíbrio, porque então o estava fazendo agora?

“Hugo, me desculpe, mas eu não posso perdê-lo!”

Eu não saberia explicar nada a ele nem me preparando para isso por uma centena de séculos, só que eu o amava. O amo e a segundos atrás na escala do universo, eu sequer lembrava o que era amor.

O barulho da água fervendo no bule me captou o olhar. Fui à dispensa pegar algumas ervas, o difusor e um pouco de açúcar mascavo. Preparei meu chá de hibisco e canela, peguei a xícara para o servir e fui andando até chegar nas portas de vidro da varanda da sala. As abri e me assentei sobre um dos acolchoados divãs, recolhi minhas pernas o mais próximas de meu torso, apoiei a xícara de chá à altura do meu queixo e, me aquecendo naquela silenciosa e gelada noite, deixei que meus pensamentos buscassem conforto na imensidão escura do universo.

Abri os olhos e percebi que tinha adormecido no frio da noite que me acobertava. Sem mexer um músculo se quer, retraído sobre o divã, a xícara ainda permanecia encostada sobre meu abdômen, completamente gelada. Já eram pra lá das duas da manhã, me levantei e fui até o beiral da varanda. A cidade tomada pela escuridão respirava acalentada, tomada pelas luzes que emanavam a cada canto que os olhos podiam enxergar, a noite era apenas um filtro que se transpunha, sem nunca parar, mantendo aquelas frenéticas almas como máquinas sem propósito.

Eu devia ir dormir, já estava começando a pensar coisas demais, daqui a pouco estaria olhando a altura do prédio e pensando na agitação que abençoava o corpo em queda livre.

Eu posso chegar até o que quer que for que seja suas asas, e vou arrancá-las com minhas próprias mãos”.

Acordei agitado, o suor corria pelo meu rosto esfriando todos meus poros. Hugo. Eu odiava juntar esses pensamentos ao seu nome. Levantei e deixei toda a agitação que me acordou ser apenas lembrança de um péssimo sonho.

Ajeitei a cama, fui ao banheiro me arrumar e depois até a cozinha tomar meu café da manhã. Precisava passar no escritório na empresa e ajeitar as preparações para o fórum econômico ao fim da semana. Se Martha Nasser não estivesse mentindo, pode ser que realmente eu conseguiria alguma pista a mais sobre toda essa confusão que eu nem mais sabia como tinha entrado. Mas agora ela me conhecia, sabia quem eu era, não podia simplesmente esquecer.

— Ah, se eu não tivesse sido tão curioso... Mas aí não seria eu mesmo.

Estava com minha mente completamente para longe das aflições que me acordaram, quando vi o lenço no copo de vidro sobre a mesa.

“Ah Hugo, porquê?”

Não reconheci de onde veio a tensão que me tomou ao vê-lo, mas parecia que estava frente a frente com uma bomba programada para explodir nos próximos segundos e eu era incapaz de desarmá-la. Minha mão tremia quando a levei para pegar o lenço. A calma que tomou meu ser ao ver que não era o lenço que eu pensava que seria. Um desnecessário desespero, completamente à toa.

“Eu o olhei tão seriamente pelo lenço errado. Oh Hugo, me perdoe.”

Eu não podia ficar cometendo esses deslizes, não podia deixar transparecer qualquer sinal de conflito entre meus mundos. Mas fora inevitável o espanto em vê-lo tão perto de algo que simboliza a essência desse Nolan que nada mais é que uma máquina a serviço da morte. E imaginá-lo descobrindo esse meu “trabalho”, pensar na cara de desprezo e horror que ele faria para mim... eu não sou forte o suficiente. Tinha treinamento para tudo no mundo, menos para lidar com ele me detestando. Ainda menos para lidar com a hipótese de colocá-lo no meio desse completo caos.

Respirei fundo. Precisava manter minha mente ciente de que todas essas possíveis hipóteses teriam que ser trabalhadas por mim, mas não agora. Agora eu precisava investigar Suzanna.

Na estrada para a empresa, a imagem de Martha e Suzanna na casa de barcos conversando à fraca luz daquele galpão, e depois fazendo de tudo para me matarem. Os olhos de Martha fixos em mim enquanto fugia com o braço machucado. Sua voz tentando me enfeitiçar na varanda do restaurante. Ela não era qualquer pessoa. Não. Eu jamais devia subestimá-la.

O agitado cenário dos corredores da HG+ era quase uma cena de guerra, pastas sendo carregadas de um lado para o outro, pessoas se chamando por entre as salas, cafés indo e vindo, de vez em quando uma pessoa desorientada passava sem sequer conseguir verbalizar o que precisava fazer.

Entrar na calmaria da minha sala era como estar em um local completamente diferente do resto do prédio. Minha atenção foi completamente tomada pela carta ao centro da minha mesa. Nada escrito em nenhum dos lados do envelope. Removi o lacre medieval lacre de cera e retirei o papel de seu interior, apenas pelo lacre eu já sabia de quem era aquela carta, e isso foi o suficiente para por em desordem minha tranquilidade.

Górki. Como eu já sabia. Pagamento em conta, elogios pelos resultados. Uma observação. Continue o bom trabalho, mas se atente para não se tornar sua própria caça.

Saberia ele de mim e de Hugo? Impossível! Não tinha como ele sequer cogitar essa situação. Hugo não o tinha falado nada, eu tinha certeza. E ele nunca foi de vasculhar minha vida privada. Apenas se importou que eu entregasse resultados. E eu sempre os entreguei, ultrapassando a excelência. Por que então a observação?

Seja como for, Górki sempre foi um homem misterioso, e eu não iria agora tentar decifrá-lo, ainda mais depois de todos esses anos.

Liguei meu computador, adaptei a conexão com a minha intranet e pesquisei sobre o Fórum Econômico Nacional. Ocorreria neste sábado, centro de exibições ExCeL. E lá eu estaria.

Aparentemente, as maiores empresas do país estarão representadas. Existem inúmeras alas, muitas sobre modernização da economia, desenvolvimento sustentável, globalização do mercado, e, inclusive, uma ala dedicada ao setor da construção civil, com painéis de várias empresas e palestras dos maiores CEO’s do país. Martha estaria? Parecia-me que se ela me deu essa informação, não estaria ela lá em pessoa, mas provavelmente seus olhos se farão presentes. Eu precisava reunir as minhas melhores ideias de como circularia pelos espaços do Fórum sem ser perturbado.

Não consegui muitas informações na rede que me pudessem ser úteis em um plano de invasão ao evento. Em uma reportagem ou outra de algum jornal online qualquer, vi que uma das empresas que foram contratas para prestar os serviços de recepção, atendimento e servir alimentos e bebidas, fora a GreatWaiter. Daí, a clássica ideia de me infiltrar como garçom.

No mais, a única coisa realmente útil que consegui tinha sido a planta baixa do espaço. Era um centro de eventos enorme, e aparentemente, todo o local seria utilizado. Eu precisava agir, tinha pouco mais de um dia e meio para executar um plano que eu sequer tinha começado a elaborar.

Passadas algumas horas, não fazia mais sentido continuar naquele escritório sem objetivo. Pelos corredores em direção ao elevador o caos ainda reinava. Tive a sensação que três ou quatro pares de olhos diferentes se voltaram sorrateiramente à minha direção, ninguém ali tinha muita coragem de me encarar. Talvez a aura que eu transparecesse não era a mais convidativa, afinal de contas.

A porta do elevador mal tinha aberto, e uma voraz força saíra de dentro. Sem perceber o mundo ao seu redor, aquele ser equilibrando o telefone entre a orelho e o ombro, com uma das mãos segurando um espelho e outra passando alguma espécie de esponja no rosto, chocou como um incontrolável veículo sem direção em mim.

— Ah meu Deus! Que desastrada! Danny, eu te ligo depois. Tchau! Olha isso, me perdoe, moço. – Eu ainda estava sem compreender a quem ela dirigia cada palavra que dizia, se a mim ou ao Danny que por sorte não estava ali neste momento. – Eu não derramei base no senhor, derramei?

— Base?

— Sim, ora. Base. Base para o rosto? Que tampa toda a pessoa morta e sem vida que precisa estar em uma reunião em quinze minutos parecendo ser a própria Branca de Neve que mesmo morta é bela. Maquiagem, meu bem, nunca ouviu falar?

Peguei a esponja e o tubo da base que ela deixara cair ao se chocar comigo, e mesmo que sem entender bem o porque daquele excesso de significados dados, olhar aquele pequeno tubo em minhas mãos me fez dispersar de todo o resto. Poderia ser essa a solução?

— Você quer experimentar? Não sei se é do seu tom, mas se quiser, fique a vontade, eu só queria te pedir um favor, claro, se não for incômodo, se possível dar uma agilizada, eu meio que estou, tipo, muito atrasada.

— Ãhn? Ah sim, sua base. Aqui está.

— Não vai querer passar? Achei que era adepto a esse tipo de disfarce, esconde bem uma alma falecida a muito tempo. Vai por mim. Melhor que isso, só um copo cheio de Ale, mas infelizmente ainda estamos em horário comercial. Bom obrigada, e até mais.

Tampouco ela se foi e eu estava descendo no elevador, não pensando no inexplicável encontro que acabara de ter, mas na ideia que poderia ser a luz para um bom plano de ação.  Peguei meu celular e digitei algumas rápidas palavras e enviei uma mensagem urgente para alguém que a muito eu não via, mas era exatamente quem poderia me ajudar nesse momento.

