Culpa e Perdão: O pior de uma mente apaixonada escrita por NightlyPanda


Capítulo 19
Capítulo 19 - Caminhos e Mentes Confrontados




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Hugo

Estava completamente disperso quando ouvi o som do interfone tocando. Deixei que tocasse por algumas vezes antes que o atendesse. Sabia quem era, sabia igualmente que não subiria. Estava a me esperar lá embaixo.

Era a hora. E engraçado como o tempo já não parecia existir, estava completamente alheio naquele momento. Eu me encarei no espelho do banheiro, meu olhar passava direto pelo reflexo que se formava. Vi Naíma no chão, me encarando como se quisesse me dizer algo. Não latiu uma vez se quer, e mesmo assim entendi que ela estava ali por afeto, me fazendo ter coragem de ir.

Desci de elevador até o hall da portaria, respirei fundo, precisava aerar minha cabeça. Ele me esperava encostado no portão principal, olhando pela escadaria em direção à rua. Caminhei calmamente até ele, não se virou, mas sabia que estava ao seu lado.

— Pronto?

Apenas apertei sua mão com a minha. Não tinha resposta para aquela pergunta. Eu precisava mais que queria, mas mesmo assim não estava pronto. Iria e estava ali para isso, apenas.

Entramos no carro e seguimos cortando pela cidade, Nolan sabia que eu estava preocupado em ir até o apartamento dos meus pais. Ele tentava demonstrar a maior hospitalidade em si para que eu me reconfortasse em sua presença, mas eu simplesmente não sabia conectar meu corpo e minha mente naquele mesmo ambiente.

— Hugo, estamos quase chegando.

— Está bem.

Fiquei feliz que ele não tentava me forçar a falar. Eu não me sentia confortável para isso, e estar em silêncio deixando toda a tormenta se acalmar em mim era o que eu precisava para me sentir pronto quando chegasse lá. “Obrigado Nolan”.

Passávamos pela ponte que ligava aquelas duas partes da cidade. Olhava para o monte que se abria a frente ao final da ponte, e atrás de nós, aquele emaranhado de luzes tomavam conta do céu, riscado por todos aqueles prédios. Reparava na água que corria pelo canal embaixo de nós. Olhei para as estrelas que brilhavam naquele ofuscado horizonte, me afastei um pouco da janela quando vi um helicóptero cortando por entre as nuvens e a lembrança do helicóptero que os trazia me veio à mente.

Tantas lembranças me enfrentariam nesta tarde, e muitas delas talvez eu nem saiba que as guardo. Mas não era esse o meu medo, não tinha medo de lembrar, mas do que essas lembranças poderiam fazer comigo. Meu desespero não era de estar entre aquele lugar abandonado, mas das memórias igualmente abandonadas que estariam à espreita por lá.

Quando os primeiros prédios e casas começaram a voltar à visão, me dei conta de que em poucos minutos estaríamos de frente para o prédio onde ficava aquele apartamento. Respirei pesadamente, fechei meus olhos e deixei tudo sumir. A sensação aveludada da mão de Nolan acariciando meu rosto conseguiu me estabilizar para enfrentar tudo aquilo. Agradeci novamente em pensamento por ele estar ali comigo.

O carro parou, a imagem ao redor estava estática, apenas nós naquela rua. Nenhum outro carro parado ali, nenhuma pessoa passando. Aquilo foi bem familiar, não me recordava de um intenso movimento naquele bairro. O céu foi tomado por algumas nuvens carregadas que o escureceram imediatamente. Nolan olhou para mim e acenou com o rosto, senti em seu movimento um sinal que me afirmava estar pronto mais do que indagava se realmente estava.

Saí e, de pé na rua, encarei o espaço que estava, olhei diretamente para o prédio à minha frente. Era ali. Era agora.

Nolan veio até o meu lado, atravessou seus braços ao meu redor e me manteve em seu abraço. Caminhamos juntos até a porta de entrada daquele edifício. Ainda não tinha um porteiro ou uma recepção. Apenas a enorme porta de vidro entalhada na madeira, e um corredor para os andares a subir.

