Culpa e Perdão: O pior de uma mente apaixonada escrita por NightlyPanda


Capítulo 2
Capítulo 2 - Caminhos e Mentes Conectados




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— Não! – Por um instante, a ideia de expor aquele momento me fechava a garganta e não me deixava hesitar. Apesar de todo nervosismo, não tinha como ceder daquela vez.

— Não? Não? HAHAHAHAHAHAHAHAHA! Quem você acha que é para ousar não fazer o que eu mandei? Tu tem noção do seu lugar? Você é a merda de uma aberração, um veado desgraçado qualquer, tá só passando aqui uma amostra grátis do que te espera no inferno, para onde todos esses desgraçados que nem você vão! Agora me dá a porra do celular e eu talvez poupe de arregaçar o seu rosto.

Não consegui responder, mas não ia ceder. Estava estático, não estava tremendo, nem apavorado, já havia apanhado antes, essa não seria a primeira nem a última vez que ia levar uma surra, mas dessa vez... Dessa vez havia algo pelo qual eu tinha coragem de me por intransponível, algo pelo qual me dava a vontade de ser firme. Bom, talvez firme apenas metaforicamente, porque, apesar dos curtos segundos onde manteve-se a tensão daquele tênue silêncio, e que pareceu como horas, aquele chute bem no meu estômago me atirou bem em cheio no mictório atrás de mim, o choque das minhas costas com o gesso doeu e muito. Dali, eu estava no chão, e vieram os chutes, os socos, até que senti minha cabeça sendo levantada e nem deu para fechar os olhos quando socaram ela contra a parede. Meu nariz começou a sangrar, e apesar do sangue escorrendo, não sentia nem mais o ar entrando. Acho que perdi a conta quando já era o décimo primeiro murro que levei no rosto. Mas por mais que eu apanhava ali, eu não cedi. O celular ficou preso à minha mão como o fruto que protege a semente no interior. Eu não tinha muita força para qualquer coisa naquele momento e resisti o máximo que consegui.

— Você não vai largar?!? Gosta de apanhar não é mesmo. Eu pego esse celular nem que eu tenha que quebrar a sua mão, tá me ouvindo? – E cada palavra que eu ouvia era acompanhada de um soco em alguma parte do meu rosto. – LARGA A PORRA DO CELULAR! – Acho que a raiva que ele estava sentindo era tão forte quanto a dor no meu corpo, mas naquele momento, eu não consegui me segurar.

— Não... – Achei que tinha sussurrado para mim mesmo, não sei como, as palavras tomaram som ao sair da minha boca. Ele estava bufando como o mais selvagem dos touros que é atiçado para impressionar o público na tourada, seus olhos reviraram no rosto. Sua pele tinha ido de um tom vívido de branco para o mais vermelho que um jovem caucasiano de mornas temperaturas pode ficar. Ele parou de pé atrás de mim, senti aquelas mãos segurando o meu cabelo e o resto do meu corpo sendo arrastado.

— Se você morrer não vai mais conseguir segurar esse celular. – Disse ele em um áspero riso, numa seriedade em baixos tons, como alguém que apenas libera um pensamento nefasto pela boca sem nem mesmo se dar conta. Meus olhos estavam custando para ficarem abertos, e só sabia que ainda estava consciente por causa da claridade que as luzes faziam refletindo pelos azulejos cinza gélidos do banheiro. Em um instante, tudo ficou escuro. Senti uma enorme pressão de água tomando todo o meu rosto, por todos os cantos. Aquele cheiro horrível de cloro e amônia, impregnado em um pequeno espaço. Infelizmente eu não tinha morrido.

Não sei bem ao certo, talvez umas cinco ou sete vezes minha cabeça foi mergulhada dentro da privada e dado descarga por uns trinta a quarenta segundos. Eu já não sentia mais o peso do meu corpo, nem dos meus próprios pensamentos. Por alguns instantes, apaguei. Algo em torno de três segundos e abri minha mão, o celular escorregou e, ao ver aquilo, ao pegar meu celular nas mãos, ele me olhou jogado no chão e respirou por um momento. Só sei que ouvi o estalo do impacto que fez quando o celular foi arremessado até a parede.