Como eu dirigia imprudente quando estava aéreo pelas ruas da cidade. Ficava tudo tão automático em meu modo de dirigir que não me importava se era só eu pelas pistas ou se enfrentava imensidões de veículos à minha frente. Seguindo até chegar em meu apartamento, eu só esperava um toque no meu celular para saber se o número que eu entrei em contato ainda existia. Esperei quase até o fim do dia para uma resposta, e apenas no tardar da noite, tive um sinal de que não estava ilhado em minhas ideias.

Você deve mesmo estar desesperado se busca ajudo comigo. Eu ainda sei uma coisa ou outra. Mas vai lhe custar caro.

Era o que eu precisava. Agora eu só tinha que estar pronto para o evento. Preparado para conseguir tirar o que eu tiver como tirar de Suzanna.

Passei o restante do meu dia revivendo a imagem de Martha na varanda do restaurante, me falando sobre não me deixar sair de mãos vazias, tentando lembrar de qualquer movimento suspeito que ela possa ter feito e eu não percebi, qualquer ato falho que passou sem que eu soubesse, qualquer informação que eu não tinha capitado no momento. Por fim, eu só conseguia me ater a ela falando que cortaria minhas asas, e como isso apertava meu coração. Eu forçava minha mente a descontruir o rosto de Hugo, para que a dor não fosse ainda maior.

O dia seguinte, eu busquei reconhecer o local o melhor que eu poderia. Não foi possível de entrar e chegar muito perto, as preparações para o Fórum no sábado estavam a todo vapor. Eu fiquei passando pelo local de carro, observando toda a estrutura, cada saída de serviço e pontos de carga e descarga. Um monte de homens entrando e saindo por todas as entradas, descarregando caixas, correndo com sacolas.

O local era cercado pelo estaleiro à margem sul, fazendo ainda conexão com o aeroporto à sudeste. Era uma área com um tráfego enorme, mas as largas pistas e as múltiplas saídas me seriam úteis. O espaço onde seria o Fórum estaria bem guardado, pelo tanto de seguranças e viaturas estacionadas no local, e nem era o dia do evento. Por ser à costa da doca, eu só conseguiria ver a parte sul da estrutura da outra margem. Que bom que eu sempre estava preparado para esse tipo de situação.

Ao fim do estaleiro, a menos de um quilômetro da ExCeL, tinham as linhas aéreas que transportavam pessoas por cima da água do estaleiro. Uma espécie de teleférico, muito mais bem estruturada e bem equipada.

Estacionei à marginal da pista e fui comprar minha passagem. Eu estava com minha mochila, a virei para frente e coloquei os óculos escuros, mesmo que com o tempo fechado, simularia algum turista oriental, estava ali apenas pela emoção de passar em uma cabine sustentada por cordas de aço sobre os navios e barcos no estaleiro. Era uma boa persona para o momento. Ainda bem que eu não estava com meu sobretudo nessa manhã.

Quinze minutos até que eu estivesse na minha cabine, acompanhado de um casal de amigas, completamente imersas em seus celulares para prestarem atenção em mim. Cruzar as margens do estaleiro não levava mais que alguns minutos, e era tempo mais que suficiente para que eu analisasse a parte insular do espaço. A “viagem” tinha algo por volta de trezentos metros sobre as águas do estaleiro. Quando já estávamos na metade do percurso, me levantei na cabine, o que causou um certo espanto nas garotas que dividiam a cabine comigo. Fui à parte leste da cabine e avistei a ExCeL. Retirei os binóculos que estavam na mochila. Enquanto as garotas cochichavam algo sobre como estrangeiros se encantam com qualquer coisa, eu ajustava o visor eletrônico dos binóculos e aumentava a grade de visão, conseguindo uma ótima imagem ampliada do local.

Naquela parte do centro, igualmente circulavam inúmeras pessoas carregando caixas e pacotes, veículos de descarga pegando cargas em caminhões e dirigindo pelas amplas pistas exteriores do local. Procurei algum lugar que me garantisse um acesso mais fácil amanhã, quando passei o visor despercebido por um funcionário escorado em um beco entre as paredes da estrutura. Apenas me atentei quando voltei a visão e ele não estava mais ali. O procurei pelas imediações, mas não o encontrava de forma alguma. Tinha simplesmente desaparecido.

Voltei os olhos para o local que o tinha visto, e foi quando percebi que ele saía de uma porta à diagonal da parede que ele estava escorado, da cor da estrutura, só era possível percebê-la quando aberta. Xeque-mate, seria ali minha entrada despistada para o Fórum. Agora eu só precisava acertar os detalhes finais para infiltrar no evento.  

Desci na estação à margem oposta, em um sotaque extremamente desajeitado, informei ao bilheteiro que tinha adorado a experiência e queria ir mais uma vez, fazendo o caminho de volta. Comprei meu bilhete e mais uma vez subi para cortar as águas do estaleiro sustentado por cordas ao ar.

De volta à margem norte, desci e fui até o meu carro. Tinha um esboço de plano em minha cabeça, e estava confiante na funcionalidade dele. Peguei meu celular e mandei outra mensagem. A rapidez com a qual estava sendo respondido me espantou um pouco.

Vai ter um espetáculo hoje, acaba às duas da manhã. Se você precisa de mim tão cedo amanhã, é melhor que venha aqui ao fim do espetáculo. Um agrado seria bom, poderia vir assistir ele todo. Quem sabe não te satisfaz. Começa quinze para meia noite, você sabe o local.

Era isso, tudo estava encaminhado. Voltei para casa, pensei em dormir já que viraria à noite, mas não tinha sono e eu estava mais que acostumado a passar alguns dias sem dormir, quem dirá algumas horas. Fui então conferir se tudo estava certo.

A abertura do Fórum era às nove da manhã, mas se eu quisesse por em prática meu disfarce de garçom, teria que estar lá bem antes, então umas seis da manhã eu já tinha que estar a postos. O governador tinha confirmado presença para abrir a mesa de Diálogos sobre a economia sustentável, que estava marcada para às onze. Com certeza ele levaria sua comitiva, e Suzanna estaria lá. Mas e Martha? Eu não tinha achado o nome da DAZus confirmado em nenhum painel, nenhuma mesa expositiva, nenhuma conferência, nada. Talvez ela não tivesse querendo se expor tão publicamente ainda.

 Meu celular vibrou, achei que seria mais alguma informação sobre hoje à noite. Como eu amava esses meus ledos enganos.

Hey, senhor ocupado! Como está? É apenas saudade, não se preocupe (ω)

Um paradoxo para chamar de meu. Era isso que era minha vida com Hugo nela. E eu me distorceria o quanto fosse preciso, ainda que sem nunca compreender, apenas vivendo as explosões de êxtase que reagiam em meu corpo.

Muito bem, senhor saudade, eu estou bem, e o senhor? Não me fale de saudades, Hugo. É o meu maior flagelo. Amanhã eu vou estar um pouco ocupado com um evento da empresa, mas assim que eu terminar lá eu vou te raptar e nós dois vamos fugir para algum canto onde o tempo não exista.

Como eu queria não estar mentindo. Eu daria tudo se pudesse realmente dizer a Hugo que um lugar assim exista, que o tempo não pode nos causar qualquer perigo, pois não teria motivos para nos separarmos se não corressem os segundos de nós.

Eu não pretendia dormir, mas ao recostar minha cabeça no sofá e fechar meus olhos para pensar em Hugo, a imagem se tornou tão real que eu apenas desliguei meu corpo e deixei que fosse conduzido para perto dele em meus sonhos.

Já eram quase dez horas quando acordei, precisava me arrumar para sair. De banho tomado e roupas trocadas, pensei no que levaria para essa missão. Dessa vez eu não podia levar nenhuma arma de fogo comigo, não seria prudente para a ocasião e o melhor mesmo era que eu não portasse arma alguma, era absolutamente necessário que eu não me envolvesse em qualquer situação que uma arma se fizesse necessária. Mas não resisti a não levar um canivete tático que fosse.

Abri o cofre que ficava no banheiro de hóspedes, atrás do sexto ladrilho de porcelanato da terceira fileira da parede principal, uma parte falsa indistinguível, onde eu guardava alguns poucos canivetes e facas operacionais. Algumas ali me brilhavam os olhos, mas seria extremamente desnecessário levar qualquer uma delas, por isso peguei meu disfarçado canivete tático automático Strider SA20. Uma lâmina preta retrátil completamente disfarçável. No guarda-roupas no meu quarto, peguei a tira de suporte para colocar o canivete na batata da perna. Olhei aquilo e não me pareceu um bom lugar, então troquei a fivela para uma de cintura e coloquei o canivete acoplado por dentro do calção.

Tinha deixado uma das minhas motos em uma garagem alugada a uns dois quarteirões do meu prédio. Dali, parti direto para meu lunático destino naquela noite.

Em um dos subúrbios mais afastados da cidade, um despencado cabaré se situava em uma desértica rua, mal iluminado pelo letreiro que tinha mais luzes queimadas que acessas. O lixo se amontoava do lado de fora, disputando espaço com alguns moribundos alcoolizados e ratos e baratas a correr por entre a sujeira. Apesar de tudo, as pessoas que se escoravam pelas portas do teatro não demonstravam a menor repulsa, pareciam estarem satisfeita com a desgraça que pairava sobre ali.

A cabine da bilheteria estava toda coberta de buracos de tiros pela madeira, o vidro que separava os clientes de quem ficava do lado de dentro estava todo estiraçado, o reflexo daquela emburrada senhora se multiplicava por cada trinca na vidraça. Comprei meu ingresso e entrei, faltavam vinte minutos para a meia-noite. Cinco minutos de antecedência, daria tempo de ir até os bastidores procurá-la.