Peguei o chaveiro que tinha me sido entregue pelo meu tio e destranquei a porta da entrada do prédio. Do lado de dentro, aquele primeiro corredor escuro, o frio aroma daquelas antigas paredes e aquela cerâmica acinzentada no chão. Uma mesinha na primeira esquina do corredor, colocada embaixo de um espelho entalhado. Senti como se ouvisse alguém correr por ali, uma criança talvez, mas olhei para o meu redor e apenas eu estava ali. Nolan e eu.

Subimos para o apartamento. Passava por aqueles lances de escada sem nem me dar conta de quantos andares tinha subido, apenas parei quando coloquei meu pé no último degrau da escadaria. Estava ali, parado no penúltimo andar antes da cobertura. Respirei fundo, um passo seguido por outro até estar parado frente a frente com aquela porta de madeira, vitoriana, perfeitamente trabalhada.

Coloquei a chave na fechadura, girei três vezes para a direita. Imóvel. Não conseguia retirar minha mão da fechadura para empurrar a maçaneta e abrir a porta.

— Juntos? – Nolan me olhava, sua mão parada sobre a minha em cima da chave na fechadura. Ele parecia saber que eu precisava ir até o fim, que eu precisava entrar, e que igualmente precisava dele ali comigo.

— Por favor.

Segurou minha mão e a levou até a maçaneta, a viramos e empurramos a porta. Aquele hall de entrada a me confrontar, eu sentia que uma muralha se erguia entre mim e aquele espaço aberto da porta. O braço de Nolan a me envolver me fez dar o primeiro passo. E ali estava eu, do lado de dentro. Observava desorientado a visão a minha frente. Naquele pequeno hall, as mesinhas de canto cobertas pelo plástico protetor, igual os objetos que estavam dispostos sobre elas. Pequenas estátuas, vasos de plantas que já morreram havia eras, poeira que se amontoava por todo lugar.

Passamos daquele pequeno cômodo e me vi na sala de estar. Não me dei conta de quando me desvencilhei dos braços de Nolan, mas estava andando suavemente a sua frente, sendo recebido por aquele local e me perdendo por ali. O carpete do chão afundava a cada passo e marcava profundamente minhas pegadas. Os sofás estavam todos embrulhados no plástico protetor. Todas esculturas do cômodo também. A estante de livros, que ocupava aquela parede de dez metros todinha, estava tampada por um pano escuro. A única coisa descoberta era a lareira. Fui me aproximando dela, tinha cinzas de anos atrás, o atiçador de brasas ainda pendurado no canto da parede de pedra. O porta-lenha ainda tinha alguns tocos cortados, todos trincados pelo tempo que ficaram ali.

Esqueci completamente a noção do tempo, e da presença de Nolan ali. Ele ficou parado na entrada da sala e me deixou observar tudo em meu próprio espaço. Estava atônito vendo aquele lugar, tudo coberto, sentia como se fora abandonado há centenas de anos atrás. E pensar que haviam treze anos. Treze anos que eu me fiz esquecer da existência desse apartamento. Treze anos até que eu lembrasse que tinha um passado.

Empurrei um pouco o pano que cobria a estante. Como ela havia virado um depósito de pó, eram em igual volume as centenas de livros que estavam guardados ali. Porta-retratos que não mostravam foto alguma, pois estavam todos tampados pela sujeira do tempo. Tinha um tanto incalculável de objetos dispostos, pequenas relíquias das viagens deles, alguns artefatos de civilizações antigas, povos milenares que encontravam em suas jornadas mundo afora.

Peguei um porta-retrato de borda dourada, não havia enferrujado com o passar do tempo, exibia até um certo brilho, devia ser banhada a ouro para estar tão bem conservada. Limpei a tela com minha mão. Se aquela imagem tivesse me sido mostrada a alguns anos atrás, jamais a reconheceria. Mas ali estava, meus pais me carregando em frente à tapeçaria da sala, com um chapeuzinho de aniversariante, meu primeiro aniversário. Os dois olhando para mim, e eu olhando para a tapeçaria atrás. Não faço ideia de quem tirou essa foto, certamente algum dos vizinhos que vieram para a comemoração. Ou um parente qualquer. Aquilo me vez sentir um certo desconforto no peito, senti uma tensão na garganta, como se o ar começasse a se comprimir.