— Vê se aprende a obedecer quem é superior. Ouviu bem, seu veado maldito. – Disse agachando-se próximo ao meu rosto como se quisesse ter certeza de que eu ouvia cada palavra que pronunciava. Ele levantou e saiu do banheiro esfregando a mão em seu moletom como se as limpasse após se sujar.

Eu não sentia nem meu coração bater. Me esforcei ao máximo para rastejar meu corpo até os cacos daquilo que era meu celular. Segurei forte contra meu peito. Não sei ao certo se era a água que escorria do meu rosto molhado, ou se eu realmente chorei. O que sei é que, até o funcionário da limpeza chegar no banheiro, já eram mais de onze da noite, eu passei o segundo período aula depois do intervalo todo jogado no chão daquele banheiro. Na secretaria, me prestaram alguns primeiros socorros, perguntaram quem tinha feito aquilo e pediram o número de alguém para me buscar.

— Eu não sei quem fez isso. Eu moro sozinho.

Não que era novidade aquela cena de eu aparecer machucado saindo do banheiro, só que geralmente eu não era retirado de lá carregado. Eles não queriam me liberar para ir sozinho até em casa, mas já estava passando da hora de fechar a faculdade. Eu só não queria ter que voltar para o hospital.

— Eu o levo até em casa. – Ecoou um roco timbre pelo ambiente da secretaria.

— Coordenador Roger? – Respondeu espantada a secretária. – Ah, se você pudesse ajudar esse aluno a chegar em casa, deixaria todos nós mais seguros e tranquilos. – Disse como se não fosse a única coisa impedindo ela de ir para casa eu ainda estar ali, e ainda querendo uma saudação da grande atenção dela à situação que eu estava.

— Eu vejo sempre ele indo para a estação do metrô, vai para a mesma direção da minha casa, não vai ser problema algum. – Disse ele me encarando. – Vamos?

Olhei para a porta, o rapaz da limpeza me ajudou a caminhar até o carro, agradeci ele e o vi sumindo pela escuridão da rua mal iluminada da faculdade. Meu corpo estava tão dolorido que qualquer movimento machucava ainda mais.

— Não precisa colocar o cinto, já já a gente chega, e você não deve tá sentindo muito legal em ficar virando o corpo não é mesmo?

Permaneci em silêncio e apenas encostei minha cabeça no banco. Não sei se ele percebeu que eu fechei meus olhos, estavam tão inchados que era realmente difícil distinguir se estavam abertos ou não. Ficamos por uns dez minutos em silêncio, só sentia o carro em movimento e quando ele virava o volante para fazer alguma curva.

— É o prédio na esquina da próxima quadra.

Ele olhou para o prédio, acelerou o carro, fez a conversão da faixa e estacionou na frente do prédio.

— Hugo, não é? – Antes mesmo que eu respondesse que sim, ele emendou – Eu sei que não é a primeira vez que isso te acontece nas dependências da faculdade, você não pode deixar que isso continue. Eu sei que talvez a secretaria e a direção não sejam tão proativas assim, mas se você fizer a denúncia, eu garanto para você que ela vai ser concluída e os responsáveis vão ser punidos.

O silêncio continuou.

— Você poderia me dizer ao menos o porquê de você ser constantemente agredido assim? Se tem alguma explicação toda essa violência?