Passei pelos corredores laterais do salão do teatro, este, com as poltronas rasgadas, goteiras que pingavam incessantemente pelo telhado, infiltrações nas paredes que pareciam mais parte da arquitetura do local. De fato, era. A única coisa a reluzir era o palco à frente do salão, precedido por um lance de três curtas escadarias, a madeira lustrada brilhava com o efeito das luzes sobre ela, a cortina de veludo vermelho não demonstrava qualquer mácula.

Algumas garotas maquiadas corriam de um lado ao outro pelos camarins nas laterais do salão, homens segurando roupas as puxavam para se ajeitarem e irem para o palco, o show estava para começar.

Sentada em uma cadeira, com sua piteira vintage e as pernas cruzadas, segurando uma taça de vinho e ditando regras com o mero olhar, ali estava, a verdadeira filha de Hécate.

Ma chérie.

— Oh mon beau. – A taça de vinho a circundar meu pescoço e o cortês beijo em cada lado da face, a serpente que procurava o sangue quente se esgueirava por mim. – Como você satisfaz meus caprichos, mon effrontée. Mas eu não me lembro de ter dado ordens autorizando ninguém de permanecer nos bastidores, ou falha-me a memória? – Disse ela olhando para um colossal brutamontes que já se portava atrás de mim.

— Eu não podia deixar de vê-la antes do espetáculo, ma belle.— Disse beijando as costas de sua mão. O enorme guarda atrás de mim me segurava já me arrastando para fora.

Arrêté! Dei alguma ordem para que o retirasse de minha presença?

— Não senhora! – A resposta choramingada daquele homem me fez assustar ao ouvir a projeção de reverência que fez em sua voz ao respondê-la.

— Agora saia da minha frente você antes que eu o transforme em meu próximo casaco de pele.

A forma engraçada como ele andava correndo movimentando os dois pés juntos. Esse teatro, não era um simples cabaré, nem um mero circo, mas um verdadeiro templo de horrores, e era daí que ela tirava toda sua fantasia e poder.

— Se quiser assistir ao espetáculo em minha companhia, estou indo para minha cabine, siga-me caso deseje. – A autoridade na voz dela era impressionante, conseguiria fazer o mais rude general militar a obedecer, apenas de colocar seus olhos sobre ele. Por sinal, das longas histórias que circulam, já tinha colocado suas mãos e outras coisas mais sobre inúmeros homens do exército.

 O cabaré era um teatro italiano clássico. Mesmo que caindo aos pedaços, tinha toda estrutura preservada. Às laterais, cabines exclusivas nas paredes para se assistir ao palco superior à plateia do espaço comum do salão.

Cada passo na madeira mofada fazia um insuportável rangido, dando a impressão de que todo o espaço estava preste a vir ao chão a qualquer momento, e de fato deveria estar. Mas ela não se importava, andava fumando seu cigarro em sua piteira, largou sua taça sobre um rapaz que passou ao seu lado, e seguiu sem sequer ter olhado para o pobre coitado.

De frente para sua cabine, dois anões a esperavam vestidos como mordomos, mesmo que estivessem aos trapos os fraques que usavam. Ela parou olhando a falsa talha dourada da porta enquanto cada um deles subiu em um tablado para abrir a ela as portas da cabine, e mais uma vez, sem nem destinar seu rosto em um ângulo que pudesse os enxergar, entrou e se assentou em sua poltrona. Acompanhei-a para dentro da cabine, que por incrível que pareça, e diferente das demais, estava completamente preservada. A talha dourada do lado de dentro da porta era verdadeira, um puro banho a ouro. O estofado das poltronas era de veludo e forrados em cetim, os entalhes das paredes todos renascentistas. Não era apenas o fato da cabine dela ser a única preservada, como de um verdadeiro teatro imperial, mas era também a única com alguém dentro, mesmo que o salão abaixo de nós estivesse, surpreendentemente, lotado.

— Assente-se mon beau, o espetáculo já vai começar.

Luzes se apagaram, pequenas vibrações vieram do solado do palco das pessoas que circulavam e se posicionavam ali. Os violonistas começaram a tocar e as cortinas abriram. As dançarinas, vestidas no mais fiel estilo burlesco moulin rouge, se portavam alegres, saudando o público, balançando suas pomposas plumas e movendo seus corpos sedutoramente pelo espaço do palco. Desceram o primeiro lance de escadas e pequenas bombas de confetes explodiram dos sutiãs das que estavam mais a frente, sobre os homens da primeira fileira.

— Diga-me, Nolan, qual o motivo que o fez voltar ao meu palácio após tantos anos?

— Preciso de sua ajuda, Circe.

— Disso eu sei. Todos vêm rastejando ao meu reino em socorro, só lembram dos meus poderes quando precisam, e depois acham ruim que eu os transformo em porco e abutres.

— Eu não vim aqui profanar seu domínio, Circe. E você já me conhece a tempo o suficiente para saber que o máximo que posso lhe dizer é isto.

Ela estalou os dedos. Em questão de segundos um dos gigantes guardas entrou na cabine e se prostrou ajoelhado ao lado dela. Ela disse algo ao pé de seu ouvido, sem mover um milímetro que queira o rosto, e logo ele saiu.

— Conheço, Nolan. E justamente por o conhecer sei que é impossível saber qualquer coisa quando se trata de você, mon cher amour.

Novamente o bufante troglodita entrou na cabine. Trazia uma garrafa de champanhe, a abriu fazendo o maior estardalhaço, colocou a taça na mesa de centro entre nossas poltronas e a serviu.

— Ele também.

— Eu não... – O olhar de canto dela em minha direção me fez mudar completamente a ideia de recusar. – Obrigado.

Igualmente encheu uma taça para mim e saiu desajeitado fechando as portas da cabine.

— Nolan, Nolan... E como você acha que eu posso ajudá-lo?

— Não há rosto que você não possa moldar, Circe. Eu preciso deixar de ser eu por um dia, preciso de um disfarce que seja mais do que apenas trocar algumas roupas. Preciso que desconfigure o meu rosto, o melhor que puder.

Ela se esgueirou para mim, largou a piteira sobre a mesa de centro junto à taça, passou as longas mãos sobre o meu rosto. Eu tinha esquecido um pouco o glamour que ela se envolvia, seu corrido vestido prateado abraçava seu corpo como se fosse sua própria pele. O castanho cabeço repicado, amoldava o rosto, apesar das vibrantes lentes verdes nos olhos chamarem toda a atenção. A marca pesada da maquiagem dava vida ao corpo tomado pelos anos de fumo, apesar de que sua pele não demonstrava qualquer mácula pelo vício. As joias, nenhuma falsa, todas de pessoas que sucumbiram a ela, ou como ela preferia, que ela as transformou para a divertir.

— Nenhum milagre que eu faça nesse belo rosto seu vai superar à graça que Deus já fez.

— Eu sei que você consegue...

Mon amour, eu não me resignei com o corpo que Deus me fez nascer, não existe heresia que eu não cometa. Ao fim do espetáculo nós vamos para o meu camarim, eu cuidarei bem de você.

— Obrigado, Dirce, eu...

— Mas às condições serão minhas.

— Que seja feita a sua vontade.

Ela sorriu voltando o olhar para o palco. Não estava a prestar atenção de verdade no palco, mas sim nas vidas abaixo dela, seus olhos atiçavam-se sobre toda aquela imensidão de desconhecidos. Ébrios, marginais, velhas meretrizes e jovens garotos de programa drogados, alguns homens da alta sociedade que buscavam ali satisfazer seus mais lascivos fetiches, garotas os servindo como cortesãs reais da alta nobreza francesa. Aquela era sua corte, e ela comandava a tudo e a todos com a maior autocracia possível, amada e odiada por isso, mas não menos temida e respeitada.

O espetáculo, ou melhor, os espetáculos, se mostravam uma verdadeira mistura caótica de dançarinas burlescas, garotas malabaristas, transformistas que cortejavam dublando sedutoras músicas francesas, rapazes que se uniam em uma erótica disputa de passos de ballet e encenações braçais de movimentos de luta greco-romana. O show se perdurou por horas, mas a atração era cativante em um teor que impossível desviar o olhar por um segundo se quer, de modo que o tempo se passou sem chamar atenção.

Ao fechar das cortinas, todos se ergueram para aplaudir. Quando abriram novamente, todas as dançarinas, rapazes, transformistas e malabaristas se juntaram nas escadarias do palco para se curvarem e agradeceram ao seu servil público. As luzes então se amontoaram na cabine onde estávamos, quando Circe se levantou, chegou até o beiral, e acenou para seus vassalos.

Ela não sorria, mas demonstrava uma aura imperial que levava todos à loucura em gritos, aplausos e exclamações de apreço – sexuais, em sua maioria.

Ver essa cena pelos bastidores me fez pensar que ela realmente era a entidade mítica que se dizia ser divinamente escolhida para controlar a tudo e a todos que todos os autocratas e déspotas do mundo se vangloriavam.

Ela se retirou do beiral e saiu andando para a porta da cabine, fez um leve sinal com sua mão esquerda e eu a segui. Antes mesmo que chegasse até as portas, seus pequenos servos já a tinham aberto. Seguimos pelo corredor até a escadaria dos fundos, no caminho, inúmeros acenos, gritos, e ordens a diversas pessoas, uma mais horrivelmente fantástica que a outra. Nos bastidores do palco, ela se caminhou ao centro e eu pude ver a verdade de sua autoridade. Todos se curvaram à Grande Soberana.