Olhei para a sala em panorama, e vi aquele pano preto enorme cobrindo uma boa parte da parede a minha frente. Caminhei até ele, segurando a foto em minhas mãos. Passei os dedos por aquele tecido, de uma ponta a outra. Fechei os olhos, a imagem da foto fixa em minha imaginação. Fechei meus dedos na ponta solta do pano, o senti encher minha mão, e o puxei de uma vez só ao chão. Caiu e uma onda de poeira se revoltou da queda. Quando acalmou, consegui ver o que escondia.

A tapeçaria da foto. Uma verdadeira obra de arte. Era secular, talvez milenar. E perfeitamente conservada. De perto, estava vidrado nos pequenos detalhes dos pontos de costura das bem tratadas linhas que formava aquela tapeçaria. Dei alguns passos para trás, e então, me perdi por completo naquela imagem. Uma mulher altiva, bela e sublime ao centro, sentada sobre seu trono, perfeitamente posicionada em poder e soberania. Dois leões repousavam ao seu lado, um por debaixo de cada braço do dourado trono que ela estava. Sua roupa parecia ser sua própria pele, tão natural que sequer parecia estar vestida. Um vestido branco que se complementava de suas curvas naturais. Sua mão esquerda repousava assenhoradamente sobre seu colo, enquanto sua mão direita trazia a cornucópia. De sua cabeça, resplandecia a majestosa coroa, era opulente, tinha o magnânimo formato de uma gloriosa e temerosa muralha. Refletia uma brilhante auréola que se estendia por toda a tapeçaria, até suas extremidades.

De seu trono, parecia comandar o mundo com seu nobre olhar. Dona da razão que trazia à imagem manuseada naquela tapeçaria. Seu trono estava situado em uma nau. A onipotente embarcação de madeira desbravava por entre o oceano e vinha sendo puxada por uma mulher igualmente bela, mas incomparável à imagem daquela sentada ao trono. A mulher tinha uma corda dourada amarrada à cintura, que se ligava diretamente à nau e abria caminho sobre as águas, a conduzindo pelo oceano. Atrás delas, o mundo parecia ficar, enquanto elas seguiam. Todas as criaturas do mar, que figuravam aos cantos, pareciam venerar o passar da resplendosa senhora em seu trono, a reverenciavam e lhe demonstravam sua subserviência.  

Cheguei novamente mais perto da tapeçaria, a analisei em seus perfeitos detalhes. Passando a mão por aquele trabalho que deve ter levado anos, quem sabe décadas, para ser feito. Parecia ser medieval, mas retratava Roma. Era uma história romana, do grande império politeísta. No canto esquerdo, numa pequena plaquinha metálica colocada na parede, logo abaixo da tapeçaria, encontrava-se o nome daquela obra.

Cibele, Magna Mater of Romae.

Era fantástico. Com a mão encostada naquela tapeçaria pendurada na parede, fechei meus olhos, senti como se conseguisse estar lá no momento que fora feita.

— É uma Deusa dos antigos meu pequeno. A Grande Mãe de Roma. Cibele, a deusa do ciclo da vida, a protetora. Os antigos romanos a cultuavam como uma das mais importantes deusas, mesmo ela não sendo propriamente romana. A mulher que a puxa pelo mar, a leva ao seu templo no Império, é Cláudia Quinta. Foi tida como a casta.

— Querida, ele tem apenas um ano.

— Mas está prestando atenção em cada palavra que eu falo. Mesmo sem entender, meu pequeno Hugo é um observador nato, eu sei que ele consegue ouvir minha voz e interpretá-la em sua imaginação, mesmo que não agora.

— Eu tenho certeza que ele consegue. Nosso pequeno prodígio, vai ser um grande curioso, igual a mãe. Olhe como ele observa a tapeçaria.

Eu ouvia essas palavras soltas ao ar, pensei estarem em minha mente, mas as sentia tão próximas de mim. Eu não queria abrir meus olhos e perder aquilo. Mas não resisti à tentação de estar errado, de eles estarem ali. Não sei de onde isso surgiu em mim.