Com a mão na maçaneta da porta do carro, olhei para a portaria do meu prédio, olhei de volta para o chão do carro. – Obrigado por ter me trazido em casa, coordenador. Tenha uma boa noite. – Abri a porta do carro e virei, dolorosamente, meu corpo para sair. A porta do motorista abriu, e lá estava ele me ajudando a levantar. Me ajudou a chegar até na portaria do prédio. Assustado, o porteiro foi ver o que estava acontecendo. Perguntou se estava tudo bem e antes mesmo que Roger dissesse qualquer coisa, pedi ao porteiro se ele poderia me acompanhar até o meu flat. Ele apoiou meu braço sobre seu pescoço, agradeci ao coordenador novamente pela carona e o deixei no hall da recepção junto ao rapaz que ficava sempre no balcão junto do porteiro. Era um belo prédio que ocupava metade do quarteirão, tinha um formato de um hexágono, a portaria saia bem na esquina da rua e o hall de entrada era um salão bem grande, sempre tinha alguém que ficava ali junto dos porteiros para passar as ligações e demais informações para os inquilinos.

Já no meu flat, caminhei lentamente até o meu quarto onde desmoronei em cima da cama. Não resisti à enorme dor que me consumia e dormi de qualquer jeito, sem nem me trocar ou me ajeitar direito sobre o colchão. Acordei no meio da madrugada, assustado. Passei a mão pelo meu rosto inchado, estava chorando e não sabia o motivo. Levantei lentamente e fui até o banheiro, peguei uma caixinha de remédios e tomei alguns analgésicos. Olhei-me no espelho, não me surpreendia em me ver naquele estado. Mas estava paralisado. Olhei para minha mão. Segurava o celular estraçalhado esse momento todo e nem me dera conta. Tentei ligá-lo, mas não adiantava. Fui então até a minha escrivaninha, peguei a chave para abrir o espaço do chip e do cartão de memória. Não sei como, mas estavam intactos, ou aparentavam ao menos. Arrastei meu corpo até o closet. Nas portas de cima do armário tinha um celular antigo que eu havia guardado, não era tão velho assim, mas quando eu troquei para o que estava estraçalhado agora, guardei o outro. Coloquei o chip e o cartão. Ao ligá-lo, deu recado de que estava sem bateria. Pus para carregar ao lado da cama e me deitei. Eram umas duas e meia da manhã quando olhei para o relógio na mesinha de canto, e depois de olhar as horas, eu novamente adormeci.

Quando acordei pela manhã, vi o celular com a luz da carga completa piscando, corri e o liguei. O chip e o cartão ainda funcionavam. Assim que ligou e atualizou, chegou algumas notificações e, entre elas, três novas mensagens. Todas do mesmo número.

“Tenho a sensação de que você é um dos leitores mais fiéis do meu trabalho, espero que realmente goste.”

“Adoraria ouvir o que você tem a falar do que acha dele, hahaha, quem sabe marcamos algum dia de sairmos e tomar um café, conversar sobre o doujinhsi...”

“Espero não ter parecido assustador, já que você não respondeu ainda... enfim, não queria incomodar, me desculpe se fui inconveniente.”

Tudo isso demorou um tempo para fazer minha ficha cair de que meu autor favorito do meu doujinhsi favorito estava me mandando mensagem. Olhei para o céu pela janela do quarto, o dia tinha amanhecido claro e iluminado. Respirei fundo e voltei minha atenção para o celular.

“Desculpe a demora em responder #_# Ontem não foi um dia muito legal para mim, meu celular ‘estragou’, só consegui ver suas mensagens agora pela manhã.”

Assim que enviei essa mensagem, já mandei uma mensagem para Ágatha falando que eu não estava muito em condições de ir trabalhar e ia ficar o resto da semana em casa, depois compensava arrumando todo o depósito e a sala dela. Estava uma quinta muito confortável e eu estava muito dolorido, não tinha pressão social nenhuma que me faria sair de casa para nada. Liguei no Café da esquina e pedi se poderiam entregar meu café, não estava mesmo afim de sair de casa. O celular vibrou de novo.

“Nossa, que mal... Mas você está bem? Desculpa se pareci chato achando que você estava me ignorando, eu só não sabia que não tinha como responder. Espero que esteja tudo bem ^_^”

Eu nunca tinha me sentido assim conversando com outra pessoa, era como se eu tivesse um sentimento terno e aconchegante dentro de mim, algo que eu jamais tinha sentido por ninguém. Tanto que eu tremia para responder aquela mensagem, igual quando se está molhado no frio, eu nem acreditava que eu era essa pessoa, e que esse eu é a mesma pessoa de alguns dias atrás.