Caminhamos até o camarim dos artistas, quando percebi que, apesar de toda a pompa e autoritarismo que ela exigia para si, não era menos atenciosa com o trabalho de sua corte. Ajudou a despentear algumas garotas, desabotoou a roupa de outras, limpou a maquiagem de uns enquanto removia enchimentos e fitas adesivas do corpo de outros.

Já eram quase três da manhã quando todos saíram dos camarins e ela estalou seus dedos para um outro gigante careca nos conduzir aos seus aposentos imperiais.

Ela me assentou de frente para sua penteadeira, e eu fiquei reparando na magnitude dos seus aposentos, toda a mobília vitoriana, em tons pastéis que conjugavam a mais perfeita harmonia as paredes cobertas de papel parede damasco dourado, o rodapé entalhado em madeira branca e os contornos de talha dourada nas encostas das paredes com o teto. A penteadeira, enorme, clássica, coberta de luzes sem retirar seu estilo belle époque parisiense. Olhava-me no espelho e ficava fascinado de ver aos fundos aquela imagem se mover quase que liquidamente pelo enorme ambiente palaciano em que estávamos.

Allons-y, mon amour.— Ela virou tão instintivamente a cadeira que em um primeiro momento eu fiquei impressionado pela força que ela tinha, e depois por vê-la acompanhada de todas aquelas paletas, pincéis, estojos de maquiagem e tantas coisas que eu nem fazia ideia do que eram.

— De onde surgiu esse carrinho com toda essa maquiagem?

— Nolan, Nolan, uma melhor preparada não vai à guerra desarmada. Agora me diga, qual a ocasião? E não precisa dizer que não pode dizer o que vai fazer, eu não me importo. Quero saber por qual motivo vou colocar minha assinatura em seu rosto.

— Eu preciso ficar diferente disso. – Disse passando a mão por todo o meu rosto. – Digamos, algo mais pedestre, mais cotidiano, trabalhador de evento, quem sabe algo que diga “garçom” em serviço.

— Então esse é o serviço da vez? Vai entrar disfarçado e garçom em algum evento, é isso?

Não disse nada, não demonstrei reação, não acenei que sim nem que não.

— Bom... deixe-me ver... – Ela olhou para todas as cores na imensidão de pós, cremes e bases em seu carrinho. Depois lançou um olhar mortal em minha direção, mas não olhava para mim. Ficou de pé e esticou o braço atrás de minha olheira, pegou uma foto que estava na penteadeira e a encarou por alguns segundos. – O que você acha dela?

— Bela.

— Então assim será.

— Como?

— A mágica, vou te metamorfosear meu caro, mas não em um mero garçom. Você vai causar um enorme rebuliço nos céus com o afronte que vamos fazer à beleza de Afrodite, ficará morta de ciúmes.

— Nunca se deve fazer comparações aos Deuses, Circe.

— Não vou compará-la. Vou recriá-la. Você será a mais bela de minhas criações.

— A mais bela? Circe?

— Eu disse que os termos seriam meus.

— Mas... como? Eu não tenho tempo para isso, apenas me deixe irreconhecível, mas...

— Sem mas, mon cher. E não me venha falar de tempo, eu sei o que faço. Eu pensei que alguém do seu porte tinha preparo para lidar com qualquer tipo de situação, que saberia se portar em qualquer disfarce.

Bufei, mas não adiantaria de nada. Meu inconformismo não passava de mera reação espontânea, mas ela não estava errada. De certa forma, seria uma forma esperta de entrar no ExCeL, e além disso, eu realmente tinha treino e preparo para esse tipo de disfarce.

— Ainda bem que você não tem barba, já nos adianta muito. Vou limpar seu rosto e começamos.

— Eu tomei banho antes de vir aqui.

— Ah, Nolan. – Ela não disse mais nada e se abaixou rindo até uma das gavetas daquele carrinho ao seu lado. Pegou um pacote de lenços umedecidos e um vidro com uma espécie de líquido dentro. Espirrou em meu rosto e o limpou com os lenços.

Começou então a pingar algum tipo de composição cremosa em meu rosto, supus que deveria ser a base, e logo começou a dar leves batidinhas com uma esponja.

— Diga-me, Nolan, mas sem mexer muito a face para não me atrapalhar... já fazem tantos anos desde a última vez que nos vimos e você continua a mesma pessoa inviolável, incapaz de demonstrar a menor abertura para ser lido, mas algo está diferente em você, o que é?

— Uhm... Não sei... – Uma pergunta que não podia pensado de outra forma e por outra pessoa. Circe de fato era um ser sobre-humano. Como responder a isso? Estaria eu demonstrando tão claro a apoteose que Hugo fazia em minha vida? – Acho que estou envelhecendo.

— Não minta para mim, mon beau. Você sabe muito bem dos meus poderes. Posso ser a deusa do amor físico, mas sou igualmente a deusa da vingança e das maldições. Não me queira o azarando. E por falar em amor... não me diga que finalmente fora concebido alguém nesse mundo capaz de colocar um coração nesse cofre em seu peito?

Apenas ri.

— Ora, ora, ora. A vida é um caldeirão sobre chamas, Nolan, mas só borbulha quando se coloca amor nele.

— E você...

— Eu estou constantemente apaixonada, mas por mim antes de tudo. E apenas tenho paixões criativas, meu impulso parte da cama e volta para mim, e é o suficiente. Não mexa suas pálpebras enquanto eu as sombreio.

Pardonne moi.

— Como eu dizia, o amor é a essência da vida, a vela que queima na escuridão. É a paixão que a acende. – Distanciou-se um pouco para pegar a piteira com o cigarro. – Enquanto queima, nos aquecemos, sentimos a efervescência de ter em nós uma existência alheia, e transforma a própria substância do que somos. – Sobrou o profundo a fumaceira de seus pulmões. – Pode ser que se apague no meio, e isso não nos derrota, não é porque já nos consumiu que não existimos mais. Ficamos com marcas, de fato, mas não há cinzas que não se derretam quando acendemos uma vela apagada novamente. E se queima até o fim, bom, acho que então sublimamos.

— Você já amou, Circe?

Ela expeliu novamente toda fumaça para fora de seus pulmões. Apagou insensivelmente o cigarro o esfregando no carrinho de maquiagem ao seu lado.

— Nunca mutuamente. Estou sempre buscando novas paixões, é fato, mas tão efêmeras quanto uma chuva de verão. Nunca um amor. O amor para mim sempre foi uma ferramenta para negócios, por isso não o era amour. L'amour c'est moi.

— Você me respondeu se já compartilhou o amor com alguém quando perguntei se você já amou...

— Nada lhe passa, não é mesmo?

— Meus olhos estão fechados, meus ouvidos não.

Ouvi seus risos, ela afastou o pincel de meu olho e logo senti que um maior batucava sobre a maçã do meu rosto.

—  Você perguntou se eu já amei, lhe respondi que me amo. Por isso nunca amei a mais ninguém. Mas não fui de tudo honesta. Já tive amores sim, antes quando eu acreditava que a beleza da vida e a bondade dos homens eram dadas a todos. Não o são. Há pessoas que não recebem nada do mundo além de uma boa surra. Nessa época, eu ainda não me era, não era Circe. Era alguém sem identidade, um corpo oco. Meu primeiro amor me fez perceber que eu não podia me ser naquele corpo.  Na verdade, ele me fez sentir na pele que amar pode lhe trazer muitos hematomas. Eu não estava na forma certa, entende, e eu mesma não entendia isso naquela época. O primeiro soco me fez achar que era estava sonhando, o segundo me fez ver que eu estava acordada em um pesadelo.

— Circe...

— Não fique comovido. A vida pretere alguns, despreza outros. Mas eu não sucumbi. Nunca sucumbirei. Aos poucos fui percebendo que a primeira coisa que eu precisava para sobreviver, era nascer de novo em um corpo que se adequasse à minha essência. Isso veio aos poucos. Em muitas quase situações de quase morte clandestina. Renasci em todas. Fênix era meu nome na noite. Depois, quando ainda era mera serva da vontade alheia, amei novamente. E como eu ainda era tola, fui traída por minha própria esperança. Achava que não seria amada antes, descobri que ainda assim não o era. A paixão surgia por uma noite, algumas notas, um programa. Mas o brilho da lua não pode ser visto de dia. Quando ousei, meu eclipse chegou. Demorei algum tempo para conseguir corrigir os dentes que perdi quando me largaram feito um cão morto naquele beco.

— E por fim, - Continuou ela, tendo todo meu ser voltado às palavras que saíam de sua boca. – depois de chegar ao trono por direito, lutando para estabilizar meu reino, fui tentada a reinar com um consorte. Por um tempo eu vacilei, mas a terceira vez é a prova tirada. Ele não roubou apenas meu amor, tentou roubar também minha coroa, arquitetou me destronar. Como eu já tinha visto a morte em minha vida antes, me rondou por toda minha definhante juventude, mas eu nunca... – O pesaroso suspiro que ela deixou escapulir, o pesar do passado que ela vivia chegava a ser sentido no ambiente a ponto de fazer meu corpo estatizar em calafrios.

— Circe... ele tentou...

— Eu matei o desgraçado. Uma cena que digna de ser pintada por Cabanel, a queda do miserável do beiral da minha cabine no teatro, sete tiros em seu corpo, o sangue cobrindo o carpete do salão. Nunca em sua mesquinharia ele pensou em ser tão afortunado, ter a vida tirada por uma deusa. Abra os olhos mon cher, preciso passar o lápis e colar os cílios, mas continue estático.