Fiquei paralisado, meus olhos não mais funcionavam. Pois os via ali, os via ali como se realmente estivessem juntos a mim. Meu pai, minha mãe e... eu. Eu em seu colo. Estavam parados a centímetros de mim. Como? Tinha eu desmaiado e estava sonhado? Não quis esfregar meus olhos, se aquilo fosse apenas uma cruel ilusão, eu a sofreria da maneira mais profunda possível.

Ela me abraçava, acariciava seu rosto no meu e me reconfortava em seu colo. Seus negros cabelos eram como a mais bela noite estrelada. Eu sentia que chorava, mas lágrima nenhuma me escorria o rosto.

— Querido? Por que você está chorando?

Ela falava comigo? Podia me ver?

­— Eu só estou tão tomado de felicidade de ver vocês dois, o maior presente da minha vida. Eu os amo tanto.

Pai. Que dor tirânica era essa em meu peito. E de repente eu voltava ao abandono naquele apartamento. Não, não queria que me deixassem. E não sabia o que queria, ou porque queria tanto que estivessem ali comigo. Em treze anos eu nunca os sentira perto de mim. E agora era como se eu jamais tivesse ficado longe deles por um segundo se quer, e a ideia de não os ter ali comigo me levava à loucura. Eu já não controlava emoção alguma que passava por mim.

E novamente ouvi uma voz, um barulho sutil, mas não ali. Procurei saber onde, me virei, percebi que o cômodo que situava ao fim da sala estava claro, como acesso. Meu olhar me direcionava para lá, e, como se minhas pernas se conduzissem independente de mim, eu estava na porta. Parado na cozinha. Estava clareada pela manhã. O sol a invadia e deixava o papel de parede ainda mais belo junto à madeira. Tudo estava tão limpo, exposto sem qualquer proteção.

— Papai.

Por detrás dos balcões, uma pequena criatura se esgueirava enrolada num aventalzinho azul, com uma tigela metálica em suas miúdas mãos.

— Hugo, deixa o papai te ajudar. Venha cá.

Ele saiu por entre as portas da despensa. O pegou no colo, passou o dedo no que estava dentro da tigela e sujou o seu pequeno nariz. Eu dei alguns passos para mais perto. Eles olharam por entre mim, e eu congelei na mesma hora.

— Olhe as horas, a mamãe já vai acordar. A gente tem que terminar aqui rapidinho para esse bolo ficar pronto antes dela levantar. E temos que fazer tudo quietinhos para não acordar ela. Tá bom?

— Uhum.

— Hahahaha, então vamos meu pequeno.

Eles se movimentavam pela cozinha, abrindo armários, misturando ingredientes na tigela, sorrindo, fazendo bagunça, não limpando nada e parecendo duas crianças ao invés de uma criança e seu pai. Mas o mais importante, o sorriso em seus rostos não sumia por um segundo sequer. Eu os vi de um lado para o outro, tirando o bolo do forno, o decorando da forma mais sem jeito possível, chantilly espalhado sem qualquer simetria por aquele bolo.

­­- Pai, as velinhas...

— As velinhas Hugo, bem lembrado meu garoto.

— Mas o que esses dois bagunceiros estão aprontando na cozinha hein???

— Mamãe!!!

Mãe. Ela passou por mim, como se o fantasma fosse eu. De pijama, ela estava a minha frente enquanto os dois, pegos no ato, acenderam as velas e começaram a cantar parabéns. Arredei um pouco para o lado para poder vê-la de perto.

— Feliz Aniversário Mamãe!

— Vocês que fizeram esse bolo lindo para mim? Meus amores, muito obrigada!

— O Hugo que fez, eu só ajudei, não foi pequeno chef?

— Uhum.

­Eles dois riram como duas crianças enquanto aquele pequenininho a abraçou. Ela abaixou até ele para pegá-lo no colo. Devia estar com seus três pra quatro anos. Era 02 de Outubro, aniversário dela. Eu nunca tinha me lembrado bem dessa data depois que me mudei para fora do país. Eu nunca me deixei lembrar deles. E agora estava ali, sem ar, sentindo meu coração apertar, minha alma sair para longe do meu corpo e poder viver aquelas experiências mais forte que eu poderia senti-las.