“Eu vou ficar. Obrigado por se importar ^_<”

“Ah, e eu adoraria tomar um café e conversar sobre seu trabalho, acho ele incrível”

Depois daquela mensagem eu fui comer meu café, me deitei um pouco e fiquei assistindo qualquer coisa na Tv. Esperei por uma outra mensagem, queria continuar conversando com ele, mas não sabia como manter um assunto, eu não sou nada sociável e minha agilidade social é claramente duvidosa de qualquer efetividade, a não ser quando é para apanhar, porque aí sim, eu sou a pessoa mais esperta para chamar atenção daqueles idiotas. Acabei adormecendo, meu corpo estava muito cansado e eu sem nenhum fôlego para qualquer coisa mesmo.

“Sabe, às vezes você só precisa enxergar o horizonte mais além, ver o dia que ainda vem pela frente e perceber as coisas que estão ao seu redor... Não que eu esteja insinuando algo, mas você é maior que tudo isso, pelo que eles te humilham é motivo de ser exaltado... Você só precisa se entregar mais as pessoas que te querem bem Hugo... Me diz, porquê?”

“Você só chora... É por isso que vive apanhando! Você é fraco... Ninguém te respeita e você finge que não se importa, talvez já tenha morrido... Se for assim, para que ainda luta? Nada faz sentido já tem um bom tempo e você só segue com o fluxo, tão apático... Nem mesmo eles te quiseram... E ele só finge, prefere te manter longe e afastado para que ninguém saiba que você é essa aberração...”

— Elio. Elio. Elio. Elio. Elio... – Acordei com o filme que passava na Tv, tinha tido um sonho estranho, como se tivesse uma sombra atrás de mim. Na verdade, como se a minha sombra tivesse duas formas que se dependuravam em minhas costas e me insinuavam um monte de coisas, nenhuma delas parecia muito contente comigo, e na verdade, nem uma das duas estavam mentindo. Virei de lado e percebi que deitei sobre algo, era o celular e ele estava com o LED piscando, tinha uma nova notificação. Abri ansioso para ler, as possibilidades que se formavam na minha mente começavam a me inquietar toda vez que pegava no celular para ver alguma mensagem.

“Hugo, aqui é o coordenador Roger, peguei seu número nos dados da secretaria, só queria saber se você está bem e se está precisando de alguma coisa?”

Pronto, toda a expectativa e animação foram esvaídas como que se alguém tivesse aberto um tampão em mim e escorreram cano à baixo. Não tinha a menor intenção de ficar dando detalhes da minha vida para a coordenação da faculdade. Joguei o celular para o outro canto da cama. Mas eu não podia ignorar que aquele homem me trouxe em casa ontem, então acabei respondendo.

“Estou bem. Obrigado pela carona ontem.”

Joguei o celular para o outro lado da cama e me virei. O filme estava acabando, passava a cena do garoto olhando para a fogueira. Fiquei pensando que se continuasse desse jeito, logo mais o coordenador ia desistir da ideia da denúncia contra as agressões que eu sofria e as noites na faculdade voltariam a ser como antes: o anonimato e, vez ou outra, alguns roxos pelo corpo, mas para mim, era melhor que provocar toda uma reação e ter todas as atenções em mim. Não queria que me ficassem incomodando, nem que tivessem pena de mim. Cada um segue com seus problemas de acordo com suas estratégias.