Não havia a menor sensação de pesar depois dessa revelação.

— Bom, é por isso que não amo ninguém além de mim. Usei do meu amor para me levar ao meu trono por direito. Negociei cada conquista em minha vida, sempre me foi uma boa moeda de troca, mas nunca o usei para amar de verdade. Por isso, hoje, me permito apenas paixões em dosagens farmacêuticas.

— Deixe os cílios secarem. - Ela se afastou de mim e saiu andando pelo cômodo. – Diga-me chérie. Esse evento que você vai se infiltrar de garçonete, você sabe como é o uniforme? – Gritava ela de longe, eu nem mais conseguia a enxergar no quarto.

— Bem, não ao certo.

— Sabe para quem os garçons trabalham? A empresa?

GreatWaiter, porquê?

— Ah, típicos. Só um minuto, vou até os camarins. Mellier!

O grito que ela deu foi ensurdecedor. Em seguida, ela apareceu de trás de um biombo desenhado em algum motivo oriental, aos fundos do quarto. Logo, as portas se abriram e o gigante careca chegou bufando para acompanhá-la, como um fiel cão de guarda, ali estava parado Mellier.

Olhei em meu celular, já eram quase cinco da manhã. Eu precisava terminar com isso rápido para estar lá às seis em ponto. Enquanto ela estava fora, a curiosidade para me ver no espelho estava gritante, mas eu segurei-me até que ela finalizasse, não queria ter que sair dali fugido com ela dando ordens para que cortassem minha cabeça por irritá-la.

Alguns minutos e ela estava entrando pelas enormes portas, Mellier vinha atrás trazendo em um cabide, uma roupa coberta por um protetor plástico.

— Levante, mon cher. Vamos vesti-lo. E não ouse olhar para o espelho.

Oui mademoiselle.

— Oh, chérie. Madame, eu reconheço a minha idade. Venha, pode ir para atrás do biombo se despir, vou pegar a fita.

— Fita?

— Você não quer chegar uma donzela armada, quer? – Não sei por qual motivo, mas ao ver para onde seus dedos indicavam, um leve embaraço me fez corar. – Você quer me matar.

— Deixe de frescuras. Vá se despir que eu já vou.

— Falando assim, acho que a Soberana quer que eu pare em seu leito.

— Ah, Nolan, você não é de se desperdiçar nem sobre tortura. Mas homens como você são a guilhotina de qualquer monarca. E eu prefiro manter as minhas cabeças quietas onde elas estão.

Não deu para conter o incrédulo riso. Dirigi-me ao biombo e pus a me despir. Eu não queria nem imaginar no que estava para acontecer.

— Você quer que eu faça ou acha que é capaz de fazer? – Dizia ela atrás do biombo.

— Acho que consigo, vá me dando as instruções.

— Aqui, pegue a fita. – A mão aparecia por cima do biombo. Eu já tinha estado de frente para ameaças piores, mas aquela fita parecia a arma mais letal já apontada para mim.

— Bom, vou tentar ser bem didática. As velas recolhem e o mastro retorna.

— Ãhn???

Eu tentei imaginar essas instruções da forma menos perturbadora possível, tentei calmamente retirar um pouco de fita e fazer aquilo, não parecia que eu era a pessoa treinada para qualquer tipo de situação meticulosa possível.

— Isso não está dando certo! Acho melhor...

— Passa essa fita aqui. – Disse ela atrás de mim. Não deu tempo de repreendê-la por esta do lado de cá do biombo, quando ela tomou a fita de minhas mãos e esticou de uma vez só. O barulho da fita sendo puxada para fora do rolo foi um estampido traumatizante. – Afaste as pernas uma da outra.

— Realmente, com esse tamanho não fica fácil para iniciantes. Segura ele para trás. Mon Dieu, vamos precisar de mais fita. - Ela foi precisa e cirúrgica, mas nem por isso tinha sido menos dolorido. Eu sentia que nunca mais conseguiria fechar minhas pernas.

— Perfeito. Golias está escondido. Agora vista esta meia calça preta. Hum... nem precisaríamos de colocar enchimentos. Você anda fazendo muitos agachamentos, chérie. Mas vamos lhe dar uma silhueta mais feminina, então vou colocar alguns. – Ela foi enfiando aquele monte de formas acolchoadas dentro da meia calça ao redor do meu quadril. Nesse momento, eu já não sabia se queria me ver no espelho.

— Segure isso aqui em sua cintura

— Espartilho?

— Exato, deixe eu amarrá-lo corretamente para que consiga apertá-lo. – Ela não parava de mexer as mãos por trás de mim um segundo se quer. – Pronto. Um, dois e vamos lá.

O puxão que ela deu quase me fez vomitar. Eu perdi a capacidade de respirar por completo.

— Circe, eu preciso respirar.

— É só respirar devagar, já, já você se acostuma. Agora podemos vestir o uniforme. Eu conheço os garçons da GreatWaiter, alguns já frequentaram aqui. O uniforme deles é o típico social de colete para os homens e vestido preto abotoado e de saia rodada para as mulheres. A gente tem um exatamente igual no camarim, e acho que vai te servir. Vamos vesti-lo em você.

Ela pegou o cabide escorado no biombo e tirou o vestido de dentro do plástico. Foi me enfiando dentro dele e depois o ajustou em mim, o abotoou atrás e fez as amarrações devidas.

— Elas usam um sapatinho preto básico, um tamanco na verdade, o salto é minúsculo, não vai te trazer qualquer dificuldade. Agora, a peruca. Garçonetes precisam estar de touca e a boina, então peguei uma longa lisa, mas fácil de prender com grampos.

Ela encheu meu cabelo de grampos e o apertou o máximo que pôde, depois pegou uma meia calça transparente e colocou na minha cabeça, como uma touca, que ela circundou com fita adesiva. Quando colocou a peruca, eu já não sentia minha cabeça de tanto que lateja pelos puxões.

— Eu vou passar cola na camada da peruca que encosta na fita, vai ficar bem presa, não precisa temer de soltar ou da peruca cair. – Ela foi finalizando tudo em mim, eu me sentia uma verdadeira boneca de pano sendo costurada.

— Está pronta, e linda. Vamos ao espelho para você se ver.

Caminhei lentamente para a penteadeira, com ela atrás de mim tampando meus olhos. Quando me fez sinal para parar, disse para que não abrisse os olhos ainda.

— Contemple, ma belle.

— Qual seu nome, Mademoiselle?— Ela riu quando eu disse isso, mas eu realmente não fazia ideia quem era a pessoa refletida no espelho. Eu estava completamente diferente, não era Nolan. Não era apenas a maquiagem ou o cabelo loiro, mas todo o conjunto da silhueta, da roupa, os sutis traços que me transformavam em... eu não sabia quem. Não tinha nome. Talvez...

— Teresa.

— Teresa?

— Sim, Teresa. Minha criação, minha filha.

Olhei de novo para o espelho. Teresa! Agora eu só precisava estar no ExCeL e conseguir entrar como garçonete.

— Não se esqueça, Nolan. São os olhos de uma mulher que a garante acesso a alma dos homens.

Merci, Circe!

— Oh, ma belle. Saúde a sua Soberana, e todo o meu séquito estará sempre a sua disposição.

 E assim o fiz. Ela me abençoara como o suserano que abençoa seu fiel vassalo e o manda à cruzada. Graças aos céus esse vestido tinha bolsos. Guardei meu celular, a carteira e a chave da moto. Ela gritou por Mellier que, bufando, veio nos acompanhar até o hall de entrada do Teatro. Eram cinco e meia da manhã, precisava ir agora se quisesse chegar antes das seis. Olhei para ela sobre o estampar do lusco-fusco, a noite que começava a se retirar para o clarear do Sol, e com ela, logo Circe também se retiraria para as profundezas de seu profano reino.

Ma Déesse, merci!

— Va, mon Ulysses.

Por sorte a boina que eu estava usando não me atrapalhou ao colocar o capacete, e segui para o ExCeL. Cortava por entre as ruas quando os luminosos raios do sol começaram a reivindicar o ambiente. Precisava acelerar, e, enquanto pilotava, esqueci-me completamente como estava vestido, pensava apenas em conseguir me infiltrar junto aos demais garçons e garçonetes e por em execução um plano que eu elaborava em minha cabeça a medida que a seta do visor da velocidade inclinava-se para a direita.

Consegui chegar em vinte minutos. Mas não julguei prudente ir até as barreiras da entrada de moto, de certo que causaria alguma repercussão sobre mim e não era o que eu precisava naquele momento. Estacionei a alguns blocos após a rodovia que cortava o restante dos prédios do galpão do ExCeL. Vi algumas pessoas uniformizadas desceram no ponto de ônibus e seguirem para a entrada do lugar. Fui os seguindo a alguns metros de distância, mas, a uns duzentos metros de onde estavam as barreiras da entrada, percebi que seguranças solicitavam identificação dos funcionários, e eu não tinha absolutamente nada. Parei de andar e olhei atentamente, era uma espécie de cartão que eles apresentavam para os seguranças.

— Ops! – Senti um choque em minhas costas. Uma moça havia trombado em minhas costas, vinha andando distraída e não percebeu que eu tinha parado de andar. – Nossa, me desculpe, eu não vi você aí.