Vê-los rindo, comendo o bolo, passando chantilly no rosto, ela rodando com ele no colo, abraçados na alegria mais pura da vida. Eu sentia que estava prestes a cair desmaiado para fora de mim a qualquer momento.

Eu não sabia nomear o que sentia, e ao inferno se não soubesse nunca, apenas queria sentir aquilo eternamente, mesmo que ilusão fosse, mesmo que me machucasse mais que tudo. Pois aquela sensação trazia uma ternura em mim que era suficiente. Mas me sentir invisível ali, não poder interagir, me fazia beirar a insanidade. E eu não queria apenas observar. Foi quando me aproximei lentamente. Passo por passo até eles no centro da cozinha. Todos agachados no chão. E eu também me agachei. A centímetro do pequeno eu. Ele me olhou. Um enorme estrondo de vento invadiu o ambiente. E eu estava sozinho.

Largado naquela escuridão. Aquela cozinha fechada, toda coberta por poeira, plásticos protetores em todos os móveis. E eu. Apenas eu. O frio daquele ambiente vazio, tomado pelas sombras do dia que se entardecia. A janela fechada, nada ali parecia já ter sido como foi na minha visão. Eu me levantei e me escorei na bancada. Olhei por detrás dela e lembrei da primeira imagem que vi, o pequeno Hugo segurando aquela tigela que era quase do seu tamanho. Olhei reto para a parede onde estava as portas para a despensa, de onde ele saiu para o pegar no colo. Vi então os prendedores na parede. O pequeno avental azul estava pendurado ali.

Atravessei a cozinha e fui até ele, o peguei em meus dedos. Estava um pouco desfiado, mas ainda assim conservado. A dor daquela memória era um doce martírio. Como eu pude ficar oco por tanto tempo, vazio de qualquer lembrança, de qualquer memória, de qualquer tristeza ou alegria, sendo que haviam tantas...

 Tudo que havia ali, todo o ambiente daquele apartamento, as pequenas rachaduras nas paredes, os fios do carpete que se agrupavam no chão, envolviam-me em uma irremediável epifania.

Comecei a andar sem rumo pelos cômodos, passava de corredor em corredor e não me atinha a nada, era como se já não estivesse com minha mente funcionando, apenas andando sem sentido de um lado para o outro, perdido no verdadeiro labirinto em minha cabeça.

Voltei a mim quando me vi sem saída em um pequeno hall, com duas portas uma virada para a outra, ambas fechadas. Senti uma pontada tão profunda em meu peito, como se meu coração fosse tirado a força para fora e pulsava solto no ar. Olhei atentamente para aquelas portas, parado no meio daquele pequeno quadrado, me virei para a porta à esquerda e abri. Não me espantei com o que vi, pressentia que não poderia ser outro lugar do apartamento senão aquele.

Entrei e caminhei pelo espaço do cômodo, nada ali havia sido coberto com o plástico protetor. Fui direto até o fim do ambiente, em uma pequena cômoda entre uma porta fechada e a televisão disposta sobre um pequeno armário na diagonal, vi uma foto solta, sem estar em um porta-retratos, encostada na imagem da Sagrada Família. Meus pais não eram religiosos. Meu pai era ateu, minha mão agnóstica, mas lembro dela ter sempre com ela uma medalha da Virgem Maria, e a imagem materna da Nossa Senhora sempre me confortou de um modo ou de outro.

Peguei a foto, o papel era de boa qualidade, apesar de estar um pouco danificado e quebradiço pela ação dos anos que ficou ali exposto, estava conservado. De novo, nós três.

Naquele mesmo quarto, nós três deitados na cama, eu entre eles, todos de pijamas, com as pernas embalsamadas dentro das cobertas, sorrindo para a câmera. Eu devia ter por volta de seis anos naquela foto. A foto foi tirada de cima, pela diagonal, papai segurava a câmera virada para nós e foi ele quem tirou aquela foto.