Eu não tinha muito o que fazer naquela tarde de quinta, mas também estava sem vontade de ficar o dia todo fingindo dormir na cama. Apesar de não encontrar ânimo nenhum em mim para fazer qualquer coisa. Pensei em dar uma volta até o parque, mas meu corpo doía muito para que eu conseguisse andar até lá. Fui até a sala, lá vi algo que me relembrou uma atividade que há muito eu negligenciava: o piano. Resolvi então arriscar tocar um pouco, já fazia algum tempo que eu não me dedicava àquelas teclas no meu dia. Sentei na banqueta e abri a tampa do teclado, ah... quanto tempo eu não passava os dedos naquelas teclas, estavam até um pouco empoeiradas. Olhei as cordas pelo tampo aberto e fiquei alguns bons minutos admirando-as. Aquele piano era meu maior orgulho, senão o único. Apertei uma sequência de dois mis, e, como sempre, comecei pela nona sinfonia. Beethoven, como poderia ser diferente. Dali, me perdi pelo tempo e pelas teclas. Algumas partituras sabia de cabeça do começo ao fim, outras faltavam alguma parte que me falhava a memória, e quando dei por mim, estava a tocar livremente uma harmonia de notas e entregava ao som que compunha.

“Sempre fico me perguntando porque eu fico tanto tempo sem fazer isso.” Esse era o pensamento que sempre me vinha após me entregar de corpo e alma para aquele momento com meu piano. Levantei daquela banqueta tão tranquilo que só lembrei que estava todo machucado quando a perna me falhou o andar e eu tropecei, não cai porque consegui me apoia no sofá ao meu lado. Recompus-me de pé e prestei mais atenção ao meu andar, me apoiando pelas paredes para ter certeza que não cairia. Passei pela cozinha para pegar qualquer coisa para comer e voltei para minha cama. Liguei a Tv e deixei em qualquer canal. Ao arrumar minhas pernas sobre o colchão, percebi o LED do celular piscando.

“Confesso que não imaginava que você fosse aceitar encontrar comigo. Não quero perder a oportunidade de te encontrar de modo algum. Ao final, acho que você sabe mais do meu próprio trabalho que eu mesmo, vai ser bom ouvir suas considerações. O que você acha de marcarmos para a próxima quinta à noite?”

Nesse momento faltou sinapses no meu cérebro para dar conta de toda aquela informação a ser processada. Meus dedos tremiam, comecei a escrever e apaguei umas vinte vezes, cada palavra parecia errada ao ser digitada naquela tela. Eu não conseguia entender bem o que queria escrever e minha respiração ofegava como se eu estivesse prestes a cometer o pior dos crimes.

Quinta eu tenho aula até tarde...

“Pelos céus, eu não podia mandar algo tão infantil quanto ter aula até tarde, ele só ia achar que eu estava dando desculpa para não o ver.”

Talvez se você pudesse pela tarde...

“Claro que ele não poderia à tarde, se ele já disse de sairmos à noite. Deus, eu não nasci para isso.” Queria chorar, mas respirei fundo, olhei para o teto, encarei o celular e me concentrei.

“Claro! A gente pode se encontrar em algum café ou em algum pub no centro. Se você não se importar, claro.”

Enviado. Não dava para voltar atrás agora. Só me restava esperar pela resposta. No fundo da minha mente, minha consciência me pinicava por cogitar matar aula para sair com um completo desconhecido.

“Por mim está ótimo! Eu posso te buscar na sua casa se quiser, por volta das 21:30, o que acha?”

“Me buscar?” Já surtava só na ideia de ir até ele, lendo que ele estava disposto a me buscar em casa, eu não tinha estruturas para lidar com aquilo. “Respira Hugo, toma tento e vira gente”, apesar de tentar manter um mantra inspirador na minha mente, o desespero me consumia por completo naquele momento.

“Pode ser nesse horário. Mas não quero ser nenhum incômodo para você, não precisa me buscar, sério, eu te encontro onde a gente marcar”

“Mas não vai ser incômodo algum H. Mas talvez você não sinta confortável em ter um estranho assim na porta da sua casa, eu compreendo. Se você não for ficar confortável com isso, eu compreendo, sem problemas algum.”

“Eu sou um idiota!”, era tudo que se passava na minha cabeça naquele momento.

“Não é nada disso >—< É só que talvez você nem more perto da minha casa, então não queria te dar trabalho.”