— Ah, não... – Lembrei que não era Nolan, não podia mais falar com minha voz natural, um tanto quanto grave na minha extensão vocal como baixo, e precisava alcançar algo melodioso e pausado, o tom aconchegante de um contralto feminino. Por sorte, modificar a voz e impostá-la era uma das minhas muitas capacidades aprendidas nessa vida. – Perdoe-me, eu que não devia parar de andar assim. – Respirei fundo e continuei a falar calma e pausadamente. – É que eu acabei de me lembrar que esqueci a carteira em casa com todos os meus documentos, e eu vim de tão longe que se for voltar para buscar, não conseguirei retornar a tempo.

— Ah, não se preocupe, nós conversamos com eles. Isso é mais pelo protocolo, mas você está uniformizada, eles vão ver que veio para ser garçonete também.

— Você acha? -Eu precisava desse álibi.

— Claro! Venha, vamos que vai dar certo. E nossa, como sou desatenta, meu nome é Natasha! Muito prazer...

— Teresa! O prazer é todo meu!

Fui a ouvindo falar sobre trivialidades, como ter descolado esse emprego já que ela estava desempregada há mais de seis meses, e apenas sorrindo e acenando com os olhos, de modo a não demonstrar qualquer abertura para que ela parasse de falar e passasse a me perguntar coisas sobre mim.

— Identificação. – Balbuciou o segurança parado na cabine.

— Bom dia, meu senhor! Eu e minha amiga aqui – Disse ela me puxando para o seu lado. – viemos trabalhar pela GreatWaiter como garçonetes no evento. Acontece que ela esqueceu a carteira com todos os documentos em casa, mas como o senhor pode ver, está uniformizada e eu tenho certeza que não será nem um pouco ideal para a realização do evento uma queda no atendimento pela ausência de uma garçonete.

Eu não acreditei em quão intensamente ela comprou minha desculpa, parecia até mesmo que tinha sido ela própria a ter perdido a carteira. A preocupação dela apontava mais que eu conseguia demonstrar por “ter esquecido a carteira”.

— Nome!

— O nome dela é Teresa... – Enquanto ela foi falando, ele já foi digitando em algum sistema de validação no computador, que por sorte tinha uma ferramenta de pesquisa automática com base nos termos a serem digitados. Consegui ver assim que ele digitou o nome Teresa que haviam ao menos uma dezena de Teresas a trabalharem no evento.

— Teresa...

— Maine. Teresa Maine. – Era a quarta Teresa na lista que apareceu na tela do computador. Supliquei aos céus para que essa Tereza Maine não tivesse entrado, e se possível que nem viesse trabalhar. Quando o sistema validou e abriu a catraca, agradeci singelamente com um sorriso no rosto e pus logo a atravessar a barreira.

Assim que Natasha entrou, a agradeci profundamente pela disposição em me ajudar.

— Que isso! Não foi nada. Eu percebi que você é um pouco tímida, e não há nada de errado nisso.

Mais uma vez sorri em resposta. Caminhando naquela enorme área aberta antes do centro de convenções, percebi que não precisaria entrar pela portinha lateral que na cabine daquele teleférico, mas ainda seria um bom local para quando fosse sair.

— Falando nisso, em qual setor você vai se apresentar? Eu vou para o setor 5, que vai ser onde vão ocorrer os painéis de economia sustentável.

— Ah que bom, eu vou para esse também. – Em cheio! Era exatamente onde o governador falaria. Os céus estavam especialmente me abençoando hoje.

Ela demonstrou uma alegria inexplicável, eu ainda me impressionava com a capacidade humana de se identificar tão rapidamente com desconhecidos como se fossem as pessoas mais próximas que tinham em suas vidas. Não todas as pessoas eram assim, e talvez essa pequena exceção seria a ideia por trás do conceito de empatia que se vê tão corriqueiramente nas pessoas comuns.

Caminhamos até o local onde seria o setor 5. Para minha sorte, ela não era apenas um ser simpático e prestativo, mas alguém igualmente organizado e atencioso, porque, mesmo sem nunca ter posto os pés ali, sabia o caminho de cabeça por ter decorado as instruções de localização. Quando chegamos lá, já eram vinte para às sete e todos se amontoavam para ouvir as instruções que seriam passadas pelos cerimonialistas do evento.

Uns quinze minutos até que terminassem de falar e pediram para que ficássemos em fila para nos informarem em que área do setor e em que função específica ficaríamos. Nessa hora, vi que eu teria que contar mais uma vez com a sorte para que meu nome, na verdade, para que Teresa Maine estivesse naquela lista.

— Qual o seu nome? – Perguntou-me cordialmente a cerimonialista com a lista em mãos.

— Maine. Teresa Maine.

— Teresa... – Ela começou a virar as folhas e passar os dedos sobre o papel. – Teresa Jane, Teresa Hannover, Teresa... Como mesmo?

— Maine.

Nada dela achar o nome. Comecei a achar que teria que bancar a desinformada novamente. Ela então riscou a lista e se virou para o rapaz ao seu lado.

— George.

— Sim? – Ele respondeu se aproximando dela.

— Tem uma caneta sobrando? A minha não tá escrevendo. – Os segundos voltaram a passar normalmente na minha cabeça. Ela tinha encontrado o nome. – Querida, você vai ficar na área da mesa, quando os painéis começarem, você vai servir os palestrantes, encher os copos de água, bem como auxiliar em toda a área do palco, está bem?

— Ah sim, muito obrigado... obrigada! Muito obrigada!

— De nada, pode seguir pela sua esquerda.

Retirei-me dali e fui andando. Segui à esquerda, mas não fazia a menor ideia de como chegar até lá. Parecia que aquele era realmente meu dia de sorte, porque Natasha logo chamou meu nome e me disse que ficaria na mesma área que eu. Fomos para lá e começamos a preparar tudo para a abertura do evento. O primeiro painel seria às nove e meia e depois o governador abriria a mesa às onze, eu tinha tempo suficiente para achar encontrar Suzanna nesse meio tempo e ficar de olho nela, apesar de que eu não sabia bem o que estava procurando com ela ali. Como eu quis que as informações que Martha me passou tivessem sido mais detalhadas. Mas nada de pensar nessa mulher, não agora.

Às nove em ponto os portões se abriram e um mar de homens engravatados e mulheres de saias executivas invadiram o local. Pessoas segurando pastas, tablets, maletas; alguns em ligações e outros se cumprimentando com toda e qualquer pessoa que tivesse o mesmo tom de terno; grupos de executivos passavam como bailarinas sincronizadas, enquanto secretários se amontoavam ao redor de encontros para anotarem o que estava sendo dito. Realmente, os cortejos reais das grandes monarquias de séculos passados evoluíram de modo inimaginável.

— Fique esperta! – Natasha me cutucou. – Logo, logo vão te chamar para levar os copos até a mesa do palco.

— Sim. Certo.

Fique a postos, mas meus olhos percorriam todo o espaço em busca de Suzanna ou do governador. Haviam inúmeras mulheres que poderiam ser ela pelo corte de cabelo e pelas roupas, mas sempre que viravam seus rostos, não a eram.

— Teresa Maine. – Um agudo tom masculino se dirigiu a mim por detrás. – Os palestrantes a abrirem o primeiro painel vão subir ao palco já, já. Vá até a cozinha pega a bandeja, os copos e a jarra d’água.

— Sim, senhor!

Assim que ele partiu, eu fiquei desorientado. Onde era a cozinha? Virei meu corpo para todos os lados, mas não fazia a menor ideia.

— Algum problema? – Natasha se espantou por eu não ter saído de imediato.

— Eu não me atentei bem às instruções, não sei ao certo onde está instalada a cozinha.

— Céus! – Disse ela rindo. – Venha, eu te levo lá rapidinho, mas ande que não podem dar falta de mim.

Segui ela por entre o salão até um opaco corredor lateral, passamos por algumas portas divisórias e logo estávamos na cozinha. Ela me ajudou a preparar a bandeja com a jarra e os copos. Equilibrei a bandeja em uma mão e respirei fundo para seguir.

— Eu preciso voltar, mas daqui você vai passar pela porta e vira a primeira esquerda, aí vai ter uma escadinha à esquerda também, que vai dar acesso ao palco. Boa sorte!

— Obrigada! Boa sorte também!

— Nós vemos em breve. – Ela se despediu e saiu andando, assim que ela cruzou as portas da cozinha eu saí também. Foi no momento em que passei pelas portas que vi Suzanna no corredor conversando com um grupo de pessoas. Fiquei atônito quando ela olhou para mim, mas logo voltou sua atenção para as pessoas ao seu redor.

— O que você está fazendo parada aqui? Para onde vai levar esses copos? – Um dos cerimonialistas interrompeu minha atenção em Suzanna.

— Para o palco.

— E o que está esperando? Estão todos lá já e você aqui!

— Estou indo, desculpe-me. Segui direto para o acesso ao palco. Assim que subi, pus-me a servir os palestrantes e logo me retirei dali de cima. Precisava encontrar Suzanna.

Com a bandeja debaixo do braço, coloquei-me a passar por aquelas pessoas, mas não conseguia andar mais que alguns passos sem ser interrompida com alguma solicitação de água ou alguma bebida, e sempre tinha um cerimonialista por perto para me conduzir de volta à cozinha. Lá, me avisavam de que algum dos palestrantes estava sem água e mais uma vez eu subia ao palco para levar água até eles.

A apresentação acabou às dez e meia e já se preparavam para a mesa que o governador abriria. Enquanto eu retirava os copos, vi Suzanna se esgueirando sozinha por entre as pessoas no saguão. Corri para deixar a bandeja dos copos com algum outro garçom e fui atrás dela.