Olhei para ela e consegui o calor e conforto de estar entre eles, com todo aquele carinho voltado a mim. Uma lágrima se rebelou contra minha guarda e fugiu para fora do meu olho, escorreu pelo meu rosto e caiu direto na foto, bem ao centro onde aquele pequeno eu de seis anos estava.

A gota realçou o que eu não via. Em meu colo, meu ursinho panda de pelúcia repousava. O panda que Iuri havia escolhido especialmente para mim, o presente dele e dos meus tios para mim. Tirei minha visão da foto e olhei para a cama deles frente a mim. Achei que fosse alguma miragem, uma armadilha de minha carrasca imaginação. Mas não era ilusão. Entre os travesseiros para à cabeceira da cama, estava meu panda de pelúcia. Andei margeando a cama pela direita, me assentei sobre o colchão e fiquei o analisando. Tantos anos, era a materialização de tudo que eu vivi naquele lugar.

O peguei e o abracei em meu colo. Treze anos e ainda tinha resquícios do aroma de bambu de quando eu era pequeno. Sequer sabia de como sabia que tinha esse cheiro. E sentado ali, abraçado com aquela pelúcia, olhei para frente e vi a outra porta fechada.

Um barulho distorcido ecoava fundo em minha cabeça, impossível de identificar. Levantei-me e fui andando até a porta, com meu panda em meus braços, a cada passo que dava, aquele barulho chiado aumenta pouco a pouco em minha cabeça. Abri a porta e me deparei novamente com um cômodo em que nada estava coberto, tudo exposto como se nunca tivesse sido aquele apartamento abandonado por qualquer contato com a vida. Minha epifania atingiu seu ápice ali.

Parado naquele cômodo, me sentia o próprio Teseu quando confrontou o Minotauro no labirinto de Creta. Diferente de Teseu, não tinha a menor certeza se sairia dali vitorioso, nem se a linha que me faria seguir o caminho para fora do labirinto ainda existia.

Em profundidade, vi o que um dia chamei de meu quarto. Vi os brinquedos, a cama ao canto esquerdo, o guarda-roupas, e o belo piano de cauda ao centro do quarto.

— Querido, venha, Nolan vai tocar.

Ela estava parada ao meu lado, olhando atenta para a cena a sua frente. Meu pai chegou e se posicionou por trás dela, a envolvendo em um terno abraço.

Estavam olhando admirados para mim, mas não eu que parava ali ao lado deles, mas o eu sentado à banqueta em frente ao piano. Aquela criança de oito anos, semanas antes de seu aniversário, na última noite que teria com eles.

Ele levantou a tampa do teclado e se sentou sobre à banqueta, ficou olhando as teclas por um tempo. Não me lembrava de ter uma postura tão reta assim quando criança. Respirou profundamente e repousou os dedos sobre o teclado do piano. A primeira nota foi minha catarse.

Como ele estava entregue, aquele piano não era nada mais que uma extensão de seu próprio corpo, sua própria expressão, sua razão em movimento.

Eu sempre fui apaixonado nos clássicos, Debussy, Bach, Beethoven, Dvořák, Mozart, Vivaldi. Mas compositores da nova era como Ludovico Einaudi e Yiruma apareceram para mim como a grande revelação da música, a exaltação do espirito que compartilhava com meu piano. E era Yiruma que tocava, River flows in you. Uma das minhas favoritas, a apoteose psicodélica que acendia em mim ao ouvir aquelas notas, contaminava todo o meu ser.

Não tinha controle sobre meu corpo naquele momento. Caminhei até ele, que tocava como se fosse a única coisa que importava no universo, e realmente, naquele momento, era. Assentei-me ao seu lado na banqueta, olhei para seu terno e calmo rosto. Voltei-me para o teclado e o acompanhei a partir da nota seguinte. Imerso por completo no som que saía do piano, nada no mundo poderia ser mais real que aquele momento. Éramos apenas nós dois, e assim, era apenas eu. Eu e meu piano. Eu.

As lágrimas que corriam de meus olhos por todo meu rosto eram tantas e em igual frequência às notas que tocava. Mas não me impediram em nada, na verdade, eram como se trouxessem todo o aperto, todo o sufoco que sentia, para fora. Expulsavam de mim qualquer amargura que eu repreendera por esses treze anos.