Precisava de uma resposta que parecesse como se aquilo não estivesse mexendo com minhas estruturas, então eu concordei que ele me buscasse, mas passei o endereço da rua da faculdade, porque, por mais que eu odiasse aquele lugar, uma voz bem aguda no fundo da minha mente dizia que eu era a pessoa mais ridícula do mundo em matar aula para encontrar um completo desconhecido que escrevia doujinshis na internet. O meu plano era ficar na aula até o intervalo e dali eu sairia para encontrar ele. Pelo horário que marcamos, seria bem no fim do intervalo, então daria certo. Eu só precisava me certificar de deixar a mochila no meu armário para não sair com ela.

“Então está combinado! 21:30 eu fico te esperando e a gente resolve o lugar que vamos, eu conheço um bom pub no centro, podemos ir lá.”

“Eu vou ter que sair agora, tenho que resolver alguns assuntos urgentes do meu trabalho, a gente se fala. Boa noite H., bons sonhos.”

Eu larguei o celular incrédulo do que tinha acabado de ler. Aquilo era tão surreal para mim... Provavelmente eu estava idealizando toda a história na minha mente bem mais do que devia, mas mesmo assim, era inegável, eu tinha um encontro marcado. Fiquei sorrindo de olhos fechados por um bom tempo. Quando os abri, olhei para a televisão. Estava em um documentário sobre a vida selvagem, bem em uma cena onde ao fundo tinha um leopardo-das-neves devorando o que era a carcaça de uma cabra, no meio de um relevo montanhoso coberto de neve. Mal prestei atenção no que o narrador falava, mas aquela imagem me capturou a atenção como se eu estivesse acompanhando o documentário fielmente.

Depois daquela cena veio o intervalo comercial e eu me distraí, desliguei a televisão e me arrumei para ir dormir. Apaguei as luzes do quarto e deitei-me. Fiquei olhando para a tela do celular, não resisti e coloquei na conversa com o meu desconhecido autor que queria me ver. “O que será que você quer comigo? Por quê eu?”, pensava nisso enquanto ria e passava o dedo pela tela do celular. Virei-me de lado e puxei o cobertor. Foi questão de poucos minutos até que eu adormecesse.

“E as notícias mais relevantes são: Após a morte do empresário Heitor e a reorganização do comando de sua empresa, as ações de mercado da Vernach Co. caíram bastante na bolsa de valores. O atual CEO Augusto Fernando, após substituir Heitor, garante que os contratos firmados com a empresa passaram por reestruturação no processo de construção e nas datas de entrega, mas seguirão todos válidos e em andamento...”

Desliguei o despertador e sai andando como um zumbi até o banheiro. Quando saí do banho, lembrei que tinha pedido folga do trabalho, não tinha porque estar acordado tão cedo, mas agora já não tinha mais sono. Coloquei meu conjunto de moletom, estava todo cinza e pronto para sair naquela manhã de outono onde o frio e uma densa e curta névoa dividem espaço com alguns atrevidos raios de sol pela manhã. Ainda tinha um pouco de dificuldade em andar pela dor que meus músculos sentiam, e, apesar de não conseguir disfarçar nada bem, ao menos não desmoronei no chão no caminho até o Café da esquina.

Peguei o meu café de sempre e me sentei no meu cantinho. Meu, porque era a mesma mesa no canto esquerdo, virada para a vidraça da frente, que eu sentava já há alguns anos. Enquanto tomava meu cappuccino, fiquei olhando para rua, vendo o movimento dos carros e das pessoas, encarando qualquer entranho por alguns segundos ao tempo que aquele gosto poderoso de canela e cremoso da cafeína apoderavam da minha boca e esquentavam minha garganta. Rapidamente passou um sedan preto na frente do Café, eu engasguei com meu cappuccino, mas talvez porque a pessoa que dirigia me parecesse alguém muito comum.

“Eu devo estar alucinando.”, pensei comigo mesmo enquanto tossia freneticamente, e todo mundo logo começou a olhar quem era o engasgado que irrompia o silêncio sepulcral daquela sexta de manhã com aqueles sons escandalosos.