Ela andou até uma das áreas de banheiro e entrou. Tinha um corredor para um almoxarifado na lateral, entrei lá e procurei por um escovão. Peguei o primeiro que vi e fui até o banheiro que Suzanna tinha entrado. Algumas mulheres estavam lá, e eu então comecei a fingir que limpava o chão.

Suzanna devia estar em algum box, porque não estava na área das pias e espelhos. Eu fui me esgueirando para os fundos do banheiro, quando vi que duas cabines de sanitários estavam fechadas. Fiquei esfregando o chão ao redor delas, quando percebi que não tinha mais ninguém no banheiro. Após alguns segundos, Suzanna saiu de uma das cabines e foi até a pia lavar as mãos e retocar o batom. Por sorte o avental do vestido que Circe me emprestou tinha um pano dentro, e eu fingi que limpava o espelho da parede ao fundo.

Não passou nem um minuto e logo a outra cabine se abriu. Uma mulher vestida com um blazer de lã acinzentada caminhou até a área das pias e parou ao lado de Suzanna. Eu peguei o escovão e voltei a esfregar o chão em direção delas. Enquanto Suzanna passava o batom e a mulher mexia em sua bolsa, esta falou algo como se conversasse em baixo tom consigo mesma.

— Você sabe que ele vai estar te esperando na ala norte em uma hora, não sabe?

— Uhum. – Respondeu Suzanna sem parar de desenhar os lábios com aquele tubo de batom.

— Ele conseguiu uma sala a sós para vocês, esteja lá.

A mulher então fechou sua bolsa, ajeitou o cabelo e saiu do banheiro. Suzanna terminava de passar o batom quando olhou para mim pelo espelho.

— Hey, você!

Eu não parei de esfregar o chão de imediato. Mas quando olhei para ela, seus olhos cortavam os meus pelo reflexo.

— Jogue estes papéis no lixo para mim. – Disse ela se referindo aos lenços que secara a mão, e saiu andando para fora do banheiro.

Eu respirei aliviado. Larguei o esfregão ali mesmo e sequer me importei com o que ela falou, internamente uma descontrolada vontade de arremessar aquela bola de papel molhado nas costas dela me tomou, que eu mal reconhecia a razão dessa rebelde sensação.

Faltavam poucos minutos para a mesa que o governador abriria, e eu precisava voltar para que não criasse suspeitas. Por sorte cheguei junto de Natasha, que me ajudou novamente com os copos e a jarra e a levar tudo até o palco.

Quando o governador subiu, toda a imprensa se pôs a frente para fotografar e ficar a postos para a oitiva que fariam assim que se abrissem às perguntas. Ele acenou para todos como se estivesse sob a maior ovação, mas de fato ninguém o aplaudiu. Suzanna estava entre a plateia, e assim que ele abriu a mesa e começou seu discurso, agradeceu a presença de sua equipe, citando o nome dela em específico, que retribuiu com um dissimulado sorriso. Mas foi ele terminar de falar e se assentar que ela começou a se afastar da frente do palco.

Eu estava prestes a segui-la novamente quando ela se desvencilhou dos ouvintes quando um homem me puxou pelo braço. A princípio achei que era algum dos cerimonialistas, mas para minha surpresa, era um dos homens da comitiva do governador.

— Preciso de você. – Disse ele se afastando e fazendo sinal para que o seguisse.

Quando o encontrei no corredor que dava acesso às laterais do palco, ele me encostou na parede e me segurou pelos braços, aproximando o rosto bem perto de mim.

— O governador não pode ficar para ser inquirido pela imprensa ao fim da palestra. E nenhum de nós pode subir lá para tirá-lo, porque se não a imprensa vai se aglutinar. Você vai lá encher o copo de água dele e, quando tiver atrás dele, se abaixe e diga ao pé do ouvido dele que assim que você sair do palco, para sair também. Assim os repórteres e jornalistas vão achar que é algo momentâneo e que ele retornará. Assim que ele sair, leve ele para algum lugar afastado que seja de fácil saída para o estacionamento subterrâneo e fique com ele lá até um de nós irmos buscá-lo. Faça isso. – Disse ele enfiando um maço de dinheiro no bolso do meu vestido. Eu fiquei surpreso.

Apenas acenei que sim e ele se afastou. Respirei. Fui até a cozinha pegar uma garrafa cheia d’água e voltei para a escada de acesso ao palco. Respirei novamente. Subi e fui encher o copo de todos os que estavam à mesa, deixando o governador por último. Coloquei-me por detrás dele, quando abaixei discretamente ao seu ouvido.

— Governador. – Disse sussurrando. – Assim que eu sair do palco, preciso que o senhor me siga. Seus homens me pediram para levá-lo para fora do palco antes que a imprensa possa vir até o senhor. Faça parecer que estou lhe dando um aviso para ir buscar algo e que já volta.

Ele colocou sua mão sobre meu ombro, acenou sorrindo e disse “sim, sim”. Logo que eu saí, em poucos segundos ele olhou para minha direção e disse um “deixa que eu pego” de modo a gesticular excessivamente os lábios, acho que para que todos percebessem o que ele dizia. Ele então veio até mim.

— Para onde vamos? – Indagou-me serenamente.

— Por favor, siga-me. – Eu não fazia ideia para onde levá-lo. Apenas saí andando indo cada vez mais para as laterais e rezando para que ninguém o visse ali e o reconhecesse e o parasse. Assim que vi uma placa indicando o subsolo, pensei que seria a melhor direção para o estacionamento do nível inferior. Caminhamos cortando alguns salões, e após descermos algumas escadarias, entrei com ele em uma sala que parecia um almoxarifado inutilizado.

— O senhor avise aos seus homens, eles pediram que o senhor espere aqui até que venham o buscar.

— Obrigado, minha filha! E pensar que eu estou tendo que sair escondido de um evento...

Eu apenas olhei com cara de pesar e dúvida para ele, mas não disse nada. Não foi preciso, o homem queria falar, não precisava que eu o perguntasse nada para que ele falasse.

— E eu achando que essa seria uma plena oportunidade voltar à cena. Mas eu nunca estive tão mal assessorado em toda minha vida. Não há ninguém que eu possa confiar. Ah, minha filha, às vezes parece que não há mais nada a fazer a não ser aquiescer.

 - Eu pensava que se eu fosse um grande amigo deles, eles me tratariam da mesma forma. – Ele continuou falando como se estivesse a receber a extrema unção e pronto para confessar todos seus pecados. – Mas o que eu percebi é que essas pessoas são sanguessugas insaciáveis, nada é suficiente para eles. Eu fiz de tudo por todo e qualquer empresário que está nesse evento hoje, e com o que eles me retribuíram? Apunhalando-me pelas costas e planejando minha queda. Mas o povo ainda me respeita, não respeita? – Ele se voltou para mim, mas seus olhos não me enxergavam. – Diga-me querida, em quem você votou, se posso lhe fazer tamanha invasiva pergunta. Mas saiba que você pode aquietar o coração de um pobre homem, quem sabe até o dar esperanças, mas por favor, seja honesta.

— Governador... – Não haveria pessoa pior para aquela pergunta, tanto pela pergunta quanto pelo pedido de honestidade, eu estava em expediente. Eu sequer tinha votado em alguma eleição que conseguia me lembrar. Já eliminei alguns dos concorrentes, mas foi o máximo que tinha me envolvido com política, até agora. – No senhor, e conto com sua candidatura novamente na próxima eleição.

— De verdade? Não minta para esta desolada alma.

— Por todos os santos no céu. – “Ateu e ainda por cima herege”, minha mente ria ao pensar isso.

— Então há esperança!

Olhei como se o indagasse, mas não dize uma palavra que fosse.

— Ora, eu vejo nos seus olhos que o povo não me esqueceu, e se o povo não me esqueceu, eu não posso esquecer de mim mesmo. Estou decidido, não vou embora. – Coitado, não era só cego, alucinava.

— O senhor está certo disso? O homem lá em cima me disse que viria lhe buscar.

— Nunca estive mais certo de algo. Eu já tinha despachado Suzanna para tentar solucionar a crise da imagem do governo com os empresários, ela vai conseguir o apoio que preciso e eu vou voltar para aquele palco. Você se importaria de me levar de volta, minha cara?

— De forma alguma.

Como tinha decorado o caminho que fizemos, não foi difícil voltar para lá. No caminho, aquele homem parecia revigorado, acenava e cumprimentava toda e qualquer pessoa que passava por ele. Como acreditava em suas próprias mentiras, pior, projetava elas sobre os outros como se fossem eles que o iludissem. Chegamos no acesso do palco de onde saímos e ele, ajeitando o paletó, se preparou para subir.

— Minha filha, obrigado pela luz! – Disse ele colocando uma mão sobre meu ombro. – Eu tenho a estranha sensação de que você se parece com alguém que conheço.

Eu apenas sorri. Ele sorriu de volta e subiu para o palco. Todos que assistiam à mesa se agitaram. Foi possível ouvir a inquietação da plateia quando ele retornou ao seu lugar como se nada tivesse acontecido.

— Onde você se meteu? – Natasha apareceu do meu lado com um ar de preocupação que me envolveu por completo.

— Quando eu subi para encher os copos o governador me puxou e perguntou se eu podia o conduzir até a enfermaria, acho que a pressão dele caiu.