À última nota, olhávamos nós dois ao reflexo de nossos rostos na madeira negra lustrada daquele piano. Entre o inspirar e o expirar que se pôs, os primeiros sons de Nuvole Bianche começaram. Esta obra espiritual de Ludovico Einaudi trazia a mim todas as memórias que há muito meu inconsciente recalcara em sua barreira de esquecimento e abandono. Eu e meus pais, nossos dias juntos, momentos que tivemos por o que pareceu toda uma vida... uma vida que durou nove anos, e que, de repente, foi extirpada de mim. Mas deixei que toda dor, que todo medo, que todo conflito em mim viesse à tona, que saísse por meus dedos, ao tocarem as notas nuas daquele piano.

Em minha mente, imagens de viagens em família, de tardes que se findavam à beira mar, de natais e aniversários comemorados, de uniões na casa de meus avós, de meus tios e meu primo Iuri junto a nós.

Senti que estávamos tomados, eles parados atrás de nós enquanto tocávamos as nossas últimas notas. “Mãe, pai. Eu os amo, me desculpem”.

As lágrimas em mim pareciam infindáveis. Sabia que não seria a mim que abraçariam ao terminar daquela música, não a o eu que colapsava sentado àquela banqueta.

Mas ali, naquele breve momento, éramos a mesma pessoa, nos éramos um e um sempre seríamos. Senti então os braços me envolverem, a ternura daqueles carinhosos corações que eu sentia me amar. E eu o era, um pequeno Hugo de oito anos. Não mais um jovem adulto de vinte e dois. Não mais uma pessoa sozinha no mundo. Era aquela criança, amada, feliz. Meus olhos fechados não me obstavam de sentir tudo tão intensamente. Meus pais, ali, a me abraçar.

Aos poucos, percebia que a luz do quarto já não estava mais acessa, que o piano já não reluzia lustrado como antes, e que eu, já não era mais a inatingível criança que me via. Mas ainda sentia os braços a me envolver, o amor que me esquentava fundo em minha alma. Só que já não o eram.

Nolan.

Ele estava ali, parado atrás de mim, com seus braços a me envolver na fortaleza que era seu abraço, seu rosto pendurado em meu ombro. Todo o resto da minha fantasia tinha sumido, era apenas eu parado sentado de frente a um piano velho, em um quarto escuro e empoeirado. Mas a sensação de conforto era a mesma, a mesma quando pensei que eles me abraçavam. Quando senti que eles me abraçavam.

Porque Nolan era realmente a razão de tudo, era ele o motivo de eu estar ali hoje. Caso ele não tivesse entrado na minha vida, eu jamais teria me aberto para essas emoções, sequer teria acordado do coma apático que era minha vida até então.

Com a calmaria que era própria dele, assentou na extremidade da banqueta onde meu pequeno eu estava, aquilo me atordoou de alguma forma. Ele então virou meu rosto com suas mãos para ele e o acariciou, limpando minhas lágrimas e me trazendo a repousar em seu torso.

— Eu já vi tudo que tinha que ver aqui Nolan, podemos ir.

— Vamos. Respire e relaxe primeiro.

Toda a tormenta escorria. A ternura de seu corpo me levava a um lugar de paz que me fazia respirar livremente. Percebi que o panda de pelúcia ainda estava em meu colo, o segurei firme com um braço. Acariciei o pescoço de Nolan com meu rosto e voltei meus olhos para os seus. Não precisei dizer nada, ele me entendia por completo.

De pé, me preparei para irmos. Fechei a tampa do piano, deixando que aquelas memórias se guardassem, e que ali ficasse toda dor e mágoa que eu enfrentara. Comigo iriam apenas as recordações de momentos que eu vivi da forma mais intensa possível.

Nolan se levantou e foi andando na minha frente, acho que ele quis me dar um tempo para me inteirar e absorver tudo.

Dei uma última olhada naquele quarto, nos brinquedos espalhados, nas decorações e pinturas penduradas, nas fotos cobertas pela poeira. Não havia saudade para sentir desse lugar, as memórias que me trouxe ficariam comigo, mas não havia espaço em mim para remorso nesse momento. Olhei para o quarto de meus pais, a foto de nós três juntos. Apesar de terem ficado de portas fechadas durante todos esses anos, deixei ambos abertos, um para o outro.