De volta à casa, não tinha muito o que fazer, e pelo visto seria assim o final de semana todo. Pensei em aparecer na biblioteca, mas já tinha dito que não ia e se fosse para lá eu ia ser soterrado de tanto serviço, não tinha certeza se estava nesse estado de espírito. Peguei um livro na minha estante e me aconcheguei no sofá. Passei a maior parte daquele dia lendo, viajando para dentro das páginas daquele livro de romance medieval. Era engraçado em ver como a história se construía em cima de um casal impossível, de reinos inimigos que, depois de colocar vidas e exércitos inteiros para se digladiar, selavam a paz com o tão esperado beijo de amor verdadeiro entre os amantes impossíveis, os sobreviventes, se subordinavam a novos reis, mas suas vidas continuavam igualmente ordinárias no campo. E quanto ao casal, mesmo que isso não esteja escrito, tenho certeza que seguiriam suas vidas e, mais cedo ou mais tarde, estariam tão entediados com a própria vida, que nem lembrariam do amor platônico que os uniu, e também se entediariam um do outro, mas estariam tão acostumados em acordar e dar de cara com o aquele rosto, que seguiriam até que a vida desse jeito de acabar com aquilo. Ou talvez não, fosse apenas a minha incapacidade de esperar muito da vida e do verdadeiro amor que ela promete.

Ao cair da noite, fui me retirar para o meu quarto quando o interfone tocou e o porteiro anunciou que tinha alguém querendo subir para o meu flat. Na minha cabeça, a primeira pessoa que me veio a imagem foi do coordenador Roger, o que me fez ficar entediado e até levemente estressado. Mas quando ele anunciou que era Ágatha, o estresse passou. O tédio nem tanto. Eu não era tão bom anfitrião assim, não era muito minha alegria diária receber visitas. Mas ela é minha chefe, e facilita muito minha vida quando preciso faltar, então eu não tinha muita saída. Era também o mais próximo que eu tinha de uma “amizade”.

Quando a campainha tocou, mal deu tempo de abrir a porta e ela já estava para dentro falando.

— Falar que está vivo, pelo que eu sei, nunca matou ninguém, muito pelo contrário, morto que não fala, não é mesmo? Então senhor, será que é pedir muito que sua chefa saiba o porquê daquela mensagem mixuruca dizendo que não vai trabalhar até segunda? Vocês daquela biblioteca acham que estão numa colônia de férias, eu vou te contar, Deus me dê paciência... -E quando ela finalmente parou de falar, ela começou a encarar o meu rosto. Ficou um silêncio opressor e ela fez aquela cara de esfinge estática típica dela. – O que é esse monte de roxo e machucado no seu rosto Hugo? – Ela colocou as sacolas que trouxe na mesa e se aproximou de mim. – Deixa eu ver isso.

— Ai! Não precisa ver com as mãos não. – Não adiantou nada, estava lá meu rosto sendo todo tocado e analisado.

— Você apanhou de novo, né?

Eu fiquei olhando para o chão e não disse nada.

— Até quando isso Hugo? – Ela era a pessoa que eu mais tinha respeito, não por apenas ser minha chefe no serviço, mas por uma questão de proximidade e que para mim, ela estava sempre ali, presente, como uma irmã. Não conseguia encarar ela para responder. – Qualquer outra pessoa não teria essa paciência que eu tenho com você, tu tem noção disso né? É bom que tenha. Mas também não é qualquer um que aguenta ficar apanhando assim e ficar quieto como se não fosse nada, então talvez sua paciência seja muito maior que a minha. Enfim, vem cá, eu trouxe comida e um vinho para a gente jantar. Passei naquela casa de massas e comprei dois espaguetes ao sugo e aquele polpetone com mozarela de búfala que você gosta, tem também esse vinho suave aqui, mas não entendo tanto de vinho quanto você, então pedi pro moço um que você bom acompanhamento para o espaguete, ele que recomendou. Pega os pratos para mim, vou tirando das embalagens aqui.