— Todos se espantaram quando viram ele saindo do palco, e você tinha acabado de sair do palco e ninguém mais te viu. Que bom que ele está bem, imagina, se desmaia ali em cima, o trabalho que íamos ter. Bom, de todo modo, preciso de um favor seu. As verduras de uma das caixas para os petiscos vieram completamente estragadas. Eu já as juntei em um saco, mas me designaram para ir servir champanhe em uma outra área, parece que uma garçonete passou mal lá. Você podia ir lá na cozinha pegar esse saco e levá-lo para o lixo?

— Claro, não se preocupe.

— Ah, que ótimo. Muito obrigada, Teresa.

Eu já estava quase esquecendo esse nome. Ela se apressou para ir até onde a requisitaram e eu caminhei até a cozinha para pega o saco e levá-lo. Acabei me perdendo pelo caminho e fui parar em uma área completamente oposta de onde estava. Enfim eu encontrei um local de depositar lixo orgânico, e descarreguei aquelas verduras estragadas. Um dos garçons ficou impressionado com a força que lancei o saco sobre o depósito.

Estava saindo do depósito quando vi Suzanna passando no horizonte, falando ao telefone e andando agitada. Lembrei então do governador falando que tinha a despachado para solucionar a crise de apoio. No momento, ele falou tão intimamente que provavelmente nem se deu conta de ter falado o nome dela. Eu precisava descobrir com que ela falaria, e se ela estava mesmo em uma missão extraoficial do governo, ou se estava mais uma vez sendo uma peça de Martha.

Ela se esgueirou entre as pessoas que passavam pelos salões, e se dirigiu até a escadaria para o nível inferior. A observei descendo e logo fui atrás. Ela não parou no andar de baixo, desceu até o penúltimo andar do subsolo e seguiu pelo corredor. Eu me encostei na esquina da parede e fiquei ouvindo seus passos para saber para onde ela iria. Naqueles andares, provavelmente não teria ninguém circulando, então eu precisava ser extremamente discreto se não quisesse ser pego.

Ouvi os passos pararem, mas não os identifiquei virando para nenhum lado. Esperei alguns segundos e virei para o corredor. Nada. Ela não estava ali, e ao fim do corredor, apenas a porta de abertura automática para o estacionamento, mas eu teria a ouvido abrir. Caminhei então pelo corredor, quando percebi uma porta à esquerda. Encostei-me na parede e segui calmamente para perto dela, estava aberta e eu olhei discretamente para seu interior. Ninguém ali. Entrei e percebi que era um pequeno hall que dava acesso aos fundos do andar, uma sequência imbricada de pequenas salinhas, talvez uma área de vigias inutilizada.

Percebi então que vinham vozes do fundo do ambiente, me aproximei calmamente, parando atrás de um coqueiro em um vaso que dividia aquele pequeno corredor interno com aceso a uma outra pequena salinha. Suzanna estava ali. Agachei-me atrás do coqueiro e pus-me a respirar o mais calmo possível para que o som de minha respiração não me atrapalhasse a ouvir nada.

— Achei que não viria mais. — Uma voz de homem que eu não soube identificar.

Eu disse que vinha, não disse? Pois bem, meu tempo é curto, parece que o governador vai sair as escondidas e eu preciso estar logo atrás da comitiva. Vamos direto ao ponto.

— Está bem. Você sabe que a situação ficou muito complicada depois que o Dorsey foi incriminado pelos assassinatos. Algumas coisas tiveram que ser adiantadas. A hidrelétrica ainda está nos planos, mas eu temo pela capacidade de coalizão das quatro empresas. E o governador parece estar querendo se aproximar agora da DAZus, apesar de que não sei qual será a atitude dele após o ridículo que se expôs.

— Ele não aprende nunca. Ainda vai tentar negociar com eles, ele precisa de apoio e vai fazer qualquer tipo de acordo por isso. A reeleição é tudo que ele se preocupa. – O desprezo em sua voz transbordava, eu não sabia o motivo, mas o ódio que Suzanna sentia pelo governador era o catalisador de todas suas ações. – De toda forma, eu consegui adulterar os papéis que você me pediu. Na oferta licitatória, o envelope a ser escolhido vai ser o da RedMount. Agora, Mike, eu preciso do seu apoio, porque eu estou me arriscando demais.

— É só você me dizer o que precisa, que será feito. A RedMount sendo escolhido vai causa abalos na “aliança” das quatro, porque a laranja para a obra seria a Vernach. Mas eu consigo os amaciar depois, falo que pelas contas vermelhas da Vernach, o governador achou que teria menos chance de contestação se fosse a RedMount escolhida, mas que ainda continuaremos com o plano de repartir os lucros da concessão e, juntos, lançaremos um candidato ao governo.

— Augusto Fernando me preocupa. A Vernach não está com o jogo aberto, eu sei disso.

— Você não precisa se preocupar com ele, Suzanna. A Vernach é a que mais precisa desse acordo. E Augusto é uma marionete, se sair de sintonia, lhe cortar as cordas será simples e rápido.

— Eu ainda quero que você fique mais atento a ele. Mesmo com Dorsey preso e os assassinatos terem parado, ele me incomoda. Quando vou tentar suborná-lo ao plano do governador, ele parece saber exatamente o que vou dizer.

— Eu vou ficar de olho nele. Mas você está se preocupando demais. Nós precisamos é acelerar os passos. Faça o governador agendar a seleção das propostas para a licitação para a próxima semana. Assim que ele escolher, eu vou dar um jeito de segurar o acordo das quatro, e logo que tenhamos as mãos no dinheiro da obra, com a sua ajuda, nós damos o golpe final no governador.

— Eu vou falar com ele, mas não ponha tudo a perder pelo seu desespero. Ele confia em mim mais que qualquer outro membro do governo, mesmo assim não posso ficar dando mole. Já quase fui pega ao trocar os papéis das propostas.

— Vai dar tudo certo, Suzanna. Eu apenas preciso que você me notifique das intenções do governador com a DAZus, eu não confio na mulher que assumiu como CEO.

— A Nasser?

— Sim, ela tem um passado que envolve interesses que me preocupam. Agora com o Dorsey preso, não quero que ela me seja mais um problema. E eu não consegui comprar essa conversa de que vão decretar falência, ou melhor, vão suspender as atividades por tempo indeterminado.

— Mas você sabe que...

— Apenas mantenha a fachada para ela, Suzanna. E nós vamos implodir esse governo.

— Certo. Eu preciso ir agora, aquele covarde já deve estar em seu carro indo embora daqui. E...

— Quieta!

Cacete! Eu tinha esbarrado no coqueiro e as folhas fizeram barulho, mas dessa vez, quando eles se atreveram a olhar para o lado de fora, eu já me retirava pelo corredor para fora do subsolo.

Quando cheguei no térreo, pus-me a encontrar a porta de saída que tinha visto pelos binóculos. Enquanto procurava por ali, fiquei pensando que Suzanna era na verdade uma agente dupla. Estava iludindo o governador com Martha, e esta com Mike Hortz da RedMount. Mas qual era o interesse dela nisso tudo? Ou estava ela só simulando com ele também, pelos interesses, na verdade, de Martha?

E o golpe final no governador. Eu sentia que eles tentariam eliminá-lo, mas não o matando. Tentariam o incriminar de algo? De qualquer modo, eu tinha a sensação de que tudo estava acontecendo muito rápido e cada vez mais confuso se tornava todo esse desenrolar.

Por algum milagre, achei a porta e consegui sair para a área externa. Eu pensei em como sairia fácil dali, e por incrível que pareça, pular no canal me pareceu a forma mais rápida, mas se alguém visse ia causar um alvoroço que só eu me jogando nas águas. Saí então pela entrada principal, os seguranças apenas me perguntaram porque estava saindo e disse que tinha ordens para resolver algo na cidade.

No caminho para casa, fiquei matutando um monte de memórias. Martha e Suzanna na casa de barcos, o governador e Augusto Fernando conversando no bar à beira da estrada, Suzanna e Mike Hortz planejando a queda do governo. Eu precisava harmonizar todos esses pontos em minha cabeça.

Eu tinha me esquecido completamente que estava vestido como Teresa e talvez foi por isso que todos me olharam quando entrei pela portaria do prédio.

— A senhora pretende ir aonde?

— Eu estou indo para o apartamento do senhor Nolan Dawson, ele me contratou para fazer a faxina.

— Bem, deixe-me ligar para ele.

Ele pegou o telefone e ligou para o meu celular que vibrou no meu bolso. Ainda bem que estava no modo vibrar.

— Senhora, ele não está atendendo.

— O senhor pode insistir mais um pouco? Ele me certificou que estaria em casa nesse horário.

— Eu vou tentar mais uma vez.

— Por favor. Eu vou só ali fora fazer uma ligação para minha casa e volto.

Quando ele ligou mais uma vez, atendi solicitando que ele deixasse a faxineira subir. Fui informado de que tinha uma carta para mim na portaria e igualmente pedi que a entregasse para que ela trouxesse para mim.

Quando ele desligou o telefone, continuei fingindo que falava com alguém. Voltei então para a portaria e desliguei o celular.

— Senhora, a senhora pode subir. O senhor Dawson me pediu para que a senhora subisse com a correspondência. Aqui está. Décimo nono andar.

— Muito obrigada, meu rapaz!

Até que enfim, casa. Estava exausto, queria um banho quente antes de mais nada. Tirar aquela roupa e descolar toda a fita da minha virilha. Mas antes, conferi sobre o que se tratava aquela carta.

“Sua próxima requisição.

            Mike Hortz.

Leve até ele o broto da camélia carmesim.

                                                           H.G.”


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