Voltei para a sala, Nolan me esperava lá. Olhava a estante repleta de livros e artesanatos, igualmente cheia de porta-retratos obscurecidos pelo tempo.

— Hugo, você não vai levar nenhuma dessas fotos? – Ele passava os olhos por algumas, limpava os porta-retratos e observava as imagens nas fotos com tamanha atenção que parecia reconhecer as cenas que exibiam.

— Apenas a foto do porta-retrato dourado que estava na estante. Eu vou levar apenas essa.

— Certo.

— Hugo – Sua voz calma alinha minha total atenção, mesmo que ainda perdido por o emaranhado de sensações que estava vivendo. –  quem são esses?

Ele estava com um porta-retrato em suas mãos, o olhava fixamente.

— Ah, são os meus avós maternos, ao centro; os meus pais, no canto esquerdo, e eu no meio deles; e ao lado direito dos meus avós estão os meus tios e o filho deles, o Iuri. Esses são os meus tios que eu fui na casa deles no meu aniversário.

— Esse seu tio, ele me parece muito com alguém que eu conheço. Essa foto é muito antiga?

— Nossa Nolan, bastante. Olha, eu tinha sete anos nessa foto. Ele é o mesmo daquela outra foto que eu te mostrei lá em casa, mas naquela eu tinha três anos só.

— E qual o nome do seu tio?

— Henry... Henry Górki. Por quê?

— Não, nada... ele me lembrou alguém que eu conheço, mas não sei quem. Talvez eu esteja confundindo. Vamos? – Sua resposta foi tão imediata que parecia que nem havia escutado o que eu tinha dito.

Seu rosto estava ilegível, não demonstrava a menor reação, não tinha nada que dava para captar de sua expressão. Na verdade, não tinha expressão alguma, completamente apático, uma verdadeira esfinge.  Mas me lembrei que sutilmente o pegava olhando para qualquer coisa em aleatório sem qualquer reação aparente, talvez era só uma forma de se perder em seus próprios pensamentos. Nada que eu conseguisse decifrar naquele momento, de toda forma.

Seguimos para fora do apartamento. Fechei aquela porta com as chaves, a sensação não era de se encerrar algo, mas apenas de sobressair a uma própria barreira que me retinha de ver adiante, que me impedia de ver o que se punha atrás de mim.

— Hugo, como você está? – Ele me olhava atencioso nos olhos, tínhamos acabado de chegar na porta do meu prédio. Olhei pela janela, na rua passavam tantas pessoas quanto pensamentos eu conseguia ter.

— Bem. – Disse a ele sem o olhar diretamente. – Um pouco desarrazoado. Na verdade, eu não sei definir como estou nesse momento Nolan. Mas não estou nada como imaginava que estaria.

— Bom, isso é ótimo. Significa que você se surpreendeu.

Como ele tinha razão. Eu me via vivendo em um marasmo de monotonia, como se cada dia fosse o exato dia anterior em cíclica inércia. Não esperava poder não saber o que esperar de algo, e ter vivido o empirismo desse sentimento do inesperado, bom, era confuso, mas revigorante, de alguma forma.

Olhei para ele, atrevidamente conquistador de sua aura. Em seu olhar, uma certa confusão me fazia perder qualquer raciocínio que fazia.

— Espero que você saiba que eu sempre estarei ao seu lado Hugo, não importa o que aconteça.

— Obrigado Nolan.

— Então está certo... acho que é melhor você ter um momento a sós com seu coração agora, há muito que você precisa por em ordem dentro de você.

Ele passou seus braços por trás do meu pescoço, se aproximou de mim e encostou sua testa na minha, conectados pelas pontas de nossos narizes, em uma respiração síncrona, éramos cormo espírito e consciência de um mesmo corpo.

— Foi lindo o que você fez naquele quarto quando tocou no piano. Você e essa mania de me fazer apaixonar por você cada vez mais.


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Notas finais do capítulo

Happy Valentine's People ^_♡ Se é que tem algo para comemorar né... sigamos



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