Ela era realmente uma figura terna e cuidadosa, apesar do temperamento e da falta de ânimo para as atitudes dramáticas em geral, Ágatha era definitivamente uma rabugenta carinhosa preocupada com quem ela se importava. Parecia que eu era uma dessas pessoas. Arrumamos tudo e fomos comer no sofá.

— Me fala, quem te bateu, anda.

Eu encarei ela e desviei para o tapete no chão. Mas não dava para ignorar ela, ia ficar com aquela expressão felina que projetava aqueles olhos dentro da sua alma até que eu respondesse.

— Foi na faculdade, o mesmo de sempre.

— O mesmo de sempre não é nome de registro de cartório nem tem documento válido, anda, nome e porquê.

— Eu não sei o porque eles sempre me batem. Dessa vez foi um só. Edgar. Tinha dado o intervalo, eu fui pro banheiro, ele chegou lá e me pediu meu celular, eu não entreguei, acho que ele não esperou que eu fosse negar e ficou possesso, começou a me bater e gritar, enfiou meu rosto na privada e quebrou meu celular. Eles sempre me batem enquanto me xingam e gritam que sou veado, acho que é por isso.

— E? Isso lá é motivo? Se você for o que você for é problema seu Hugo, isso não pode continuar assim não.

Ela falou meio que desacreditada que eu estivesse ouvindo, fez uma negação emburrada com a cabeça e pegou a taça. Depois que tomou um gole. Ela virou para mim e, voltou a olhar para o prato, se ajeitou no sofá e me encarou de novo.

— Eu não quero entrar na sua vida Hugo, nem atormentar sua privacidade, mas eu não gosto de não falar ou perguntar o que eu penso. Eles te chamam de veado sempre, você nunca responde e fica sempre calado, eu já te disse um milhão de vezes que não é nada demais em não ser hétero, e você permanece calado. Você sente algo por alguém Hugo?

—Eu... – Aquilo não fazia sentido, ela sabe que eu não me importo com ninguém. E não porque eu sou amargurado, talvez, mas porque eu simplesmente não vejo a necessidade de ter tormentos a mais na minha vida com a existência de outras pessoas, já é ruim o suficiente viver por mim mesmo. Mas eu conhecia Ágatha, ela nunca dava ponto sem nó, ela não perguntou especificamente se eu sinto algo por alguém atoa, não. Ela sabe bem as palavras que usar, se ela quisesse uma confirmação da minha sexualidade, ela seria direta. Ela percebeu algo que talvez nem mesmo eu ainda percebi, ou que eu ainda não quis perceber. – Acho que tem um sentimento dentro de mim que eu não sabia que eu podia sentir, e eu ainda não tô compreendendo direito o que é, mas talvez... talvez eu esteja me iludindo, mas tem sim chances de eu estar sentindo algo por alguém.

Ela fez a cara mais sem vergonha de alguém que segurou na ponta da língua com toda força um “eu sabia!”. Apenas deu uma risadinha de canto de boca e fez um nada sutil “ai, ai” com o rosto.

— Bom, eu acho que você é alguém que complica a vida muito mais que precisa. Mas também não estou aqui para invadir seu espaço. Eu não sou nenhuma daquelas madames videntes, nem mesmo uma guru de relacionamentos, mas se você um dia quiser falar de algo, eu tô aqui. Eu sabia que você não era assim tão coração de pedra, lorde de ferro dos sentimentos para a humanidade, que você demonstra ser.

— Bom saber que meus esforços em me mostrar como um dementador para o mundo externo são válidos.

— Cala a boca e vai comer que se não vai esfriar, seu otário. – Depois daquela conversa, assistimos alguns episódios aleatórios de séries mais aleatórias ainda na Tv. Já era bem tarde quando Ágatha foi embora. Depois que ela saiu, eu voltei para o sofá e fiquei ali, recolhido, pensando no que tinha dito.

— Então tem mesmo alguém por quem eu sinto algo.


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